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Obreirismo e identitarismo: uma breve nota sobre convergências e divergências

Reprodução/Biblioteca Anarquista

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Em face dela [da contradição], a identidade é apenas a determinação do simples imediato, do ser morto; mas a contradição é a raiz de todo o movimento e de toda a vida; só enquanto tem em si mesma uma contradição uma coisa pode se mover, ter um impulso e uma atividade”
(Hegel)

Tal qual o finado obreirismo não foi uma política consequente com os reais interesses históricos dos trabalhadores, o identitarismo em voga está longe ser uma arma nas lutas contra as várias opressões contemporâneas. Pode-se dizer, à guisa de introdução desta nota, que, no plano ideológico, o obreirismo esteve para os operários em luta de outrora assim como o identitarismo está para as identidades oprimidas em luta hoje. A emancipação destas identidades, de forma efetiva, só é possível se um sujeito em particular, a classe trabalhadora, composta por múltiplas particularidades, vier a destronar o reino da propriedade particular, por meio da qual se dá a exploração sob a qual se assentam e são reproduzidas todas as formas de opressão.

Tanto o obreirismo do início do século XX quanto o identitarismo do início do século XXI exprimem um culto empiricista aos modos, experiências e consciência do suposto “sujeito da transformação”. Contraditoriamente, esse culto do sujeito é, na verdade, um culto do objeto tal como este se apresenta de imediato, na medida em que a simples existência desse objeto já parece dotá-lo da condição de sujeito disruptivo, dispensando ou mesmo interditando, assim, qualquer papel crítico, consciente e racional a ele advindo “de fora”. No caso do antigo obreirismo, a contradição entre a defesa leniniana do papel da consciência (o “elemento consciente” revolucionário, expresso pela figura do intelectual e do partido marxista – o “intelectual coletivo” de Gramsci) e o fetiche empiricista do “operário”, tal como este vive, se veste, come e pensa, era resolvida toscamente pelo próprio “empoderamento” – avant la lettre – dos “operários propriamente ditos”, então alçados à condição de altos dirigentes do partido supostamente revolucionário – e não é escusado lembrarmos que, como uma tática para o expurgo do trotskismo do interior dos PCs então em processo de estalinização, tal “empoderamento” se deu às custas dos intelectuais, vistos como “pequeno-burgueses”, “distantes do povo”, “privilegiados”, em uma palavra, “trotskistas”.

Tanto o romântico obreirismo quanto o ingênuo identitarismo ignoram, na prática, a existência da alienação e da dominação ideológica sobre os explorados e oprimidos, e é precisamente esta ignorância que lhes confere um teor ideológico essencialista, como se o explorado e o oprimido, pela simples condição de explorado e oprimido, já manifestassem subjetivamente a crítica à exploração e à opressão, respectivamente, isto é, como se eles já fossem objetos que, pela sua própria situação objetal, estivessem capazes de, sozinhos e automaticamente (pela sua experiência ou “vivência”), reconhecê-la, criticá-la e, assim, tornarem-se sujeitos da sua emancipação. Nessa lógica, o próprio objeto, simplesmente por ser objeto, já conteria em si a consciência crítica da sua objetificação e, nesse sentido, já seria também um sujeito, ou, numa versão vulgar da fenomenologia hegeliana, um “universal”, o qual realizaria finalmente a identidade sujeito-objeto (“a identidade da identidade com a não-identidade”), rumo ao espírito absoluto. Por óbvio, essa lógica não é senão o oposto da perspectiva crítica hegeliano-marxista, na qual a dimensão processual e o movimento dialético do real não dá espaço a nenhum tipo de essencialismo estático das identidades, tal qual parece ter lugar nos neo-eleatas identitaristas. 

Evidentemente, há também muitas diferenças entre o vetusto obreirismo e o jovial identitarismo, a começar pela ruptura com a noção de universalidade – e mesmo com a própria noção de ruptura (ao menos com a ruptura diante do capitalismo). Em ambos os casos, entretanto, essa negação prática das categorias de alienação e ideologia expressa na idolatria do modo de vida do explorado/oprimido parece dar vazão a alguma culpa de classe, mais precisamente a uma culpa pequeno-burguesa, cujo esvair e consequente alívio parecem se processar por meio da adoração acrítica dos sujeitos sociais diante dos quais sua classe de origem, a pequena-burguesia, pode ser considerada “privilegiada”.

