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BRASIL

A naturalização da barbárie: Brasil, mais de 50 mil mortes em 50 dias

Gilberto Calil

O quadro reúne os dados dos 15 países com maior número de mortes registradas e registra o número de novos casos dos últimos 14 dias, comparando com os 14 dias anteriores, de forma a identificar se a tendência é de crescimento ou redução da pandemia. Esta comparação envolvendo o número de novos casos em dois períodos de duas semanas é um indicador mais preciso para avaliar se há avanço ou recuo da pandemia, tendo em vista que diversos países (em especial Brasil e Chile) manipulam os dados de pacientes recuperados, apresentando números subestimados de casos ativos, enquanto diversos outros países só consideram recuperados os pacientes com testagem PCR negativa, conforme orientação da OMS. Por esta razão, os Estados Unidos aparecem nos quadros de acompanhamento como o wordometers com mais de três vezes mais casos ativos que o Brasil, o que está muito longe de expressar a realidade. A despeito dos números já muito elevados e da baixa testagem, segue aumentando o número de novos casos no Brasil por período, tendo acumulados nas últimas duas semanas sido 9% superior ao período anterior. Os Estados Unidos tem o maior ritmo de crescimento, um resultado claro da reabertura econômica, em especial em estados que tinha sido menos atingidos até então. Os estados com maior número de novos casos nos últimos dias são Florida, Califórnia e Texas, em mais uma comprovação de que verão e temperatura quente não impedem o avanço da pandemia. A situação segue piorando também na Índia e no México, ambos também impactados pelo relaxamento das medidas de contenção. Fora da relação dos 15 países com mais mortes, outros países também vêm tendo expressivo aumento do número de casos como África do Sul, Paquistão, Bangladesh, Arábia Saudita e Colômbia.

Nos últimos sete dias, o Brasil teve 7.251 mortes  o que representa 21% das 34.449 registradas em todo o mundo (o Brasil tem 2.75% da população mundial), mantendo-se na semana uma média superior a 1.035 mortes diárias, a maior do mundo (os Estados Unidos, em segundo lugar, tiveram, 5.181). No último sábado, o Brasil muito registrou mais mortes (968) que todos os 141 países da Europa, África, Oceania, América Central e Caribe (821). Além disto, já são oito semanas completas em que o país mantém uma média diária entre 900 e 1.100 mortes diária. Nos últimos 50 dias, o país registrou oficialmente 50.138 mortes.

Este número oficial expressa apenas uma parcela dos óbitos, deixando de considerar dois outros grupos. O primeiro é dos que morrem em casa e que mesmo tendo sintomas indicativos de Covid, não são sequer contabilizados. É muito difícil estimar o número de óbitos decorrentes de Covid nesta situação, restando apenas a comparação do número total de óbitos (desconsiderando aqueles por causas externas, como homicídio e acidentes) em relação ao ano anterior. O segundo grupo é dos que morrem em ambiente hospitalar, com sintomas compatíveis por Covid, mas que não são testados. Neste caso, o óbito é registrado como Síndrome Respiratória Aguda Grave (“não identificada”). Em alguns estados, o número de mortes por SRAG não identificada segue muito superior ao de mortes oficializadas para Covid, como é o caso do Paraná, que no último dado disponível (relativo a 6/7), registrava 842 óbitos por Covid e outros 1.723 por SRAG “não identificada”.

Além disto, o Ministério da Saúde segue propagando o número de “recuperados” como se fosse um dado positivo, ignorando as diversas pesquisas que indicam que mesmo entre os sobreviventes há diversas sequelas, que só poderão ser adequadamente avaliadas com o tempo. O número de “recuperados”, além de ser artificialmente inflacionado pelos critérios arbitrários utilizados, só indicaria avanço na contenção da pandemia se fosse superior ao de novos casos, o que absolutamente não é o caso. Uma pesquisa recente no Reino Unido revela que 60 dias depois da recuperação, 53% dos contaminados ainda sentia fadiga e 43% sentia falta de ar persistente.

A subnotificação segue como problema grave. O resultado preliminar da terceira etapa da pesquisa nacional Epicovid-19BR, divulgado no dia 26 de junho, indica que tínhamos então 5.1 vezes mais contaminados do que indicam os dados oficiais (o que indicava naquela data 2.9% da população). Mantendo-se esta proporção, estaríamos hoje com 9,5 milhões, ou 4.48% da população do país. Considerando a intenção repetida 32vezes por Bolsonaro de atingir 70% da população para garantir a alegada “imunidade de rebanho” (segundo levantamento da agência Aos Fatos), este número teria que crescer ainda mais 15.6 vezes, com o que se chegaria mantendo a mesma relação, a mais de 1.100.000 mortes, sem considerar o acréscimo decorrente do colapso do sistema de saúde nem a atual subnoficação de óbitos não testados. Mantendo persistentemente uma média superior a 1.000 mortes diárias, seguimos com elevado ritmo de expansão das mortes (25% em 14 dias), mas tivemos um ritmo de aumento do número de casos ainda maior, de 39% em 14 dias, bem acima da média mundial de 27%. Há várias semanas, o ritmo de crescimento de casos tem sido superior ao dos óbitos, o ressalta a possibilidade de elevada subnotificação de óbitos. Em maio, os óbitos cresceram 4.97 vezes e o número de casos cresceu mais de 6 vezes. Em junho, número de óbitos cresceu 104% e o de casos cresceu 174%. Em julho, até aqui, os óbitos cresceram 21% e o número de casos 33%. O Brasil já passa de 12,6% das mortes mundiais, com 339 mortes por milhão de habitantes, 4.6 vezes superior à média mundial (73.4).

