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TEORIA

Brevíssima genealogia do pensamento ultraliberal

João Miranda*, de Marechal Cândido Rondon, PR

Uma primeira grande dificuldade que encontrei ao, no mestrado, estudar o Movimento Brasil Livre, é com relação aos seus preceitos ideológicos. Em vários textos dos seus intelectuais, referem-se a uma série de correntes e escolas de pensamento e autores que eu nunca havia ouvido falar, como anarcocapitalismo, ordoliberalismo, miniarquismo, objetivismo, libertarianismo, escola de Chicago, dentre outras. Esse povo todo é o que se consumou chamar de neoliberalismo.

Diante disso, achei que seria interessante tentar entender o que é esse tal de neoliberalismo.

A chamada agenda “neoliberal”, ainda que tenha sido vertiginosamente implementada a partir dos anos de 1970, já vinha muitos antes sendo fundamentada. As origens do pensamento “neoliberal” data do pós-guerra, segundo o historiador Perry Anderson. Os primeiros fundamentos, para o marxista, nasceram na região da Europa e da América do Norte. Surgiram como reação teórica e política contra a política intervencionista estatal e de bem-estar, tendo como texto de origem a obra “O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944. No livro, Hayek ataca “qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política”. Três anos mais tarde, em 1947, Hayek convocou aqueles que partilhavam dos seus ideais para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Nela estiveram nomes como Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Juntos formaram a Sociedade de Mont Pèlerin, a qual, de forma dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos, estabeleceu como propósitos combater o New Deal norte-americano e o Estado de bem-estar europeu, além de qualquer solidarismo reinante e keynesianista. (1)

Esse novo espectro de políticas e reformas econômicas e sociais, advogando em favor de políticas de liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre-comércio, corte de despesas governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado, permaneceram para Anderson no “mundo das ideias” por mais ou menos 20 anos, transcendendo isso somente após a crise do pós-guerra, em 1973. Esse momento de inflexão, que o filósofo húngaro István Mészáros identifica como uma crise estrutural, é considerada a primeira grande recessão econômica desde a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo capitalista caiu numa profunda e longa recessão, combinado com altas taxas de inflação e baixas taxas de crescimento. (2)

Como foi dito antes, fica popularmente conhecido como “neoliberalismo” esse arcabouço programático e teórico político-econômico que se formou para combater o Estado de bem-estar social, a partir da ressignificação das ideias derivadas do capitalismo laissez-faire, (3) expressão símbolo do liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da mão-invisível. 

O prefixo “neo” possuí origem grega, significando novo, o que indica localização temporal. O entendimento aqui é de que o prefixo “ultra” seria o mais adequado porque indica transformações qualitativas em relação ao liberalismo, realizadas no sentido de aprofundamento em várias escalas do capital-imperialismo. Neste sentido, ao invés de “neoliberalismo”, reivindicamos aqui a noção de “ultraliberalismo” para abarcar o conjunto de correntes que se formam ao longo do século XX.

As transformações qualitativas podem ser evidenciadas ao realizarmos uma comparação entre os autores do chamado liberalismo clássico com aqueles do ultraliberalismo. São várias correntes que vão se formando a partir do século XVIII, sendo Adam Smith o pensador mais famoso, e que tem o seu ideário radicalizado ao longo do século XX, constituindo uma série de correntes que, por sua vez, compõe o que denominamos de ultraliberalismo, ao invés de neoliberalismo. 

Em consequência, entendemos que Perry Anderson foi precipitado ao apontar que as origens do que o historiador denomina de “neoliberalismo” datam do pós-guerra, especialmente via a Sociedade de Mont Pelerin. O entendimento aqui é de que este aparelho, esta “Sociedade”, teve o papel de dar maior organicidade e propagação a um conjunto de princípios teóricos, ideológicos, político-econômicos, que já vinham muito antes sendo forjados, constituindo correntes teóricas que, em seu conjunto, denominamos de ultraliberais. 

