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BRASIL

Futebol e Pandemia: paixão e política entram em campo

Caetano Branco, de Porto Alegre, RS
Um jogador do Internacional conduz a bola enquanto jogador do Grêmio se aproxima
LUCAS UEBEL/GREMIO FBPA / Fotos Públicas

Internacional e Grêmio, em Caxias (RS), uma das partidas disputadas durante a pandemia

No dia 22 de julho tivemos o retorno de alguns importantes campeonatos estaduais de futebol no Brasil, como o Paulista e o Gaúcho. Não apenas os campeonatos voltaram como também voltaram com clássicos em campo, sendo Corinthians e Palmeiras em São Paulo (SP) e Gre-Nal em Caxias (RS). O contágio e a conjuntura imposta pela pandemia do novo coronavírus, nem de longe são favoráveis para a volta do futebol neste momento. Este esporte não é uma bolha – como sugerem muitos comentaristas esportivos defensores ferrenhos do retorno – em meio a uma sociedade que sofre com a perda de mais de 80 mil entes queridos. Nenhum militante em sã consciência defenderia a volta do futebol. Sim, é uma contradição gigante não termos mais leitos de UTI’s disponíveis e o futebol estar retornando. Mas o discurso proferido por algumas organizações e militantes de esquerda bradando que o futebol é um “instrumento alienador” à realidade e que por isso não deveria voltar não dialoga com ninguém. No máximo com seu colega universitário e de classe média que nunca viveu o cimento da arquibancada.

Usar o argumento do futebol como instrumento de alienação da classe trabalhadora é fortalecer para que ele realmente o seja. Não sei se estes que usam esse discurso já perceberam, mas enquanto a esquerda bate cabeça agredindo a maior paixão nacional a direita se utiliza muito bem desta via para chegar ao povo. Não à toa Bolsonaro troca de camisa de time como quem troca de cuecas. O fato de ser utilizado pela direita em diversas oportunidades para manipular a opinião pública, e ser um campo de lucros exorbitantes manipulados pelas grandes federações, não significa que o futebol seja um instrumento da direita, pelo contrário, é um esporte popular que mexe com as massas e que nunca foi de interesse da esquerda disputar. O que não podemos esquecer, é verdade, que como toda a nossa sociedade, esse esporte está inserido na lógica capitalista do mercado e dos lucros, e por isso a paixão é comercializada e também utilizada como instrumento político. Portanto, o futebol é sim uma via de disputa e ação social. Queira ou não a esquerda, essa é a verdade. Isso significa então que o futebol deveria voltar? De forma alguma. Isso significa que há uma contradição posta, mas que jamais essa contradição deve ser jogada para cima da classe trabalhadora. Isso seria na melhor das hipóteses um erro inocente. O futebol é sim uma via de escape para muitas problemáticas sociais, temos nas arquibancadas um recorte do que ocorre na sociedade: lá vemos casos de racismo, machismo, homofobia, violência de forma geral. O papel da esquerda organizada deve ser utilizar esta via como campo de lutas para a tomada de consciência da classe frente às contradições que vivemos, e não utilizar as contradições como forma de culpabilizá-la. Isso tudo respeitando toda a caminhada que já existe no interior destes espaços. Ninguém nem nenhuma organização é detentora da “receita revolucionária” milagrosa. Curiosamente os mesmos setores que hoje lançam notas de repúdio a quem está assistindo futebol – sim, porque poucos foram os posicionamentos voltados à real problemática e muitos o fizeram direcionados aos indivíduos que decidiram acompanhar os clubes – são os que alguns meses atrás orgulhosamente compartilhavam a participação de setores antifascistas das torcidas nas ruas. Quer dizer então que o futebol e a cultura de arquibancada apenas nos servem quando se encaixam perfeitamente às nossas táticas e desejos? Fazer política não é adesismo a padrões. Fazer política é também entender que diferentes espaços possuem diferentes dinâmicas e que as lutas não se desenvolvem de igual forma em todos eles.

