“Eu quero os meus filhos de anel no dedo, anel de doutor, aos pés de xangô”
Mãe Aninha de Afonjá
É indiscutível nos movimentos sociais que as cotas são uma importante conquista na luta por reparação histórica. As cotas raciais constituem uma grande vitória das lutas sociais, do movimento negro, por reparação histórica, em um país como o Brasil – marcado por profundas desigualdades sociais, sustentadas pelo racismo estrutural, fruto de quase quatro séculos de um regime escravocrata.
O Estado Brasileiro nunca se preocupou em sanar a dívida com a população negra que teve seus antepassados escravizados, pelo contrário, adotou uma política de embranquecimento do povo, ao passo que pregava o mito da democracia racial, enquanto criminaliza e mata a juventude negra. Mas nada disso fez nosso povo sucumbir, apenas nos deu mais forças para continuamos em luta constante. A luta pela autodeclaração dos negros e negras, por exemplo, foi uma conquista muito importante do movimento negro contra a ideologia do “embranquecimento ideal”, que levou muitos negros a negarem sua etnia e se identificarem como moreno(a), pardo (a) – termo em disputa, ou até mesmo como brancos (as). Tudo isso de forma muito bem elaborada, baseado em um projeto eugenista para dividir e embranquecer a população brasileira. Não nos esqueçamos: o reconhecimento da identidade de um povo é fundamental para suas lutas.
Nesse sentido, a conquista das cotas raciais nas Universidades públicas do Brasil representa um marco histórico na sociedade brasileira. A Universidade do Estado da Bahia – UNEB, foi a pioneira a adotar o sistema de cotas (2002), através do seu conselho universitário, dez anos antes da lei federal (nº 12.711/2012), seguindo o critério étnico-racial, com recorte de renda e escolaridade, cumprindo um papel de vanguarda entre as Universidades brasileiras. Destaca-se também, a implantação da comissão para validação de documentos para o acesso ao sistema de cotas, implantado em 2019. No entanto, isso não foi o suficiente para barrar as fraudes, sobretudo nos cursos mais concorridos. O que mostra que pessoas brancas insistem em burlar o sistema de cotas na tentativa de ocupar um espaço que não lhe pertencem.
A partir dessa realidade concreta, o DCE da UNEB – Gestão a UNEB vale a luta, lançou na última quinta feira (09) a campanha COTAS SIM! FRAUDES NÃO – Entrar, permanecer e enegrecer! O objetivo, como o próprio enunciado já pontua, é barrar as tentativas de fraudes nas cotas na UNEB e avançar na garantia de que as cotas sirvam de fato como reparação histórica, para aqueles e aquelas que tiveram seu acesso à educação negado pelo racismo.
Para dar início a campanha, o DCE da UNEB organizou uma live com grandes referências do movimento negro, cuja trajetória de luta torna-se uma inspiração para as novas gerações: Vilma Reis – socióloga, doutoranda em estudos africanos, defensora dos direitos humanos e membro da Mahin – organização de mulheres negras; Marcilene Garcia – professora de sociologia do IFBA, doutora em sociologia e coordenadora da diretoria de políticas afirmativas do IFBA; e Valdelio Silva – professor de antropologia da UNEB, doutor em estudos africanos, e primeiro candidato negro a presidência da UNE; Três grandes intelectuais orgânicos que atuam pela defesa da educação e pela garantia de políticas afirmativas que atuem para o avanço da justiça social.
A luta pela implementação das cotas raciais e o papel da universidade
“Quase 20 anos depois de ver a UNEB instituir as politicas de ações afirmativas para acolher a Bahia negra, essa campanha do DCE se torna um sopro de esperança por cumprir e honrar os compromissos históricos com nosso povo”. Foi assim que Vilma Reis iniciou suas falas, relembrando as lutas históricas do movimento negro, saudando o DCE da UNEB e desejando que essa campanha inspire os quatro cantos do país e a própria UNE (União nacional dos Estudantes) a enfrentar o debate das fraudes nas cotas.
A luta pela implementação das cotas nacionalmente foi uma batalha árdua, relembra Vilma. Além da mídia e da burguesia brasileira, muitos intelectuais brasileiros na época se levantaram contra a luta do movimento negro por direitos e reparação histórica, inclusive quem deveria ser aliado, como parte da esquerda no Brasil. O papel da esquerda no mundo, por princípio, deve ser a luta por justiça social, olhando sempre pra situação racial de cada país. Não adianta dizer apenas “black lives matter” se esse discurso não for posto em prática. Como dizia Almícar Cabral “Não queremos que fiquem [os brancos] em nossa frente. Fiquem ao lado ou guardem as nossas costas, porque nós vamos dirigir essa luta”. Mas não pode ser que a tarefa de enfrentar o racismo seja exclusivamente do povo negro. O projeto do povo negro no Brasil é de uma sociedade com justiça social e possibilidades de enfrentar essa desigualdade brutal pra todos, todas e todes. E por isso, é um projeto que a sociedade inteira precisa se envolver.