A noção de ultraliberalismo seria uma espécie de subcategoria, reivindicada em uma análise que busca a reflexão da totalidade das transformações capitalistas. O método da totalidade busca abarcar as transformações e características do que se dá no âmbito da estrutura e da superestrutura. Vemos isso em análises como a de Vladimir Ilich Ulianov Lênin (1870-1924), que fundamentou a categoria de imperialismo e de capital monopolista. Vemos isso, mais recentemente, em marxistas como a historiadora Virgínia Fontes que, a partir de Lênin e outros pensadores, fundamentou a categoria de capital-imperialismo. Ultraliberalismo, neste sentido, seria uma subcategoria, abarcando o conjunto de preceitos ideológicos e formas de ver o mundo fermentados por intelectuais a serviço do capital. Temos conhecimento que, não raro, a adoção de subcategorias no que concerne ao pensamento de direita pode mais dificultar e confundir a análise, do que de fato propiciar um entendimento aprofundado, lúcido e fundamentado. Tendo em vista isto, no presente artigo iremos abordar, rapidamente, um conjunto de correntes e ideias que compõe o ultraliberalismo.

Tais correntes se diferenciam a partir, dentre outros critérios, dos princípios epistemológicos e metodológicos de interpretação da realidade histórico-social e proposição ideológica de programas político-econômicos – o que dificulta realizarmos uma espécie de “arqueologia” ou genealogia do pensamento liberal e ultraliberal, pois exigiria a leitura de uma série de autores, principalmente, do século XVIII ao XX. Tal análise comparativa (e comparar autores de diferentes épocas é sempre um procedimento metodológico arriscado) se daria, assim, entre pensadores do chamado liberalismo clássico, do século XVII e XVIII, e pensadores do que aqui denominamos de ultraliberalismo, do século XX. Além do estudo crítico e comparativo, para tal fundamentação da hipótese no sentido de constituição de tese seria necessária uma análise dos próprios autores, de suas trajetórias, abarcando o contexto em que pensaram o que pensaram.

Apesar das dificuldades epistemológicas, identificamos que as maiores influências literárias do liberalismo clássico incluem autores tais como: John Locke, Frédéric Bastiat, David Hume, Alexis de Tocqueville, Adam Smith, David Ricardo. Enquanto que do ultraliberalismo poderíamos citar os seguintes: Rose Wilder Lane, Lysander Spooner, Milton Friedman, David Friedman, Ayn Rand, James McGill Buchana Jr., Friedrich Von Hayek, Ludwig Von Mises, Hans-Hermann Hoppe, Murray Rothbard e Walter Block. No que concerne as escolas e correntes ultraliberais, formaram-se no século XX, dentre outras, as seguintes: Escola Austríaca, Ordoliberalismo alemão, Escola de Chicago, Nova Escola Institucional, Economia Novo Clássico, Social Liberalismo e Libertarianismo. 

Existem outras correntes, mas, consideramos que estas são as mais importantes por conta da capacidade de propagação de suas ideias nos meios intelectuais, assim como nos programas político-econômicos dos governos, especialmente aqueles formados a partir da crise estrutural do capital, a qual abordaremos a seguir. No fluxograma abaixo, procuramos evidenciar parte da série de correntes ultraliberais que se formam no século XX. Em seguida, abordaremos alguns elementos de cada corrente nos tópicos a seguir.

 

Fluxograma 1.1 – Uma genealogia do pensamento ultraliberal

Elaboração própria.

 

Essas escolas possuem, algumas mais, outras menos, interconexões. Exemplo disso é Milton Friedman, considerado o principal nome da Escola de Chicago, que foi profundamente influenciado por Hayek, da Escola Austríaca. Friedman disse, sobre Hayek, que “sua influência tem sido tremenda”. Reconhecemos que o fluxograma acima não evidencia estas interconexões. 

No século XX, diante do avanço contra-hegemônico da Revolução russa de 1917, assim como diante do processo de implementação da agenda keynesianista nos EUA na década de 1930, a primeira escola em que se forja a radicalização do liberalismo clássico é a Social Liberal, seguida da Austríaca, neste caso nas figuras de Ludwing Von Mises e Friedrich Haeyk.

O Social Liberalismo

Interpreta a liberdade individual como objetivo central, entendendo que a falta de liberdade está calcada na falta de emprego e direitos básicos, como saúde, educação, etc, enquanto que o liberalismo clássico interpreta que a falta de liberdade está na compulsão e na coação nas relações entre os indivíduos em sociedade. Para o liberalismo social, ou novo liberalismo, ou liberalismo moderno, a falta daqueles direitos básicos pode ser tão prejudicial quanto a inexistência de meios para aplacar a compulsão e a coação.