Em números absolutos, apesar da baixíssima testagem, o Brasil é o segundo país com maior número absoluto de novos casos registrados nos últimos 14 dias, ultrapassado pelos Estados Unidos (que testam 7.5 vezes mais). Dos 2.797.455 novos casos registrados no período, 18.6% ocorreram no Brasil (519.487) e 27.7% nos Estados Unidos (775.978). Portanto, dois países que juntos não chegam a 7% da população mundial, tiveram mais de 46% dos novos casos. Seguem Índia, Rússia, México, Chile, Peru e Irã, todos com expressivo número de novos casos. Na comparação com o período anterior, observa-se tendências distintas: enquanto Brasil (9%), Estados Unidos (65%), Índia (60%) e México (18%) continuam apresentando crescimento número de novos casos por período, Rússia (-4%), Chile (-37%), Peru (-6%) e Irã (-2%) tiveram diminuição no número de novos casos, o que indica que estão conseguindo reduzir o número de casos ativos. Entre os sete países que já se encontram com menos de 10.000 novos casos por período, em três há registro momentâneo de retomada do crescimento: França (+18%), Espanha (+6%) e Bélgica (+3%),  enquanto nos demais há tendência à redução Reino Unido (-40%), Alemanha (-29%) e Canadá (-3%) e Itália (-18%). Estes avanços são resultados das medidas de contenção, já que nenhum destes países atingiu índices de contaminação suficientemente elevados para levar ao decréscimo por “imunidade coletiva”.

A China, que há tempos deixou de constar no quadro dos quinze países com mais mortes, foi ultrapassada também por Holanda, Turquia e Suécia (que tem uma população 140 vezes menor), Colômbia, Equador e Paquistão e hoje é 21º país em número absoluto de mortes e o 143º em mortes por milhão de habitantes. O país não registra morte há 50 dias e continua conseguindo reduzir os focos recentemente encontrados na região de Pequim, estando com apenas 320 casos ativos.

A maior parte dos países vem elevando expressivamente a testagem e atingindo ou passando a relação de 20 testes realizados por resultado positivo indicada pela OMS como indicadora de um bom controle. Brasil, México e Índia são os três países com menor número de testes. O número de testes por milhão de habitantes que Brasil (21.509), México (5.611) e Índia (8.394) é absolutamente inexpressivo e várias vezes inferior aos demais países com números análogos de mortes e casos. É um patamar de testagem inviabiliza qualquer controle sobre a pandemia e mostra o quanto é absurdo falar em reabertura da economia. Na relação entre testes realizados e resultados positivos, indicador mais preciso para dimensionar o efetivo controle da pandemia, o Brasil tem índice ainda pior (2.4) próximo ao do México (2.5) e bem pior que o da Índia (13.2). No caso do Brasil, a situação real é ainda bem pior tendo em vista que grande parte deles são testes rápidos, inteiramente inadequados para diagnóstico e que sequer deveriam ser contabilizados.

O elevado ritmo de crescimento das mortes no Brasil, associado a um ritmo de crescimento do número de casos ainda maior, indica um rápido e intenso agravamento do quadro nacional. Já tendo passado de 72.000 mortes oficializadas, o país deveria ter já há muito tempo um ritmo de crescimento diário de novos casos bem abaixo de 1% para ao menos ter a expectativa de começar a reduzir o ritmo de crescimento das mortes em duas a três semanas. Só é possível prever quando chegaremos ao pico da pandemia quando tivermos uma redução clara e continuada dos novos casos, que ao contrário seguem crescendo em ritmo elevado. As medidas pontuais e regionalizadas de fechamento temporário quando se aproxima o colapso do sistema de saúde têm se mostrado fragmentadas e insuficientes. Torna-se imprescindível um lockdown nacionalmente unificado, com medidas de garantia de renda emergencial e que dure o tempo necessário para a efetiva contenção. Ainda que pareça custoso, é menos dispendioso do que manter a situação de instabilidade e sucessivas aberturas e fechamentos. Infelizmente, desde o início da pandemia nosso isolamento social vem sendo relaxado e sabotado pelas autoridades federais, com cumplicidade explícita do grande empresariado, produzindo a conjunção trágica entre altas taxas de crescimento das mortes e dos novos casos, em um cenário de baixa testagem e subnotificação generalizada.

