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Fascismo: que bicho é esse?

Tatiana Poggi, Rio de Janeiro (RJ)*

Manifestação contra o fascismo na Itália antes da guerra

Recentemente, o economista Eduardo Moreira teve como convidada, em um dos vídeo-debates publicado em seu perfil do Facebook, a professora de literatura e influenciadora Rita Von Hunty. Ao final do debate, a convidada recorda a indagação feita por um estudante à antropóloga Margareth Mead sobre o primeiro indício de civilização. A professora responde não com clássicas alusões a artefatos arqueológicos, mas afirmando ser um fêmur cicatrizado. Diante da surpresa da turma, Mead explicou que o fóssil de fêmur cicatrizado constituía evidência que essa comunidade humana bastante simples, vivendo em condições precárias e extremamente vulneráveis optou coletivamente e se organizou para manter vivo um de seus membros, nutrindo, cuidando e provendo segurança por várias semanas até que este se recuperasse. Segundo a antropóloga, a opção e organização coletiva no sentido de ajudar o outro em situação de vulnerabilidade seria o marco da civilização.1

Enxergar o outro como digno de vida e digno de empatia. É disso que se trata a civilização. O fascismo é antes de tudo uma crise civilizacional, pondo em questão nossa qualidade histórica de animal/ser social, coletivo articulado e organizado para a construção da vida a partir do meio natural. O fascismo atua no sentido inverso, como coletivo exclusivíssimo e mitificado organizado para a destruição da vida e do meio natural.

Historicamente, o fascismo nasceu em meio a um contexto de destruição da Europa e vitória de uma revolução socialista na Rússia, emergindo como resposta à crise do capitalismo liberal. O fascismo emerge em cenários de uma crise estrutural do capital, uma crise de hegemonia de um determinado padrão de dominação e acumulação do Capital, na qual nenhuma fração da burguesia se vê capaz de conduzir a direção da sociedade, levando a cabo um projeto de organização social da dominação. No entreguerras, essa crise se manifestou como crise do liberalismo, uma vez que essa era a forma de organização e reprodução do Capital. Diante da dificuldade dos setores da esquerda de mobilizar a classe trabalhadora e organizar um projeto alternativo de superação da crise, o fascismo ganhou terreno como alternativa de solução para a crise, sendo capaz de arregimentar setores do empresariado, uma vez que a proposta fascista não ataca o capitalismo enquanto relação social, setores médios frustrados e amedrontados com a perspectiva de proletarização e também parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora, desesperadas e sem horizonte.

A alternativa fascista conseguiu promover, assim, a rearticulação das forças de uma burguesia em crise, necessária para geração de um novo ciclo de acumulação de capital sob o controle do Estado, bem como controlar uma potencial revolta anticapitalista dos setores populares, redirecionando o medo, o desespero e a insegurança no sentido do ódio e da destruição da oposição e de minorias étnicas. É, portanto uma forma de organização e reprodução social do Capital, marcada por um alto grau de autoritarismo e violência, sedução política e mobilização popular, além de profunda exclusão ao ponto de sacrificar grupos sociais inteiros em nome de um projeto regenerador e salvacionista.2

Mas não é simplesmente uma ditadura. Diferente de ditaduras militares ou formas tradicionais de bonapartismo, o fascismo se destaca por conter um viés eliminacionista de divergentes (oposição política) e diferentes (minorias e grupos subalternizados), mobilizando e excitando as massas populares através de uma política altamente sedutora e ritualística. As pessoas são chamadas e incitadas a atuar na direção da perseguição, da destruição e da morte através de rituais e espetáculos meticulosamente planejados para tocar o que há de mais frágil e vulnerável na população, o medo pela vida, o instinto de sobrevivência. Há, portanto, a mobilização sistemática de forças emocionais, instintivas, mesmo inconscientes como vetor de destruição social, não apenas contra minorias e oposição, mas em última instância até contra si mesmo, o que Adorno chamou de pulsão de morte, um anseio heróico de dar a vida na construção da aventura fascista.3 Essa dimensão contraditória entre vida e morte, razão e instinto, renovação e destruição existe no fascismo e não deve ser desprezado, o que não anula claro toda discussão sobre responsabilidade social envolvida no fascismo.

O fascismo se nutre do medo, cresce onde reina a desesperança. Sua reposta ao cenário de crise é a violência e o ódio direcionados a determinados grupos sociais, responsabilizados pela crise e por todo o infortúnio social. Velhos ressentimentos, preconceitos historicamente existentes nas sociedades são reascendidos, construindo bodes expiatórios representados pela oposição política e por minorias locais e incitando o ódio contra eles. É construída toda uma narrativa, um imaginário de guerra constante entre superiores” e inferiores”, no qual esses grupos são culpabilizados pelo cenário de instabilidade, de crise, por todo o descontentamento e que sua mera existência constituiu uma ameaça. Por serem inferiores, terminariam por enfraquecer, degenerar e corromper a nação/pátria/raça/povo, comprometendo a existência, perpetuação e progresso de um povo. Vistos como ameaça, a relação social com tais grupos pode variar, desde o rechaço social aos indesejados, políticas de exclusão e controle social até o ponto de serem desumanizados, comumente comparados a animais e por essa razão não podem ser mais admitidos no convívio social.