Um grupo de intelectuais, na Inglaterra, na virada do século XVIII e início do século XX, com destaque para T. H. Green (1836-1882) e L. T. Hobhouse (1864-1929), apontaram que a liberdade individual e a sua defesa deveria estar acompanhada da existência de um Estado social, intervindo no que concerne as questões de ordem social, propiciando assim a livre iniciativa. Na década de 1930, em especial, o social liberalismo avança no formato de um nov interlocutor, John Maynard Keynes (1883-1946), economista britânico cujas ideias tiveram grande popularidade em países de capitalismo avançado, principalmente, nas décadas de 1950 e 1960, constituindo Estados de Bem-estar Social. No início do século XXI, com o Partido Trabalhista (Labour Party), o ideário liberal social será retomado com Tony Blair, no período em que atuou no cargo de primeiro-ministro do Reino Unido de 1997 a 2007. No Brasil, emerge no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas será nos governos petistas que essa corrente ultraliberal vai atingir uma qualidade superior em governos autodeclarados de esquerda, mas que, na realidade, implementa uma programa político-econômico ultraliberal. Trataremos disto mais adiante.

A Escola Austríaca de Economia e a sua corrente mais radical, o Libertarianismo

A Escola Austríaca, também conhecida como Escola de Viena, possuí uma série de gerações, sendo os seus precursores Frederic Bastiat, Juan De Mariana e Richard Cantillon. A primeira geração é composta por Carl Menger, o qual, em 1871, em sua publicação do Grundsätze, deu início a esta escola. 

A segunda geração é composta por Eugen Von Vöhm-Bawerk e Friedrich Von Wieser. Ludwig Von Mises só aparecerá na terceira geração, na primeira metade do século XX, juntamente com Leo Illy e Hans Mayer. Hayek pertencerá a quarta geração, composta também por Fritz Machlup, Oskar Morgenstein e Paul N. Rosenstein-Rodin. Ainda haverá duas gerações. A quinta é composta por Israel Kirzner, Ludwig Lachmann, Murray Rothbard e Bettina Bien Greaves. A sexta geração é composta por Hans-Hermann Hoppe e Jesus Huerta de Soto.

Ludwing Von Mises e Friedrich Hayek serão os autores mais famosos e, na segunda metade do século XX, Rothbard e Hoppe, que fazia parte da quinta e da sexta geração da Escola Austríca, respectivamente, serão os precursores de uma nova corrente, conhecida como Libertarianismo.

Mises (1881-1973) é conhecido por seus trabalhos a respeito da teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, dentre outras temáticas. Possuí dezenas de trabalhos, sendo os mais conhecidos: Theorie des Geldes und der Umlausfsmittel [A Teoria da Moeda e do Crédito], de 1912; Die Gemeinwirtschaft: Untersuchungen über den Sozialismus [Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica], de 1922; e Human Action: A Treatise on Economics [Ação Humana: Um Tratado de Economia], de 1949; Theory and History: Na Interpretation of Social and Economic Evolution [Teoria e História: Uma interpretação da Evolução Social e Econômica], publicada originalmente em 1957.  

Em linhas gerais, o conceito de economia desenvolvido por Mises – e que terá grande influência na Escola – tem como estrutural fundamental a ação humana individual como axioma praxeológico fundamental. Isto é, as análises e, em consequência, os desdobramento das mesmas e em teóricas econômicas, não partem de análises macro-econômicas, sequer de uma reflexão histórica baseada nas transformações sociais, mas sim na reflexão a partir do sujeito, do indivíduo. Constituem, assim, um sujeito metafisico, interpretando o todo a partir da parte, coisificando a realidade, através da naturalização do que que é fruto do processo histórico. Comportamentos dos sujeitos são, assim, elementos da análise e interpretados como predicados a priori do mesmo. O individualismo torna-se, assim, uma metodologia, a praxeologia, através da qual Mises enseja explicar as leis fundamentais, ou, noutras palavras, a estrutura lógica da ação humana e, a partir dela, fundamentar os princípios e ideários econômicos. 

O desdobramento disto é a de que a economia planificada, planejada, não pode ser realizada, porque a ação humana é pautada na resultante de uma série de ações individuais, espontâneas, autônomas, a partir da qual forma-se um mecanismo, o mecanismo dos preços. Este mecanismo se dá pela necessidade ou não, a qual transforma-se constantemente, de um produto em detrimento de outro – o que, por sua vez, acaba ocasionando ciclos econômicos. Estas leis fundamentais, interpretadas como oriundas de comportamentos individuais, impossibilita a ação Estatal no sentido de controle e planejamento da economia, necessitando neste sentido uma abordagem laissez-faire para a economia. Neste sentido, a ordem econômica tem como fundamento a competição social, baseada na livre-concorrência em um mercado livre. 

