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Uma Causa perdida

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Para o marxista, a discussão é uma arma importante, mas funcional da luta de classes. Para o sectário, a discussão é um fim em si mesmo (…) É como um homem que sacia sua sede com água salgada: quanto mais bebe, mais aumenta sua sede. Por isso, sua irritação constante (…) Para o sectário, todo aquele que trata de lhe explicar que a participação ativa no movimento operário exige o estudo permanente da situação objetiva no lugar dos conselhos altaneiros pronunciados desde a tribuna professoral sectária, é um inimigo. Em lugar de dedicar-se a analisar a realidade, o sectário se dedica a intrigas, rumores e histeria.[1]   Leon Trotsky

 

A Causa Operária é condenada, ou até estigmatizada, porque faz, há décadas, críticas ásperas, ríspidas e até grosseiras às outras organizações da esquerda brasileira. Esse julgamento não é, inteiramente, justo, porque as polêmicas são parte de uma vida política inteligente. Polêmicas, mesmo quando o tom é agressivo, e o interlocutor é, mentalmente, rígido, podem ser educativas.

O primeiro dever de um revolucionário é lutar pelas suas ideias. Com mais razão, uma organização que não luta pelo seu programa não merece existir. A Causa Operária é uma organização socialista, revelou temperança depois de quatro décadas de existência, e seus militantes merecem respeito porque são ativistas dedicados.

Mas há, realmente, um problema sério de método nas polêmicas que a Causa Operária tenta provocar. O problema é que a Causa não respeita as posições que decide criticar e, invariavelmente, exagera, extrapola, deturpa e até falsifica as posições dos outros. Esses excessos são usados, frequentemente, para sustentar conclusões desleais, abusivas e até absurdas como se pode conferir em Editorial, desta semana, intitulado “O que a direita quer com Boulos?”:

Boulos não é uma ameaça para a direita (…) Ele faz o jogo da direita (…) É uma peça central das manobras da burguesia(…) Boulos, nesse sentido, é a versão municipal da operação que levantou o nome do coronel cearense Ciro Gomes (PDT) nas eleições de 2018. E, ao fazer o PT desaparecer de maneira indolor, toda a massa petista seria pacificamente levada para ser controlada pela direita”.

Estamos diante de um expediente gravíssimo de “vale tudo” neste editorial. Não é um artigo assinado por um militante inexperiente. Vindo de uma organização que se reclama da tradição de Leon Trotsky é ainda mais grave. Trata-se de uma provocação: “peça central das manobras da burguesia?”. Uma das razões históricas de existência do trotskismo foi a defesa de métodos honrados na esquerda. Com este Editorial uma linha limite foi cruzada.

Não se trata mais de uma discussão política. A Causa Operária tem todo direito de criticar posicionamentos de quem quiser e, até mesmo, considerar que a candidatura Boulos/Erundina não seria oportuna, porque toda a esquerda deveria apoiar Tatto e o PT, em um primeiro turno, em função dos critérios x, y, ou z que são os seus. Trata-se de uma opção tática legítima. Controversa, mas legítima.

Mas nada, absolutamente nada, pode explicar a conclusão de que a candidatura do PSol seria “uma peça central das manobras da burguesia”. Denunciar a candidatura Boulos/Erundina, militantes dignos e abnegados, como agentes de uma manobra da burguesia não é um debate político, é um ataque desonesto. Ou, para responder nos termos que merecem, uma mentira, uma calúnia, uma infâmia. Evidentemente, o alvo da Causa Operária é, também, o PSol.

O incrível argumento da Causa Operária é que o PSol estaria levando para a direita uma parcela do eleitorado que, em outras eleições, votava no PT, e a candidatura Boulos seria um instrumento útil da burguesia para enfraquecer o PT. Não fosse o bastante, faz um amálgama, ou seja, uma associação tortuosa, ilícita e manipuladora entre o lugar da candidatura Boulos em 2020, e o papel de Ciro Gomes em 2018.

Qualquer juízo, minimamente, lúcido e isento sabe que isto é falso. A candidatura Boulos, tanto em 2018, quanto agora em 2020, é um instrumento de luta contra Bolsonaro, ao serviço das lutas dos trabalhadores, da juventude, do povo pobre das periferias, das mulheres e dos negros, uma ferramenta na resistência aos neofascistas. Boulos não é candidato contra Tatto, mas contra Covas, Joyce Hasserlmann, e todos os outros que farão a representação da classe dominante.

Mas é verdade que há uma disputa de projetos dentro da esquerda brasileira. Porque ela é plural, e não conhece partido único. O PSol não pensa, ao contrário da Causa Operária, que não apoiar Tatto é uma traição à esquerda. Somente uma interpretação sectária na fronteira da paranoica política pode concluir o contrário. A paranoia política é, infelizmente, muito comum. Mentes alteradas se deixam envenenar por fantasias de perseguição, vivem vulneráveis a teorias de conspiração, e sofrem com fobias obsessivas.

Os ziguezagues táticos desconcertantes da Causa Operária têm uma longa história de quarenta anos. Já teve, mesmo recentemente, seus momentos de ultraesquerdismo. Nas últimas eleições presidenciais em 2018 convocou à anulação do voto, mesmo diante da candidatura Jair Bolsonaro, porque Lula não conseguiu o registro como candidato. Mas o lugar político da Causa Operária tem sido, há vários anos, o de uma fração externa exaltada do PT, mais lulista que o lulismo.

O que define, essencialmente, o papel político da Causa Operária é o sectarismo. Aqueles que não concordam com a integralidade da visão de mundo dos sectários foram, sumariamente, identificados como inimigos – “cavalos de Tróia’ ou a “quinta coluna”.

Mas sectarismo não é sinônimo de ultraesquerdismo. Há correntes ultraesquerdistas que não são sectárias. É razoável afirmar que as organizações ultimatistas foram, predominantemente, doutrinárias na teoria, ou seja, tiveram um quadro ideológico de referências muito fechado, e reflexos defensivos sectários. Mas os grupos sectários não foram todos ultraesquerdistas. A Causa é um exemplo de como um sectarismo doentio pode estar ao serviço do oportunismo.

 

[1] TROTSKY, Leon, Sectarismo, Centrismo e a Quarta Internacional, in Escritos, Tomo VII, Volume 1,  p.231/232. Bogotá, Pluma, 1979 a. Tradução nossa