Correspondente à antiga morfologia do mundo do trabalho e influenciada pela perspectiva universalista e revolucionária, a ideologia obreirista de antanho encontrava na classe trabalhadora o objeto perfeito para sua objetificação fetichista. Mesma a mais brutal ignorância do trabalhador comum sobre a sua própria condição de trabalhador, ignorância fruto da própria alienação do trabalho e da dominação ideológica as quais estava sujeito, era tomada como virtude, sendo vista como a genuína consciência operária. “Transformando a praga em benção” e substituindo “a razão pela insensatez”, para citarmos Goethe, toda e qualquer atividade crítica intelectual era condenada como um “intelectualismo pequeno-burguês”, e toda erudição era vista como uma hostilidade à “classe operária”, de modo que nada poderia parecer mais óbvio e justo do ponto de vista “popular” do que Astrojildo Pereira e Otávio Brandão perderem seus postos para operários de origem, como Lauro Reginaldo da Rocha, o “Bangu”, assim como na URSS o filho de sapateiro e rude georgiano havia corretamente removido do partido o “judeu e intelectual pequeno-burguês”, cujo amor ao melhor da ciência e da cultura ocidentais nunca foi escondido, e que certa feita havia se lamentado que, ao incendiarem a casa dos seus senhores boiardos, os revoltosos mujiques, ignorantes, deixaram queimar junto todos os livros das suas bibliotecas. Convém notar, aliás, que os mais estrepitosos críticos aos “intelectuais pequeno-burgueses”, tanto na URSS quanto aqui e alhures, foram muitas vezes os próprios intelectuais afinados com a doutrina da moda dirigente. Em uma palavra: entre os mais raivosos obreiristas estiveram justamente os intelectuais pequeno-burgueses.

Correspondente à atual morfologia do mundo do trabalho e influenciada pela perspectiva fragmentária e performática contemporânea, a ideologia identitarista encontra não na classe trabalhadora enquanto classe, mas nos setores oprimidos desta – e também fora desta! – o seu objeto de idolatria empiricista, agora bem mais irracionalista do que sua antecessora, na medida em que a própria razão, assim como o marxismo, taxado de “científico”, são abertamente condenados. Para o identitarismo, contudo, não há sequer um sujeito universal para a emancipação universal por meio da superação do sistema capitalista – posto que já não há “nem sujeitos, nem universalidade e nem emancipação possível”, e sim vários sujeitos e múltiplas identidades as quais devem ser empoderadas via representatividade dentro do próprio sistema capitalista. Destaca-se o fato de que, já não havendo uma classe trabalhadora propriamente dita na concepção dos identitaristas, para os quais a condição de trabalhador não é senão “mais uma identidade” entre outras – e justamente a menos por eles invocada (quando o é!) -, fica até mais fácil ao “teórico” identitarista encontrar muitas vezes dentro da sua própria classe de origem um grupo oprimido com o qual possa se identificar. Sendo evidente a composição majoritariamente pequeno-burguesa destes “teóricos”, eles agora podem buscar amainar sua culpa de classe por meio da sua própria classe, ou até de si mesmo, num claro narcisismo cujas manifestações egoicas e “lacradoras” nas redes sociais, e o culto nestas aos “influencers” oprimidos, o comprovam por si só. Assim, a grande batalha dos identitaristas é pelo empoderamento individual ou no máximo grupal dos oprimidos nas instituições do sistema, como se este, uma vez dotado de mais representatividade, viesse a ser menos opressor e quiçá menos capitalista. Curiosamente, até mesmo nessa batalha “por dentro”, nem mesmo a reivindicação de mais representatividade do “trabalhador” ganha algum espaço, afinal, essa talvez seja uma identidade com a qual os identitaristas não se identificam muito. Assim como ocorreu com o obreirismo, é justamente entre a pequena burguesia que a crítica ao “privilégio” – não o do capital sobre o trabalho e sim entre as várias camadas da heterogênea classe trabalhadora – é feita de forma mais estridente, como se numa catarse de cancelamentos o seu próprio privilégio pudesse vir a ser anulado, como se a ausência de crítica teórica às condições capitalistas que sustentam toda e qualquer opressão contemporânea já fosse, por si mesma, uma crítica prática à determinada opressão em particular, como se a crítica da ciência viesse a contribuir para que os opressores tomassem ciência da opressão e, assim, quem sabe, “repensassem suas práticas cotidianas, suas falas, seus silenciamentos” e, por meio da “tomada de consciência” (não à maneira marxiana, e sim feuerbachiana), do bom dia ao porteiro chegassem, num belo dia, ao fim do exercício da opressão.

Idealistas – tal qual seus antecessores obreiristas -, os identitaristas criticam qualquer crítica ao objeto que seja “exterior” ao próprio objeto, apenas para atribuírem do exterior, eles próprios, características essencialistas aos mesmos objetos – e nesse ponto não é coincidência a matriz pós-estruturalista e o “idealismo objetivo” (Lukács e Carlos Nelson Coutinho) que vertebram boa parte das análises dos “teóricos” identitaristas, para os quais a advertência de Marx a Weitling sobre a ignorância deve ter sido não só ríspida como também “iluminista” e “cientificista”, e para quem o velho Vladimir talvez não tivesse muito mais “o que fazer” além de “deixar o mujique falar”…