Isto não significa, contudo, que os acordos não possam ser realizados. Os acordos podem, mas não devem ser realizados para a coletividade, através da imposição Estatal. Devem ser realizados a partir e por grupos autônomos, voluntariamente entre os agentes econômicos. Leis trabalhistas, neste interim, não possuem lugar, sequer a menor importância. As regras trabalhistas, na perspectiva miseniana, devem ser estabelecidas entre o patrão e o trabalhador. 

Hayek (1899-1992), que teve Mises como principal orientador, foi também um economista austríaco, recebeu o prêmio nobel de economia em 1974. A sua obra mais famosa é “O caminho da servidão”, publicada na década de 1940, é considerada como seminal do ultraliberalismo. A obra busca se contrapor a quaisquer intervenções estatais na economia, seja no sentido de investimento, como os realizados pelo New Deal estadunidense, ou da limitação, estabelecendo leis, regulando o mercado. Hayek estará se contrapondo, assim, as proposições keynesianas, o qual defendida dispositivos de controle estatal do mercado que, para Hayek, significavam uma ameaça às liberdades econômicas, assim como também às liberdades políticas. O alvo de Hayek era também, em especial, a social-democracia europeia, particularmente a constituída pelo chamado trabalhismo inglês, que propiciava alguma socialização da riqueza a classe trabalhadora. O keynesianismo e a social-democracia são, segundo Hayek, o caminho para a servidão, pois, através das reformas sociais e do planejamento estatal, ainda que realizadas com boas intenções, levariam os países no sentido da constituição do comunismo, nazismo e fascismo – interpretados pelo autor como elementos iguais que estabelecia a mais completa servidão humana. O trabalho de Hayek é, neste sentido, uma aguda reação ideológica ao avanço da social-democracia europeia, assim como do keynesianismo estadunidense, completamente contrário as reformas sociais e a intervenção estatal.

Na década de 1960, através de Murray Rothbard (1926-1995) e o seu orientando, Hans-Hermann Hoppe (1949-), serão os precursores de uma corrente oriunda a partir da Escola Austríaca, chamada de libertarianismo. Trata-se de uma radicalização do ultraliberalismo e que também é historicamente chamada de “anarcocapitalismo”. Tem como princípio-mor, acima de tudo, a defesa irrestrita da liberdade individual, que enseja na redução ou eliminação do Estado. 

O libertarianismo defende a propriedade privada, com a alegação de que o indivíduo possuí o direito natural de apropriar-se de quantidades desiguais de parte do mundo exterior, trata-se da liberdade individual de auto-proriedade. Além disso, o libertarianismo defende vigorosamente o livre mercado e o modo de produção capitalista. Existem três grandes correntes no libertarianismo, dentre outros: anarcocapitalismo, libertarianismo miniarquista laissez-faire e libertarianismo vulgar. No fluxograma abaixo, procuramos explicitar a linha do tempo de formação do ultraliberalismo. 

O anarcocapitalismo defende a completa eliminação do Estado, entendendo que a proteção do indivíduo é conquistada através do livre-mercado e da propriedade privada. O libertarianismo miniarquista laissez-faire defende que a única função do Estado é garantir os direitos básicos da população, que para os seus defensores seriam a promoção da segurança pública, defesa do poder da polícia e da justiça. O libertarianismo vulgar seria o uso da retórica do livre mercado para defender implicitamente o capitalismo corporativo e a desigualdade social.

O libertarianismo se trata, portanto, de uma expressão “guarda-chuva” para um conjunto de teorias e filosofias políticas que têm como eixo central os referenciais ultraliberais enquanto programa político-econômico, radicalizando-os a tal ponto de alcançar um ultraindividualismo. Segundo o historiador Flávio Casimiro, o libertarianismo interpreta que, dada a “natureza humana” essencialmente individualista, o suprassumo da liberdade tem como condição básica para ser alçada a supremacia do mercado, sendo necessário, em consequência, o desprezo por tudo aquilo que é público. A ideologia é difundida sobre os mais variados temas políticos, econômicos e sociais.

