No mês de março, as universidades federais tiveram suspensas as suas atividades presenciais devido a pandemia da Covid-19. Naquele momento, os cálculos do Imperial College ainda soavam de forma um tanto quanto abstrata, restando somente a certeza de que seria fundamental o isolamento social enquanto forma de combater o contágio do vírus. Também em março, a educação básica teve suas aulas presenciais suspensas, aumentando o coro dos quase 800 milhões de estudantes fora da escola no mundo.
A ausência de qualquer planejamento sério por parte do MEC – marca registrada de qualquer ministério no governo Bolsonaro para o combate a pandemia – tem como síntese exemplar, a reunião ministerial do dia 22 de abril: em meio a uma crise sanitária que se avolumava cada vez mais, Weintraub seguia sua batalha quixotesca contra a “ideologia de gênero” e pela prisão dos “vagabundos” do STF. Se dentro desta aventura dantesca podemos sugerir algum tipo de planejamento, talvez o único possível seja o da difusão de fake news com altas doses de negacionismo. No governo genocida do presidente Bolsonaro, o absurdo é produzido num ritmo que deixaria com inveja qualquer esteira de produção; e esta dinâmica muita das vezes faz com que deixemos como uma lembrança distante algo que está logo ali, na esquina anterior. A título de exemplo “pré-pandêmico”, temos os problemas com as notas do resultado do ENEM 2019 e as declarações do ministro Weintraub sobre as (irreais) plantações de maconha nas universidades públicas; e em meio a pandemia, em abril, o então ministro da educação volta a cena propondo um retorno as aulas presenciais, classificando prefeitos e governadores enquanto “pessimistas e terroristas de plantão”.
O fato é que hoje vivemos uma pandemia sem precedentes no mundo moderno. Uma pandemia que escancara desigualdades econômicas e sociais entre países, e entre pessoas dentro destes mesmos territórios. Porém, estas desigualdades não tem uma origem no curso “natural” da história; pelo contrário, estruturam o modo de produção capitalista, ao passo que a partir dele se aprofundam ainda mais.
E exatamente por não termos um precedente ao qual possamos nos referenciar sem fazer grandes manobras teóricas, a pandemia nos coloca cada vez mais questões que nós, enquanto esquerda, devemos responder. Questões estas que não são fáceis de resolver e que nos coloca numa posição de enfrentar o problema de fato, fora de qualquer vulgarização teórica. E é neste terreno que este texto gostaria de se debruçar.
O caso UFBA e o ensino remoto emergencial
Nas últimas semanas, a reitoria da UFBA já vinha sinalizando sobre uma possível retomada das atividades de forma online, que culminou na divulgação de uma minuta, que dispõe sobre as orientações do retorno das atividades de forma remota. Encaminhada ao conselho universitário (CONSUNI), foi aprovada por ampla maioria (somente 1 voto contrário) no dia 21/07, quarta-feira. Importante destacar que o ensino remoto emergencial vem sendo debatido a nível nacional em outras universidades federais neste momento, como forma de retomada parcial ou integral do ensino; e isto ocorre numa altura em que ao que pese as diferentes etapas de pesquisa sobre o desenvolvimento de vacinas que combatam o covid-19, a mais próxima de nós só estará disponível em junho 2021.
De antemão, a aprovação da minuta tem um grande acerto que é a suspensão das atividades presenciais no ano de 2020. Evidentemente que isto pode parecer à primeira vista como uma simples obviedade, porém muito pelo contrário: é um duro golpe no movimento negacionista, que tendo como principal agente o presidente da república e sua corja, tentam a todo tempo sobrepor o lucro frente a vida das pessoas através da narrativa da reabertura do comércio. Mesmo que neste período esteja havendo um diálogo entre as reitorias das universidades públicas da Bahia através de seu fórum, esta medida adotada pela UFBA força com que estas outras instituições também se posicionem de forma similar quanto a suspensão das atividades neste ano – o que sem sombra de dúvidas é um grande acerto.
Nesse sentido, partindo da minuta, gostaria aqui de levantar 3 questões para a reflexão. São pontos sensíveis da carta, e devido a isto, merecem uma atenção particular.
