Pular para o conteúdo
Especiais

Boulos&Erundina: um projeto feminista para os 99% em São Paulo

Carolina Freitas, Mariana Faria e Maria Luiza Nogueira, da Resistência Feminista SP
Divulgação

A defesa de uma candidatura do PSOL para concorrer à Prefeitura de São Paulo envolve debates variados. Não estamos falando de qualquer partido: o PSOL nos últimos anos se consolidou como uma referência pública nacional no combate às opressões de gênero, raça e sexualidade. Por isso, iniciamos esse texto afirmando ser expressão dessa grande conquista política o perfil das pré-candidaturas às eleições municipais. É motivo de orgulho termos entre elas Sâmia Bomfim, companheira que ecoa a voz das mulheres no Parlamento, e Alexya Salvador, que é uma lutadora incansável contra ataques fundamentalistas religiosos às LGBTQI+. Por isso, em primeiro lugar, repudiamos com toda veemência os ataques que Alexya vem sofrendo e estamos juntas na sua defesa.

Dito isso, queremos desenvolver nesse texto porque acreditamos que a pré-candidatura de Guilherme Boulos e Luiza Erundina representa um programa e um caminho de reorganização da esquerda que posiciona melhor um programa anticapitalista, contra o racismo, o machismo e a violência às LGBTQI+ na cidade.

Não estamos falando de qualquer cidade: São Paulo é a metrópole mais rica da América Latina e a capital de desigualdades no Brasil. Aqui, um morador de Moema tem direito a viver 20 anos mais do que alguém da Cidade Tiradentes. As segregações espaciais são aberrantemente raciais. Essa metrópole, que tem a mais volumosa circulação de dinheiro, mercadorias e capitais do continente, é sustentada por corpos negros e femininos. E só essa base da pirâmide social pode abalar as estruturas do “poder bandeirante” da Avenida Faria Lima.

Quem faz São Paulo acordar todo dia?

Milhões de trabalhadoras domésticas, assistentes sociais, caixas de mercado, atendentes, professoras, ambulantes, auxiliares administrativas, técnicas de enfermagem, costureiras, operadoras de call center, merendeiras… Toda a força de trabalho que constrói a riqueza na cidade pode voltar ao batente dia após dia, porque mulheres, assalariadas ou não, garantem o que é necessário para essa recomposição coletiva.

Os governantes de São Paulo não apenas desvalorizam o trabalho feminino e negro da linha de frente da cidade, como atuam em prol dos interesses de grandes proprietários e empresários, para minar os serviços, espaços e equipamentos públicos que mantém as condições, mesmo que precárias, de sobrevivência dessas mulheres e de suas famílias, por quem também são responsáveis economicamente.

Durante a pandemia, muitas mulheres negras e trabalhadoras adoeceram ou morreram em função do papel social que ocupam para girar a roda da economia paulistana, enquanto os hospitais e unidades básicas lotavam nos bairros no fundão da cidade. De maneira mais aparentemente republicana, como Bruno Covas e João Dória, ou de maneira mais explicitamente violenta, como Bolsonaro, o plano é a retomada do lucro das empresas. A cidade mais rica da América Latina poderia prover uma renda básica municipal, há dinheiro para isso, mas os interesses passam longe da subsistência dessas famílias de “mães contra o mundo”, como disseram os Racionais.

Privatização do ensino público, terceirização de serviços, fechamento de creches, aumento tarifário do transporte, reforma previdenciária de servidores, remoções forçadas de terrenos ocupados, aumento das taxas de genocídio de jovens negros pela polícia militar… todos esses processos de expropriação em curso se combinaram violentamente com os impactos da pandemia por covid-19 nos bairros periféricos, como na Brasilândia e em Sapopemba.

Durante a pandemia, novamente vêm à tona essas contradições profundas: segundo o levantamento do Mapa das Desigualdades feito em junho, são 3,5 vezes mais óbitos por covid-19 nas regiões com menor expectativa de vida do município do que nos distritos onde as pessoas vivem mais.

Feminismo para os 99%: um projeto da maioria para São Paulo

Diante da gravidade desse cenário, a defesa de um projeto político que seja para e pela maioria é algo que aspiramos para o PSOL crescer em São Paulo. O antagonismo político com o 1% de grandes proprietários capitalistas, que abocanham a riqueza construída pelos 99%, deve se manifestar contra os baixos salários, contra os cercos na cidade pelos interesses imobiliários, contra o projeto de militarização em marcha que implode qualquer garantia de vida ou integridade física às vidas negras e LGBTQI+ nas periferias.

Recentemente, a esposa do governador João Dória afirmou, do alto do seu ódio de classe, que pessoas sem-teto poderiam se acostumar a viver nas ruas se recebessem doação de alimentos. No pólo oposto ao que essa mulher burguesa representa, temos o MTST de Guilherme Boulos e de tantas lideranças femininas negras sem teto, que lançaram uma potente campanha de solidariedade ativa na cidade para ajudar quem mais precisa. Boulos já se consolidou na cena pública como o opositor mais preocupante aos interesses da elite paulistana. Isso não é pouco.