Um dos principais autores do libertarianismo, Walter Block, defende em suas obras – plenamente difundidas por institutos como o Instituto Mises Brasil – que abomina o “homossexualismo”, a “bestialidade”, a prostituição e esses comportamentos, segundo ele “degenerados”, que em outros tempos “afugentavam os cavalos”, hoje não são proibidos pelo Estado – e que, por isso, o libertário, no uso devido de sua liberdade individual, deve expressar as suas preferências. (4)

Ordoliberalismo alemão: o primo protestante da Escola Austríaca

Ordo é um termo em latim que significa ordem. Foi adotado para apontar que no seu cabedal ideológico tem como primazia a defesa da ação estatal no sentido de garantir a igualdade de oportunidades, combatendo os monopólios, e uma moeda estável. Tais medidas propiciariam a livre iniciativa e a competição. O ordoliberalismo possuí inspiração protestante, defendendo também que cada sujeito deve ser responsável por suas ações e colher os frutos de seu trabalho, assim como arcar com os prejuízos de suas escolhas.

Os precursores dessa teoria o economista Walter Eucken (1891-1950) e os juristas Franz Böhm (1895-1977) e Hans Grobmann-Doerth (1894-1944). Os autores publicaram na década de 1930 uma série de artigos sob o título Odnung der Wirtschaft (Ordenamento da Economia). Eucken conheceu Hayek na década de 1920 e desde então se tornaram grandes companheiros intelectuais. O Ordoliberalismo surgiu em um contexto pós República de Weimar, de grande instabilidade política, hiperinflação e crise social, combinada a promiscuidade entre os conglomerados econômicos com o Estado alemão, elementos que propiciariam a ascensão de Hitler. 

Na década de 1940, com Alfred Müller-Armack (1901-1978), será incorporado ao repertório ordoliberal o preceito de que para garantir a igualdade de oportunidades o Estado deveria, além de garantir regras justas, oferecer políticas sociais para promoverem o bem-estar da população. As ideias ordoliberais chegaram ao Estado no período de 1949 a 1963, com o governo da Alemanha Ocidental de Konrad Adenauer e continuada até 1966 com Ludwig Erhard. Foram retomadas a partir da crise de 2008, quando o então ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, que ficou no cargo de 2009 a 2017, adotou princípios ordoliberais, especialmente o de que cada um deve ser responsável pelos seus atos, para defender a posição austera da Alemanha em relação aos países mais pobres da União Europeia, em especial, a Grécia, que na época evidenciava que não conseguiria pagar a sua dívida, assim como Portugal e Itália. 

A Escola de Chicago


Milton Friedman

O termo “Escola de Chicago” refere-se à escola monetarista de economia que tinha como principais precursores professores do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, com destaque para Milton Friedman (1912-2006) e George Stigler (1911-1991). O termo foi concebido na década de 1950, quando os líderes da Escola de Chicago, defensores do livre mercado, manifestaram os seus tratados contrários ao keynesianismo, em favor do chamado monetarismo, isto é, uma teoria econômica que enfatiza o papel da política monetária – a qual é, por sua vez, a atuação de uma política sobre a quantidade de moeda em circulação – para a estabilidade macroeconômica. 

O ideário da Escola de Chicago foi implementado, primeiramente, na década de 1970 na ditadura de Pinochet no Chile, através da orientação dos chamados chicago boys. Os chicago boys foram um grupo de aproximadamente 25 jovens economistas, dentre eles Paulo Guedes, os quais formaram-se em economia primeiro pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e mais tarde fizeram pós-graduação na Universidade de Chicago. Posteriormente, o ideário desta escola compôs o programa político-econômico dos governos de Thatcher na Inglaterra e Reagan nos EUA.  

A Nova Economia Clássica e a Nova Economia Institucional 

Na década de 1970, vai surgir a chamada Nova Economia Clássica ou Escola das Expectativas racionais, oposta à economia keynesiana. Baseia-se no pressuposto das expectativas racionais – formulado inicialmente por John Muth (1930-2005), em 1961, e desenvolvido por Robert Lucas (1937-), Thomas J. Sargent (1943-), Robert Barro (1994-), Finn E. Kydland (1943-) e Edward Prescott (1940-) –, o qual formula que os agentes econômicos, a partir da informação disponível, projeta racionalmente o atual comportamento e as previsões acerca do futuro da economia, formulando ações e expectativas que anulam em algum grau a efetividade das políticas futuras do governo.

Já em meados da década de 1980, vai surgir a Nova Economia Institucional, a partir de Douglass C. North (1920-2015) e Robert Fogel (1926-2013). Busca combinar contribuições de diferentes áreas, como economia, direito, administração, ciência política, dentre outras, para abordar uma ampla e variedade de aspectos da sociedade, desdobrando em princípios econômicos.