No Brasil, o número de mortes está duplicando a cada 36 dias e o número de casos a cada 26 dias, enquanto no mundo o tempo de duplicação das mortes é de 63 dias e o dos casos é de 39,5 dias. Além de sermos o país com mais mortes diárias, somos o segundo em número de mais novos casos diários (mas com um nível de testagem muito mais baixo que os EUA). Certamente também somos o país com mais pacientes em estado grave, mas este dado está indisponível.

Atualmente os Estados Unidos e a América Latina (em especial Brasil, México, Peru, Chile e Equador) são os principais centros mundiais da pandemia, seguidos pelo Sul da Ásia (Índia, Paquistão, Bangladesh, Filipinas) e Oriente Médio (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Qatar e Emirados Árabes) e parte da África (especialmente África do Sul, Egito e Nigéria)

De outro lado, há um crescente número de países com a situação estabilizada e que se encontram com menos de mil casos ativos, dentre os quais: Coréia do Sul, Cabo Verde, Líbano, Montenegro, Naníbia, Benin, Moçambique, Luxemburgo, Eswatini, Ruanda, Zimbábue, Sri Lanka, Hungria, Mali, Noruega, Libéria, Irlanda, Zâmbia, Maldivas, São Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Iêmen, Eslováquia, Angola, Dinamarca, China, Botswana, Tanzânia, Hong Kong, Suriname, Eslovênia, Síria, Lituânia, Lesotho, Mayotte, Finlândia, Togo, Jordânia, Djibouti, Chipre, Jamaica, Guiana, Martinica, Tunísia, Eritréia, Georgia, Letônia, Burkina Faso, Reunião, Malásia, Seichelles, Uruguai, Burundi, Myamar, Tailândia, Uganda, Cuba, Turks e Caicos, Estônia, Níger, Antigua e Barbua, Comoros, Mongólia, Vietnã, Gâmbia, Nova Zelândia, Islândia, Camboja, Belize, Ilhas do Canal, Chad e Bahamas. São países de diferentes continentes e distintas situações econômicas e sociais, mas que vêm tendo êxito na contenção da pandemia. Incluem-se entre eles países de expressiva população: 27 entre os 90 países com mais de dez milhões de habitantes tem menos de 1.000 casos ativos, incluindo-se o país mais populoso do mundo.

Alguns países tem situação ainda melhor, com menos de dez casos ativos: Fiji, Butão, Mônaco, Barbados, Granadinas, Trinidad e Tobago, Malta, Taiwan (24 milhões de habitantes), Gibraltar, Bermuda, Santa Lúcia, Papua Nova Guiné (9 milhões de habitantes), Aruba, Ilha Cayman, Saint Martin, Ilhas Maurício, Polinésia Francesa, St. Kittis e Nevis, Lieschtenstein, Macao, Saara Ocidental, San Marino, Sant Pierre e Monserat.

Em quase todos os continentes (exceto África) existem países que já não tem nenhum caso ativo: dentre 213 países e territórios considerados no wordometers, 18 estão nesta situação: Laos (7,3 milhões de habitantes), Timor Leste (1,3 milhão de habitantes, Brunei, Nova Caledônia, Curaçau, Granada, Ilha de Man, Andorra, Dominica, Groenlândia, Ilhas Faroe, Sint Marteen, Ilhas Virgens Britânicas, Caribe Holandês, Anguilla, St. Barth, Malvinas e Vaticano. O Vietnã, com 97 milhões de habitantes e uma política de contenção exemplar, não tem nenhum óbito e registra apenas 22 casos ativos.

É imprescindível e urgente reduzir o ritmo de crescimento do número de novos casos, para em consequência reduzir o número de mortes, pois a manutenção dos índices atuais projeta um cenário que é pior a cada dia e só vai piorar se o processo de reabertura tiver continuidade na situação atual. Se por hipótese considerarmos que este ritmo se mantenha o mesmo (crescimento de 25,1% a cada 14 dias), o número de mortes no Brasil atingiria 90.187 em 26/7, 112.824 em 10/8 e 141.143 em 24/8. Não se trata de uma previsão, mas de projeção do que pode ocorrer caso não sejamos capazes de diminuir o atual ritmo de forma muito mais vigorosa. Para isto, são inadiáveis medidas para ampliação do nível de isolamento individual, associadas à garantia de efetivas condições de sobrevivência ao conjunto dos trabalhadores, em especial aos mais precarizados. Um pequeno aumento ou uma pequena diminuição no percentual produz um grande efeito em cascata nos números em dois ou três ciclos, o que reforça a urgência do reforço das medidas de contenção.