Se no capitalismo o futebol é alienador, o Big Brother, as novelas, as séries da Netflix e tantas outras produções midiáticas também são. Mas o que há de diferente entre o futebol e os demais citados é o fato do futebol possuir um histórico popular. Apesar de surgir como um esporte de elite, rapidamente se transforma no esporte dos operários e a história da popularização do esporte acompanha a história da classe trabalhadora e as particularidades de cada local. No Brasil, por exemplo, em várias localidades, carregou a luta do negro para sua inserção na sociedade, seja pelo simples direito de jogar, seja pela possibilidade de ascensão social. Mais recentemente temos uma tentativa de re-elitização em curso, com a “arenização” dos estádios e elitização do acesso. Resumidamente, como diz Gilmar Mascarenhas¹, geógrafo que dedicou sua produção científica ao futebol:

[…] a história social do futebol se inscreve na história do lugar e com ele dialoga intensamente. Sua espacialidade mutante se insere e participa da lógica mais geral que anima e organiza o lugar. Por trás de todo este imenso movimento anônimo de atores que se associam com finalidade de praticar ou assistir o futebol, esta poderosa e extensa teia de significados, há certamente uma geografia a ser desvelada. E paisagens sendo elaboradas, re-elaboradas e re-significadas. (MASCARENHAS, 2005, p.68)

Portanto, além do aspecto concreto que o futebol é enquanto um poderoso mercado – e por isso o desespero das grandes marcas e emissoras para o retorno do mesmo – este esporte também carrega grande carga simbólica para aqueles que são aficionados. A paixão por um clube – por mais clichê que pareça – não é algo apenas racionalmente explicável. Tem relação com o lugar, com a territorialidade e identidade desenvolvida, ou seja, com o pertencimento que isso gera no indivíduo. Então, cada vez que um texto ataca a volta do futebol pela via de “não assista porque querem desviar sua atenção dos problemas reais” se pergunte: com quem isso dialoga? É possível não querer a volta do futebol e ao mesmo tempo assistir a partida quando ela for transmitida na televisão. Assim como é possível defender o distanciamento social e ao mesmo tempo entender a importância das manifestações nas ruas. Colocar o futebol como algo dispensável é não entender a dimensão que ele tem, seja por falta de propriedade no tema, seja por puro elitismo.

A contradição está neste projeto político genocida que não preza pela vida mas apenas pelos lucros e coloca o futebol dentro desta lógica. São – literalmente neste caso – os coveiros do futebol.

A mensagem política que a volta do futebol carrega é sim a de uma falsa normalidade. Precisamos utilizar esse fator ao nosso favor e mostrar que a contradição está em quem libera este tipo de atividade enquanto tem irmãos de bancada contaminados sem nenhuma assistência de saúde pela falta de leitos ou até mesmo sem conseguir acesso ao auxílio financeiro que lhe é de direito. A contradição está neste projeto político genocida que não preza pela vida mas apenas pelos lucros e coloca o futebol dentro desta lógica. São – literalmente neste caso – os coveiros do futebol. Para disputar espaços é preciso estar inserido neles. E nesse caso estamos muito atrasados, pois o futebol é um negócio milionário, globalizado e muito bem organizado por empresas e federações corruptas, enquanto nós – de modo geral – apenas repudiamos e afastamos mais ele. Quando afastamos o futebol, afastamos junto a possibilidade de diálogo com uma massa da classe trabalhadora e damos de bandeja para o inimigo político se apropriar de algo tão essencialmente popular e revolucionário. Nem sempre as cartilhas militantes carregam leituras para todas as realidades, e é  necessário humildade para reconhecer que temos muito o que aprender em cada novo processo. O famoso “ditar regra” sobre o que não entendemos apenas por teorias é um erro, já que estas não são receitas de bolo aplicáveis à qualquer espaço. As particularidades da conjuntura, os atores envolvidos, as simbologias, as contradições… todos estes fatores entram em campo quando vamos falar do futebol enquanto agente político e social. O debate sobre como disputar esses espaços está aberto e é necessário, mas com certeza não se fará justamente com a culpabilização do lado mais fraco nessa história.

Não à volta do futebol, sim a paixão!
Fora coveiros do futebol!

 

NOTAS

[1] Uma indicação de leitura para quem deseja conhecer a obra de Gilmar Mascarenhas e que se insere nessa temática simbólica e identitária do futebol é o texto de onde foi extraído esta citação: “A Mutante Dimensão Espacial Do Futebol: Forma Simbólica E Identidade”: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/article/viewFile/3492/2420

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coronavírus / futebol