O que há de comum entre todas as correntes ultraliberais?

As diferentes correntes abordadas apontam que o ultraliberalismo indica, assim, um projeto histórico-social que não se limita ao campo econômico, apesar de estar sob o imperativo da reprodução ampliada do capital imperialismo – e que é disseminado em larga escala especialmente após a crise estrutural do capital. Ultraliberalismo é, por isso, um termo mais preciso para designar um conjunto amplo de propostas político-econômicas, a partir de um liberalismo acentuado, radicalizado, implementado diante da crise estrutural do capital, na era da globalização financeira, com implicações em todos os setores da vida humana. Trata-se ainda de um conjunto de princípios epistemológicos, com desdobramentos ideológicos, que são forjados em reação ao avanço da implementação do keynesianismo e dos Estados de Bem-estar Sociais, apesar dessa implementação se dar a partir de uma das correntes ultraliberais, o Social-liberalismo, nos países de capitalismo avançado, assim como uma reação ao avanço da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Apesar de haver diferentes correntes no ultraliberalismo, identificamos que todas partem de princípios epistemológicos comuns, com desdobramentos político-econômicos e ideólogos. 

No que concerne aos desdobramentos político-econômicos, poderíamos citar os seguintes: defesa do ideário do livre-mercado, da livre-iniciativa e a crença no laissez-faire (auto regulação do mercado), gestão empresarial do Estado (ou defesa da inexistência do Estado), flexibilização das leis trabalhistas, privatizações, aumento do encarceramento como política penal, desregulamentação financeira, defesa maximizada da propriedade privada, pagamento religioso da dívida pública, dentre outras proposições.

A principal origem desses desdobramentos político-econômicos está nos princípios epistemológicos, isto é, no procedimento teórico-metodológico de abordagem, estudo e reflexão da realidade, dos quais partem as correntes ultraliberais. Identificamos que esse conjunto de correntes partem do pressuposto de que a sociedade é uma “associação ou agregado de indivíduos” cujo único conectivo é o mercado. 

O desdobramento disto é, por exemplo, de que um determinado bem ou serviço só tem valor para seu consumidor direto. Neste sentido, somente este consumidor direto é quem deve assumir os custos do uso deste bem ou serviço. Tendo em vista que o Estado no Brasil procura, por exemplo, oferecer educação pública para toda a sociedade brasileira, aquela ou aquele que opta por não usufruir diretamente dela, buscando a educação particular, por exemplo, deve, na linha do pensamento ultraliberal, ser ressarcido pela fração de seus impostos que vai para aquele serviço. Como o Estado não realiza este “reembolso”, entendem que o mesmo é incapaz de reunir e processar informação dispersa com eficiência, sendo o único instrumento capaz disso o mercado, que o faz, supostamente, de forma espontânea, através de uma ordem que emerge da competividade. 

A competividade, assim, é o telos da relação entre indivíduos na perspectiva ultraliberal. Interpretam isto como uma condição a priori da condição não só humana, mas como de ser vivo. Disto emerge o chamado “darwinismo social”, o qual aponta que são os mais fortes na sociedade que sobrevivem – e que devem sobreviver. Por isso, a ação Estatal, no sentido de reparar os antagonismos sociais não tem importância, sequer a menor a relevância. É na ação individual, competitiva, que deve emergir a ordem. E esta ação se dá no mercado. Algumas correntes chegam a apontar a ação estatal, mas sempre no sentido de permitir esta competividade.

Para esta abordagem, então, a única coisa que importa é de que os agentes econômicos possam (ou seja, tenham a liberdade para tal) oferecer um determinado serviço ou bem ao menor valor possível. Para tanto, precisam guerrear entre si, e aquele que sobreviver a isso é quem estará mais apto para oferecer o melhor serviço ou bem. Para esta abordagem, o consumidor direto deve poder (ou seja, deve ter a liberdade para tanto) de escolher entre este ou aquele serviço ou bem. 