Não consideramos um acaso o fato de mulheres negras serem as lideranças de movimentos sociais de moradia, de base de categorias de trabalho muito exploradas e numerosas na cidade, de redes de coletivos culturais de periferias, das iniciativas de solidariedade que pipocaram às dezenas durante a pandemia. Se o alvo do Estado neoliberal é certo e determinado, o sujeito que reage e luta pela vida também é.

Um programa para a cidade de São Paulo deve partir de uma noção concreta de classe trabalhadora, entendendo raça, gênero e sexualidade não apenas como causalidades funcionais ao capitalismo, mas como partes essenciais da formação do todo social.

Nós apostamos que a aproximação e unidade com os movimentos sociais, como o MTST, é o que garantirá que o PSOL tenha referência nessa classe trabalhadora que queremos afirmar nessa sua realidade e diversidade concretas, expressa na multiplicidade das lutas existentes. Para nós, o projeto do feminismo para os 99% também considera o pressuposto de que ele será feito e implementado por estes mesmos 99%.

O projeto para o PSOL expresso pelos setores que apoiam a pré-candidatura de Boulos e Erundina sustentam justamente isso: a defesa de uma estratégia da maioria implica o chamado à unificação entre as diversas expressões organizativas oriundas dessa maioria, um projeto de frente permanente dos movimentos sociais do povo pobre e trabalhador de São Paulo que seja independente do jogo do dinheiro, fonte do poder branco e masculino. Precisamos construir um todo maior do que as suas partes: algo conduzido a partir do PSOL, mas que expanda as fronteiras do partido, ecoando assim as diferentes resistências da cidade.

Por isso, nossa opção na chapa Boulos e Erundina é uma escolha pelo feminismo para e pelos 99%. Defendemos que esta chapa é a melhor na disputa do PSOL por um projeto anticapitalista justamente no que isso significa combater as formas racializadas, generificadas e sexualmente coercitivas de viver em sociedade. Esse combate não deve ser apenas um conjunto de ideias anunciadas, mas uma intenção prática de organização, uma estratégia de poder das mulheres trabalhadoras, negras e periféricas em São Paulo.

Essa preocupação do método de construção política também tem a ver com admitir a importância dos movimentos sociais envolvidos na pré-candidatura serem expressão de uma reorganização histórica, que ecoa junho de 2013, mas que também fez a esquerda sobreviver à reviravolta na correlação social e política de forças na situação defensiva que se abriu em seguida.

Foi essa experiência de unidade que projetou a Frente Povo Sem Medo, e a participação do PSOL em seu interior, e que nos permitiu lutar contra o golpe e os processos destampados por ele de medidas austericidas e violência às liberdades democráticas do governo Temer e agora das aspirações neofascistas de Bolsonaro.

Nossa estratégia para São Paulo, portanto, é reavivar as condições que permitiram momentos de enfrentamento muito radicais dessa classe concretamente existente. Esses momentos tiveram na luta dos oprimidos no seu centro: movimentos negros, feministas, LGBTQI+, de juventude, periféricos, culturais se misturam e metamorfoseiam lutas sociais mais tradicionais de sentido econômico imediato, como o movimento de moradia e sindical. 2013 foi a síntese dessas expressões políticas, em que representações e identidades múltiplas recriavam sentidos aos métodos e sentidos de independência da classe trabalhadora.

Boulos&Erundina: mutirões no poder!

Os conflitos sociais na história da cidade de São Paulo sempre tiveram o protagonismo das mulheres negras e periféricas. O início da década de 1970 marca o auge da repressão ditatorial, mas também um ciclo novo de lutas e greves populares, que tinha em seu alicerce os clubes de mães da periferia, as comunidades eclesiais de base, os movimentos contra o custo de vida. Nessa época, em São Paulo, a reprodução social do povo pobre e trabalhador dependia em grande medida da sua auto-organização: quem não tem na família ou entre conhecidos a memória da vizinhança batendo laje e cuidando das crianças da rua?

O bloco histórico que levou Erundina, assistente social paraibana, ao poder, em 1989, encontrou um enorme crescimento populacional e de pobreza em São Paulo. Sua vitória foi marcada pelo grande levante operário expresso pela greve da CSN no ano anterior. Muitas experiências mais bem ou mal sucedidas foram determinantes para a realização prática de apostas da esquerda que garantiram novos direitos às mulheres trabalhadoras nessa época: mutirões de autogestão subsidiados pelo Estado foram organizados em muitas concentrações periféricas da cidade, garantindo habitação a baixo custo e com boa qualidade a milhares de famílias. Também houve a formulação de uma nova concepção de creches públicas, que foram entregues em ritmo inédito, liberando assim milhares de trabalhadoras para as atividades no espaço público e para sua independência financeira.

Por isso, também consideramos a chapa Boulos e Erundina como a melhor referência histórica. Um elo entre dois períodos marcados pela luta popular de antigas e novas personagens entrando em cena.

Parafraseando Nancy Fraser e Lisa Featherstone quando escreveram um artigo defendendo que Bernie Sanders era o melhor candidato nas eleições presidenciais dos EUA neste ano para um projeto feminista de sociedade, afirmamos aqui: não apoiamos Boulos e Erundina apesar de sermos feministas, mas é justamente por sermos feministas que acreditamos que essa chapa representa, com mais potência, a defesa de uma vida digna nas periferias e um novo modelo de reprodução social que sirva às mulheres negras, LGBTs e trabalhadoras.