Uma reflexão importante a ser feita, como ressalta o professor Valdélio Silva, é que falar sobre cotas é falar sobre a função social das universidades públicas, que são mantidas pelo Estado e financiadas pela sociedade. A maior parte do nosso povo trabalhador, homens e mulheres que nunca vão entrar na universidade, são aqueles que financiam a universidade pública. Ou seja, a discussão sobre cotas está associada a necessidade de repensarmos o caráter das universidades públicas das quais fazemos parte, porque não pode ser que a universidade fale pra si mesmo e se feche em seus muros.
A universidade brasileira teve como principal finalidade, historicamente, formar as elites brancas que hoje estão no comando do país. E se a gente não entende pra quem as universidades funcionam, a gente não entende os empecilhos e obstáculos que estão no caminho. Por essa lógica, mesmo quando implantadas as politicas como as cotas, elas continuam sendo objeto de fraude.
Como barrar as fraudes nas cotas?
A UNEB foi pioneira na mudança da configuração das universidades brasileiras. Porém, de forma institucional, a fraude nas cotas não foi combatida. Enquanto ouvidora geral da defensoria pública, Vilma Reis conta que acolheu diversos estudantes que fizeram processo seletivo na UNEB, especialmente em medicina. Esses estudantes foram violentamente injustiçados no processo das cotas, e por isso, ela enquanto ouvidora, acolheu a demanda desses processos e a partir disso oficiou todas as direções da UNEB para que se pronunciassem e resolvessem o problema das fraudes, o que até então, não avançou institucionalmente.
A UNEB possui banca de validação, é fato. Mas é uma banca que apenas confere documentos, sem nenhum tipo de aferição de fenótipo, que são as chamadas bancas de heteroidentificação. Por isso, tem sido impossível barrar a fraude nas cotas. As políticas de ações afirmativas não podem servir apenas para entrar, mas garantir que aqueles e aquelas que ocupem essas vagas sejam de fato quem tem direito, por isso, a tarefa nº1 precisa ser a de garantir uma política efetiva. Mas nós temos também que refletir sobre o conceito de ação afirmativa. Esse não pode ser um conceito estagnado. Ações afirmativas não se resumem a cotas raciais ou cotas em sentido amplo. E cotas não se resume a processo de ingresso. É preciso ter política de permanência. Então nesse sentido é pensar se a finalidade da política está sendo cumprida, que no caso das cotas raciais, é de incluir as pessoas negras.
Em suas contribuições, a professora Marcilene Garcia, refletiu muito sobre como construir as bancas de heteroidentificação para barrar as fraudes nas cotas. Doutora em sociologia, ela pesquisa relações raciais desde 1994, quando entrou na universidade. Com experiência na UFPR, conta que naquela época, de quase 4 mil vagas na graduação, apenas 40 eram ocupadas por negros anualmente. A UFPR tem bancas de aferição desde que as cotas foram aprovadas, e a Marcilene atua nas bancas desde então. A realidade das bancas na UFPR não é a mesma da UNEB e de várias outras universidades que, mesmo após décadas de aprovação das cotas, não possuem bancas de heteroidentificação.
Refletir sobre a presença negra na universidade é refletir sobre o Brasil e o enfrentamento as desigualdades raciais. O desafio que temos na UNEB é um desafio que precisa ser enfrentado nas demais universidades e por isso é fundamental se questionar: por que tantos anos depois da aprovação das cotas a gente ainda não tem um mecanismo mais efetivo de enfrentar as fraudes e garantir que efetivamente os sujeitos de direito tenho o acesso e não tenham suas vagas usurpadas? Por que há tanto silêncio e conivência com as fraudes nas cotas raciais? Qual seria o olhar da sociedade para um negro fraudando a vaga de um branco num curso de medicina?
Esses são alguns questionamentos importantes a se fazer, porque as instituições sabem da existência das fraudes. E continuam em silêncio. Marcilene aponta que em suas pesquisas, chegou-se a conclusão que até 40% das cotas são ocupadas por pessoas que fraudaram. Uma universidade específica do Nordeste em que acompanhou, apurou 60% de brancos na banca. “É importante refletir sobre esses dados e pensar porque essas instituições se mantiveram omissas, em silêncio, praticando racismo institucional, e garantindo a manutenção desse estado de coisas que tem usurpado as vagas nas universidades. Os órgãos precisam ser sancionadas e os seus gestores também.”
A diversidade negra e as bancas de heteroidentificação
Marcilene também levantou um debate importante sobre pretos e pardos. Segundo ela, no Brasil de cada 10 negros 1 pessoa é preta e 9 pessoas são pardas. E é muito importante compreender que pessoas pardas também são pessoas negras. “É preciso compreender que o debate sobre a negritude no Brasil perpassa pelo reconhecimento de que as pessoas pardas, portanto negras com traços fenotípicos negróides menos acentuados, são também negros e portanto sujeitos de direitos”.