Este princípio epistemológico comum às correntes ultraliberais impede que os intelectuais que o fomenta e o propaga compreendam que na sociedade possa haver efeitos sociais complexos. Ao partirem do pressuposto de que a única complexidade é o mercado, simplesmente, estão impedidos de compreenderem a complexidade inerente a inter-relação e conexão a qual estamos submetidos enquanto sociedade. Por estarmos conectados, o que fazemos têm consequências reais e imediatas a quem está a nossa volta, assim como indiretas em todo o restante da sociedade, do planeta. Diante disso, é um benefício para toda a sociedade que as pessoas recebam do Estado, por exemplo, educação pública de qualidade. Contudo, entender a sociedade como um agregado de indivíduos gera um ponto-cego, impedindo que os intelectuais ultraliberais percebam os efeitos indiretos e as vantagens coletivas advindas de uma grande quantidade de pessoas terem direito ao acesso a um determinado bem ou serviço financiado, via Estado, pelo conjunto do todo da sociedade. 

Talvez isto tenha ficado bastante evidente em meio a pandemia causada pelo novo corona vírus. Numa situação gravíssima como a que estamos na atualidade submetidos, os intelectuais ultraliberais, como Paulo Guedes, são incapazes de compreenderem que a quarentena só tem resultado efetivo se for suficientemente grande. Ao invés disso, fica esbaforindo o direito individual de ir e vir, em detrimento do interesse comum de aplacar o avanço da contaminação. Enquanto milhares de pessoas caem sob a progressão da hecatombe, defensores caninos do capital como Guedes e seu cachorro de estimação, Jair Bolsonaro, seguem colocando os interesses individuais do grande capital acima do interesse coletivo da sociedade brasileira de não morrer.  

Além dessa consequência imediata, as análises ultraliberais têm, historicamente, como desdobramentos preceitos político-econômicos, apontados anteriormente, em que o mercado é o espaço de realização da liberdade, sendo necessário, para tanto, a reconfiguração do Estado, através de privatizações, por exemplo. O que, por sua vez, não significa a redução do Estado (para a maioria das correntes), mas sim a reconfiguração do mesmo a partir desses preceitos de defesa do indivíduo, de seus predicados supostos, da concorrência, de sua propriedade privada dos meios de produção e de sua liberdade a priori de escolher, ou, noutras palavras, concorrer (liberdade esta conquistada através da não intervenção estatal na economia, propiciando a auto regulação do mercado, auto regulação esta que emerge, espontaneamente, através da concorrência).

A auto regulação do mercado, na perspectiva ultraliberal, advém da própria característica da sociedade pensada enquanto associação de indivíduos. Ao entender a sociedade dessa maneira, o todo é o resultado da soma das partes orientadas por uma ordem que se dá espontaneamente no mercado. As normas e regras devem, a priori, resultar do conjunto de ações individuais no interior do mercado. E o Estado não deve, por isso, interferir nessa ordem sus generis. A interferência do Estado através, por exemplo, da regulação do mercado, é interpretada como uma gaiola de aço rígido, limitadora, aplacadora, que desrespeita e impede tal condição humana. Uma ordem social só deve se efetivar, portanto, espontaneamente, ao passo que quaisquer medidas ou pretensões de planificação ou pacto social, qualquer forma de decisão coletiva, não teriam espaço, sequer a menor importância. O papel do Estado assume diferentes proporções de acordo com a corrente. Pode assumir um papel maior, através, por exemplo, da justiça e da polícia, assim como determinadas correntes podem definir a completa inexistência do Estado, como é o caso dos anarcocapitalistas.

Além da resultante político-econômica, essa velha razão do mundo que optamos no presente trabalho subcategorizar como ultraliberal, tem como consequência a constituição de procedimentos teórico-metodológicos que têm como ponto em comum o pressuposto de que a sociedade é um agregado de indivíduos, e que se desdobram em análises que a tudo particularizam e a tudo podem entender como “verdade”. Refiro-me a um conjunto de correntes que chegam com a aparência de novidade, mas que não passam de novas roupagens para velhas ideias, que eliminam o racionalismo, o marxismo, a verdade – e que, assim, podem não promover abertamente uma apologia do capitalismo, mas que, sutilmente, constituem uma série de concepções e teses sobre o mundo que não o incomoda. 

Diante do fato de os preceitos epistemológicos ultraliberais impossibilitarem que os seus formuladores compreendam fenômenos complexos, constituindo uma cegueira intelectual, tais preceitos podem até ser considerados epistemológicos enquanto abordagem do real, mas não ontológicos enquanto reflexão do real em si. Ainda assim, para os ultraliberais, o ultraliberalismo é um pensamento da complexidade social, ao passo que noções como “justiça social” são resultado de análises primitivas incapazes conceberem ordens que emergem espontaneamente através do mercado.