Tal concepção de mundo confere ao fascismo um caráter embrionariamente hierárquico, naturalizando toda a sorte de desigualdades, seja social, étnico-racial, cultural ou política, todas inerentes ao homem. Entendemos logo porque o fascismo tem absoluta repulsa por qualquer tentativa de estreitamento de desigualdades, derivando daí seu anticomunismo e antissocialismo virulentos. Num cenário como esse não estamos a falar somente de repressão ou perseguição às lideranças, como observado em formas tradicionais de conservadorismo. Não basta criar um clima de tensão e terror. No momento em que se marca um determinando grupo como ameaça com potencial degenerador, reprimir não é o suficiente; é preciso eliminar, retirar todo o grupo do convívio social de modo a preservar a saúde do padrão humano envisionado.

A construção desse viés eliminacionista se dá em meio à articulação e mobilização do próprio movimento fascista, ou seja, não é necessária a vitória e consolidação do fascismo como regime, ainda que as estruturas e instituições do Estado contribuam enormemente para difusão desse tipo de visão. Um processo de fascistização, como já afirmava Poulantzas é um processo social complexo e muito anterior à ascensão ao poder, ocorre no seio das democracias liberais, brutalizando-as e naturalizando a barbárie gradativamente. Diferente de ditaduras tradicionais que trabalham desengajando e desmobilizando, o fascismo arregimenta massas desesperadas e enfurecidas de trabalhadores, especialmente saídos dos setores médios, aterrorizados diante da perspectiva de proletarização. O medo da proletarização é o grande combustível para o avanço do movimento fascista.4

Daniel Guerin analisa o forte investimento fascista na organização de comícios, celebrações e eventos grandiosos, marchas espetaculares, discursos eloquentes, que resgatavam símbolos que aludem à força, à honra, à grandiosidade, à disciplina e à ordem e constituíam fundamentalmente um cerimonial, cuidadosamente planejado, visando o convencimento político, o envolvimento visceral e o engajamento controlado das massas. O espetáculo político-social tornava-se ainda mais grandioso devido ao papel desempenhado pela propaganda e pelos meios de comunicação de massa. Através deles era difundido um discurso fortemente apelativo, explorando medos e preconceitos populares e fomentando bodes expiatórios na figura do judeu estrangeiro e mesquinho, do cigano sujo e desonesto, do comunista ameaçador da ordem e da propriedade, do político corrupto, do banqueiro usurpador, etc. Esse tipo de discurso buscava justamente encobrir as diferenças e conflitos classistas, criando identidade em torno do ideal de uma coletividade mitificada (o italiano autêntico, o alemão puro, o americano WASP ou cidadão de bem), do patriotismo e da idéia de progresso da nação como um todo. Tal ideal de unidade foi reforçado, durante as experiências fascistas do entreguerras, por políticas públicas, programas sociais, grandes obras públicas, uma política de estabilização dos preços, que incorporavam, ainda que parcialmente, os anseios de estabilidade e segurança material dos setores médios e trabalhadores urbanos e rurais.5

Hoje nem mais esse horizonte o fascismo oferece. Os contornos dos fascismos hoje são sensivelmente diferentes. Não poderia deixar de ser. Nenhum episódio histórico é reencenação pura e simples do passado. Nossa crise estrutural hoje se constrói no seio do neoliberalismo, que vem alimentando o neofascismo. Observa-se um estímulo à privatização da violência, debilitando a noção de monopólio da violência legítima. Isso sem falar no poder político crescente das redes digitais internacionais e dos grupos religiosos empresariais.

Para finalizar essas breves notas sobre o fascismo, pensemos no que ele come. Come gente. Come a gente. Come toda a gente com medo e tudo aquilo que julga inferior e indígno da vida. Come o espírito e tudo aquilo nos faz humanos. Pois se o ser humano não é somente um animal dotado de instintos biológicos, mas de atributos racionais e fundamentalmente um ser social, com necessidades originadas do estômago e da fantasia; um animal, portanto político e cultural, movido também por apetites do espírito, o fascismo se põe não só como devorador de vidas, mas também de sonhos. O fascismo devora as mais sofisticadas ilusões do Capital, seus fetiches mais bem acabados, o ideário de igualdade e da meritocracia. Diante de sua sana ceifadora resta muito pouco ou quase nada do ser, um animal apenas ou sequer isso.

*Tatiana Poggi, profesora doutora de História Contemporânea pela Univerisdade Federal Fluminense (UFF), especialista em história contemporânea, com ênfase nos temas sobre Movimentos Conservadores: fascismo e neofascismo, entre outros.

2 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere (Vol. 3). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 95, 60 e 61.

GRAMSCI, Antonio. Sobre el fascismo. Ediciones Era: Cidade do Mexico, 1979.

POULANTZAS, Nicos. Fascism and Dictatorship. NLB: London, 1974.

MANDEL, Ernest. Sobre o fascismo. Lisboa: Antídoto, 1976.

3 ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Unesp, 2015.p.137-189.

REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Porto: 1974.

4 POULANTZAS, Nicos. Fascism and Dictatorship. NLB: London, 1974.

5 GUERIN, Daniel. Fascismo y Gran Capital. Madrid: Editorial Fundamentos, 1973. P.95-154.

KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.p. 47-59; 101-109; 329-340.