É preciso construir um método de implementação de bancas de aferição, baseada em estudos, com investimento e treinamento das bancas e funcionários. Os funcionários precisam compreender o que é fenótipo, por exemplo, e também tenham uma apreensão do que é ser negro, ser preto e ser pardo. O debate do colorismo tem surgido muito nos últimos tempos, apontando que as pessoas negras de pele mais clara estariam em situações de mais vantagens. Mas será que estão mesmo? Segundo Marcilene, efetivamente na concretude da realidade, nada atesta para acreditar que uma pessoa negra de pele mais clara tenha privilégios. “Ela pode ter uma vantagem de R$ 45 reais no salário em relação a um preto, em Salvador. Mas vai ter uma desvantagem de R$1.200 em relação ao branco”. Isso não significa que pessoas de pele mais clara passem pelas mesmas situações de racismo do que pessoas pretas retintas. Mas “privilégios” não deve ser a palavra utilizada nesse sentido, haja vista que pretos e pardos estão em situação muito parecida de racismo estrutural e precarização.
Ainda assim, sabemos que nosso racismo não é um racismo de origem, é um racismo de fenótipo, de aparência, seja pretos ou pardos. Mas não pode ser que as universidades utilizem como desculpa para não ter as bancas de aferição de que não consegue identificar quem são os negros. Esse é um argumento raso, porque o racismo sabe identificar bem quem são os negros. E para avançar no debate da fraude, as bancas presenciais de heteroidentificação, com pessoas que entendam sobre relações raciais, são fundamentais. A autodeclaração é muito importante, mas infelizmente tem sido usada para fraudar as cotas ao gozar de presunção relativa. O documento é importante mas insuficiente. Fotos não garantem efetividade, pois existem casos onde candidatos brancos escurecem a foto. Da mesma forma, a foto de candidatos negros podem estar clareadas, seja por iluminação, tipo de câmera, ou até mesmo por ter tido uma vivência de estética embranquecedora.
Para a professora Marcilene, as bancas de heteroindentificação também tem sido importante no fortalecimento da identidade negra do candidato. Em muitas entrevistas os candidatos falavam sobre seus processos de tomada de consciência. “A primeira vez que me declarei negro foi na universidade. Se afirmar é felicidade. Sentimento de pertença. Politicamente as bancas também cumprem esse papel de que os jovens reflitam sobre sua identidade e consequentemente suas histórias de injustiças, não para que fiquem tristes, mas para que retomem o valor e a importância da cidadania e do enfrentamento ao racismo.”
Reparar a história para democratizar o presente
Em artigo que escreveu com o professor Hélio Santos, sobre o “subproduto das cotas raciais”, Marcilene aponta o quanto uma vitória por direitos puxa mais vitórias por direitos. Sua pesquisa mostra como o movimento negro ao tensionar e “arrombar” as portas da universidade, provocou um feito que foi democratizar mais as vagas na universidade. “E o movimento negro, por seu histórico de luta contra as injustiças, levou os indígenas, porque reivindicou também cotas para os indígenas. E levou também os brancos pobres, porque temos cotas para brancos oriundos de escola pública. Ou seja, é um subproduto importante do movimento negro que, ao lutar para democratizar a universidade, reivindica que a universidade seja para todos, todas e todes, pois levou os indígenas, os brancos pobres, e mais recentemente, quilombolas, pessoas trans, ciganas e pessoas com deficiência”.
Em relação a UNEB, universidade que os autores desse texto tem orgulho em construir, é uma universidade com histórico de inclusão, seja pelos programas voltados pra formar a comunidade rural, seja pelas licenciaturas indígenas, pela multicampia e diversidade territorial ou pelo pioneirismo nas cotas raciais. Muito já foi construído, é fato, mas ainda há muito o que avançar, especialmente na garantia da inclusão para além da lógica formal. Por isso, essa campanha contra as fraudes nas cotas se torna muito importante, para podermos avançar na garantia efetiva de que as políticas de reparação histórica não sejam usadas por aqueles e aquelas que detém privilégios históricos.
A fraude nas cotas raciais mata sonhos negros todos os dias. Não daremos nenhum passo atrás. Enquanto houver racismo não haverá democracia e conter a sangria do racismo é fiscalizar a fraude das cotas. Em defesa das conquistas do povo negro, não podemos permitir que se fraude a história. Roubar uma vaga arrancada com a luta de gerações, é tripudiar do suor das vitórias que não são suas e desde já avisamos: NÃO PASSARÃO!
O movimento estudantil precisa ser linha de frente dessa luta. Precisa ser posicionado, combativo e antirracista na prática. Por isso, vida longa ao DCE da UNEB! Não como um fim de si mesmo, mas como uma ferramenta útil, a serviço da luta dos estudantes, da classe trabalhadora, e dos povos explorados e oprimidos.
*Integrantes da diretoria do DCE UNEB.
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