Os desdobramentos disto são, portanto, as proposições político-econômicas, as quais já vinham sendo implementadas, em alguma medida, antes da crise estrutural do capital. Por isso, optamos por não adotar a noção de neoliberalismo, pois, concordando com a historiadora Virgínia Fontes, esta noção, ainda que também possa ser adotada para denunciar a série de medidas político-econômicas e ideológicas, “tem como núcleo o contraste fundamental com o período anterior, considerado por muitos como ‘áureo’”, de caráter keynesianista ou de Estado de Bem-estar Social. O problema é que, ao apontar essa suposta inflexão e descontinuação entre ambos, a noção de neoliberalismo “reduz a percepção do conteúdo similarmente capitalista e imperialista que liga os dois períodos, assim como apaga a discrepância que predominara entre a existência da população trabalhadora nacional nos países imperialistas e nos demais”. (5)

Denominado por Hobsbawm como “Era de Ouro” (6), esse período anterior sobre o qual Fontes se refere também é conhecido como “trinta anos gloriosos”. Trata-se de um fenômeno que ficou restrito, em grande medida, a países da América do Norte e do oeste europeu, principalmente entre 1950 e 1970, em que o avanço dos processos de controle sócio metabólico das contradições que permeiam as relações de produção enseja no boom dos investimentos nos países de “capitalismo avançado”, promovendo reformas sociais, constituindo o Estado de Bem-estar Social em um grupo pequeno de países – em especial, da Europa Ocidental –, durante aquele determinado período de tempo.

Portanto, esse boom permitiu a implementação do chamado Estado de bem-estar social, que estabelece que todo o indivíduo deve ter acesso a um conjunto de bens e serviços, oferecidos diretamente pelo Estado, ou garantido indiretamente por meio do seu poder de regulação e organização social, política, econômica e sociocultural. Tais promoções se dão não só no que tange à economia, como também na formação de uma cultura histórica que leve as pessoas a apoiarem e a defenderem esse sistema. Assim, quaisquer rebeliões, greves, manifestações, são imediatamente absorvidas pelo Estado burguês através de projetos de intervenções progressistas que, supostamente, atenderiam às pautas reivindicadas, mas que, na realidade, promovem a manutenção do status quo. A incontestável crise estrutural do capital da década de 1970 faz cair por terra o modelo fordista-keynesiano de desenvolvimento capitalista implementado em larga escala nos países ricos entre as décadas de 1940 e 1960, em que se viu aspectos do ideário ultraliberal do Social Liberalismo constituírem Estados de Bem-estar Social. Acima de tudo, essa crise estrutural faz emergir uma nova temporalidade histórica do processo civilizatório, permeada por um conjunto de processos que configuram a fenomenologia do sistema capitalista global em seus “trinta anos perversos” (1980-2010).

Notas

 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 09-23, 1995, p. 09.

2 – Idem

3 – A expressão laissez-faire advém do francês e simboliza o chamado liberalismo econômico, a qual entende que o capitalismo deve funcionar de acordo com o mercado, livremente, sem os subsídios do Estado, muito menos outros tipos de interferências. O Estado deve, nessa concepção, limitar-se a estabelecer regulamentos que protegem a propriedade privada dos meios de produção, a qual está nas mãos da burguesia. Literalmente, a expressão em língua francesa laissez faire, laissez aller, laissez passer, significa “deixai fazer, deixai ir, deixai passar”. Os fundamentos do laissez-faire baseiam-se na liberdade do indivíduo, entendendo-o como uma unidade básica da sociedade e esta, por sua vez, entendida como a associação dos indivíduos. Adam Smith aponta que a natureza é permeada pelo cosmos, uma ordem física naturalmente harmoniosa e autorregulada. As corporações, que compõe o Estado, devem por isso serem constantemente vigiadas de forma minuciosa devido à tendência de elas romperem com essa tal ordem espontânea inerente à natureza. FIGUEIRÊDO, Lízia de. O papel do Estado para Adam Smith. 1 ed, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas gerais, 1997. 30p. 

4 – CASIMIRO, Flávio Henrique Calheiros. Dominação burguesa e os aparelhos de doutrinação da Nova Direita no Brasil contemporâneo. Revista História e Luta de Classes. Ano 14, nº 26, p. 24-34, 2018. pp. 31-32.

5 – FONTES, V. O Brasil e o capital imperialismo. Teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/UFRJ, 2010. p. 154.

6 – HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século X: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.