Como o próprio texto da reitoria aponta, uma parcela considerável de “estudantes não dispõe de condições adequadas de estudo, equipamentos e acesso à internet nos locais onde moram”. Ao que pese o caráter historicamente excludente da universidade, nos últimos quinze anos, principalmente a partir da implementação da política de cotas, passam a entrar na universidade estudantes com outro perfil social. “Entrar e permanecer”: uma bandeira histórica do movimento estudantil que é colocada à prova de forma mais enérgica desde os cortes na educação do governo Dilma em 2015, passando pela PEC do teto de gastos do golpista Temer, e colidindo-se frontalmente com o governo genocida de Bolsonaro, encontra na pandemia talvez um dos seus principais dilemas. É preciso compreender a necessidade do acolhimento e o caráter inclusivo que a UFBA deve assumir neste momento: deve-se discutir questões pedagógicas e de conteúdo de disciplinas, mas a centralidade da retomada neste momento deve estar voltada para aqueles (as) estudantes que não tem acesso as mínimas condições materiais para o prosseguimento dos estudos. E mais do que isso: é preciso compreender que em decorrência da pandemia, muitos (as) estudantes ficaram desempregados ou tiveram sua renda familiar reduzida, o que possivelmente passa a limitar o acesso a internet por estas pessoas. Nós não podemos, de forma alguma, tratar vidas como meros números, como faz o governo Bolsonaro. É fundamental o mapeamento desse conjunto de discentes e a disponibilização de meios tecnológicos para que se possa acompanhar as disciplinas e atividades de forma satisfatória – incluindo-se também neste ponto os(as) discentes portadores(as) de necessidades especiais. Mais do que somente estar enquanto encaminhamento aprovado pelo CONSUNI, é preciso que esta medida se efetive na prática.
Outro ponto importante da minuta e que demanda uma atenção especial diz respeito a oferta de disciplinas. Nunca é demais repetir que vivemos numa pandemia sem precedentes no mundo moderno. Para parte de nós é possível estar em casa, em isolamento social; para outra parte de nós, devido a sua localização no mercado de trabalho, não. Além da própria rotina acadêmica que foi modificada em decorrência da pandemia, a saúde mental[1] vê-se às voltas com tantos estímulos que vão da política a crise sanitária. E esse conjunto de elementos que influenciam diretamente a nossa rotina neste momento de pandemia deve ser o balizador das tomadas de decisões, de modo a não sobrecarregar o corpo docente e os técnicos, assim como evitar qualquer tipo pressão ou assédio para o conjunto de discentes – seja da graduação ou da pós. Para tal, é muito importante a composição de um comitê de acompanhamento do ensino remoto emergencial na universidade, composto tanto pelas instâncias institucionais da universidade como pela ouvidoria da UFBA e entidades que representem as categorias dos técnicos (ASSUFBA), discentes (DCE e APG) e docentes (APUB). A aprovação deste comitê pelo conselho universitário foi um passo importante para que se fiscalize eventuais desvios pelos(as) representantes das categorias, além de colaborarem de forma efetiva para implementação do ensino remoto de caráter emergencial.
Por fim, cabe destacar que a implementação do ensino remoto emergencial deve acontecer da forma mais democrática possível. Não é segredo para ninguém as limitações de ordem tecnológica que pairam sobre o corpo docente, e também sobre discentes e técnicos. Defender que a universidade pública tenha um caráter majoritariamente presencial se posicionando contrário a implementação do ead (conforme propunha o Future-se), não implica assumir uma postura contrária à implementação das tecnologias na área pedagógica. E com a pandemia, os limites de caráter formativo da comunidade acadêmica para dar conta do ensino remoto ficam evidentes. Diferente do ensino a distância (ead) que possui uma estruturação pedagógica particular voltada para esta modalidade educacional, o ensino remoto emergencial, apesar do seu caráter extraordinário – o que o difere do ead – também demanda um projeto pedagógico diferenciado ao ensino presencial, mesmo que de forma pontual para atender a demanda de um semestre complementar. E mesmo que tomados (as) pela necessidade de uma resposta célere à retomada das atividades remotas, é preciso de tempo para o planejamento e elaboração de uma proposta que, mesmo pontual, dê conta desta nova realidade.
Evidentemente que esta proposta aprovada pelo conselho universitário pode gerar ruídos na sua aplicação. Todavia é preciso ressaltar os debates que foram realizados pelo conjunto dos departamentos e congregações na universidade. Ao que pese que houve um descompasso acerca do tempo de maturação da proposta por parte dessas instâncias, o fato é que por ter havido o debate, já se coloca a proposta num patamar diferente de uma resposta fechada e autoritária por parte da administração da universidade. O próprio papel que vem cumprindo o reitor João Carlos Salles frente a ANDIFES e em defesa da universidade pública é uma posição louvável e digna de aplausos.
Talvez o ensino remoto na UFBA, mesmo que em caráter emergencial, não seja a melhor saída. Entretanto, neste momento, torna-se a medida mais razoável. Cabe a nós, enquanto comunidade acadêmica, o acompanhamento, controle e posterior balanço desta medida aprovada pelo conselho universitário. Sigamos!
[1] Algumas instituições tem ofertado apoio psicológico durante a pandemia em Salvador.
*Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia
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