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Especiais

Não estamos somente frente a uma crise sanitária: pandemia, capitalismo e crise climática

Daniel Tanuro*

Tradução Waldo

Esta pandemia é um verdadeiro acontecimento com A maiúsculo, um acontecimento histórico: haverá um antes e um depois em escala mundial. Não tanto pelo número de vítimas, que, ainda que importante, é muito inferior ao das vítimas da gripe “espanhola” depois da primeira Guerra Mundial (mais de vinte milhões de mortos). Hoje em dia, afortunadamente, estamos muito longe disso. O que lhe dá um significado histórico ao acontecimento é que a máquina capitalista de lucro quase se deteve em nível mundial, porque há um “pequeno ser”, que nem sequer é um animal, que é um vírus, mal e mal uma forma de vida, que está perturbando toda a maquinaria e ameaçando a saúde das pessoas. Por isso, temos que proteger a vida, temos que proteger as pessoas enfermas, temos que cuidar delas, e também temos que proteger os trabalhadores e trabalhadoras.

Esta crise, muito, muito grave, se produz em um contexto particular: em um momento em que o capitalismo havia começado uma recessão. Essa recessão começou em 2019, e a pandemia a está amplificando de forma absolutamente extraordinária. Uma questão importante é que esta situação muda o enfoque midiático e político: do que se trata, de forma geral? Escutamos falar sobre o crescimento do PIB, do balanço de pagamentos, da inflação, dos tipos de câmbio, das taxas de juros e assim sucessivamente. Todos eles, indicadores abstratos da acumulação do lucro capitalista, da acumulação de valor abstrato… E agora, com esta pandemia, o enfoque muda totalmente: a atenção política e midiática está totalmente centrada no trabalho das enfermeiras, no caráter excessivo de sua carga de trabalho, nas pessoas doentes que morrem, nas que se recuperam, no trabalho dos lixeiros ou dos empregados dos supermercados, no destino das pessoas confinadas, das que não estão confinadas, etc. Em resumo, em tempos normais nos falam da abstração da não-vida e agora nesta epidemia nos falam sobre a vida e a morte, ou seja, sobre os seres vivos. Há uma mudança muito importante na atmosfera ideológica geral; voltaremos sobre isso.

II

Esta epidemia não nos retroage às epidemias da antiguidade, não é um regresso à peste negra da Idade Média, para citar uma delas: é algo muito diferente. Há várias décadas multiplicaram-se os vírus de um tipo particular. Conhecemos a AIDS, o ebola, a zika, a febre suína, a gripe aviária, a chikungunya, a SARS-1 em 2002, agora a SARS-COV2; todos esses vírus têm a peculiaridade de que nascem em entornos naturais fora de controle, agredidos, ou em fazendas industriais. Isso é o que denominamos de zoonose, o que significa que o vírus que vive nos animais pula a barreira das espécies e contamina o homo sapiens. Portanto, em comparação com as do passado, para esta pandemia existe uma origem completamente nova e específica. O vírus em si mesmo é um produto das contradições do capitalismo. A forma em que se propaga a epidemia também é peculiar: ao contrário das epidemias do passado, que nunca foram mundiais, mas continentais, esta epidemia está se propagando rapidamente graças aos modernos meios de comunicação, em particular o transporte aéreo, e a torna mais rápido ainda porque a humanidade está concentrada em grandes cidades, megalópoles, como a de Wuhan, que é uma cidade com 11,8 milhões de habitantes.

Esses dois fatores, a origem particular do vírus e a rapidez com que se propaga, significam que não estamos perante um vírus arcaico, frente a uma epidemia arcaica; ao contrário, para usar o termo de Bruno Latour, estamos ante uma epidemia moderna, uma epidemia antropocena.

III

Não estamos somente frente a uma crise sanitária. Evidentemente, a crise sanitária é forte e muito importante, mas ela forma parte de uma crise ecológica e social muito mais ampla. De fato, a crise da Covid 19 é a primeira crise global-social, ecológica e econômica do Antropoceno.

Existem cientistas que nos últimos anos, no começo da década dos 2000, começaram a estudar o que se denomina a grande aceleração e a mudança global e identificaram os parâmetros da sustentabilidade da existência humana nesta Terra: 1) a mudança climática; 2) a diminuição da diversidade biológica; 3) os recursos de água doce; 4) a contaminação química; 5) a contaminação atmosférica por partículas finas; 6) o estado da camada de ozônio; 7) o estado dos ciclos do nitrogênio e do fósforo; 8) a acidificação dos oceanos; 9) a camada de ozônio. Em seu informe, apresentado em 2015, esses cientistas chegaram à conclusão de que havia sido superado o limite máximo de sustentabilidade com relação a quatro desses parâmetros: o clima, a biodiversidade, o nitrogênio e os solos. Para utilizar a linguagem bíblica, poderíamos dizer que esses quatro parâmetros são os quatro cavaleiros do apocalipse antropocênico e a pandemia que estamos vivendo atualmente nos envia uma mensagem, nos diz que a esse quarteto de cavaleiros se soma um quinto, que hoje em dia é o risco de uma epidemia.

IV

Esse risco epidêmico não caiu do céu, é uma ameaça conhecida. Hoje temos a sorte de nos beneficiar de um progresso científico absolutamente extraordinário, com magníficas capacidades de antecipação. Os cientistas já nos advertiram sobre o risco, não somente de uma epidemia em geral, mas muito especificamente de uma epidemia deste tipo. Depois da epidemia de SARS em 2002, que já era um coronavírus, uma série de cientistas chegou a essa conclusão, que se traduziu em informes oficiais, entre eles dois informes à Assembleia Nacional da França (2005 e 2009), em que se assinalava a alta probabilidade de que se produzisse uma nova epidemia como a SARS, causada por uma zoonose, um vírus que salta a barreira das espécies, que é de origem animal e que se propaga dentro da espécie homo sapiens. A própria OMS, em data tão recente como 2018, estava compilando uma lista de ameaças para a saúde em todo o mundo com una série de patógenos conhecidos, em que se havia inserido a enfermidade X, porque a OMS considerava provável que surgisse um patógeno desconhecido que poderia causar uma epidemia com consequências muito graves, uma perturbação completa da sociedade em todo o mundo, e considerava provável que, novamente, esse patógeno seria do tipo dos coronavírus.

Assim que, da mesma forma que em relação à mudança climática, estamos em um cenário conhecido, aonde os cientistas vêm soando o alarme há mais de cinquenta anos, dizendo que, se continuarmos enviando gases de efeito estufa na atmosfera, iremos desequilibrar completamente o sistema climático e isso poderia ter consequências absolutamente dramáticas. Novamente, os governos o ignoram por completo. Como sabemos, as emissões de gases de efeito estufa seguem aumentando, salvo que, agora, com a pandemia, reduziram-se.

O cúmulo do absurdo, ou a cegueira dos responsáveis políticos, é que com relação à pandemia, em 2003, pesquisadores belgas e franceses chegaram à conclusão de que os coronavírus são uma categoria de vírus muito estáveis e que, portanto, seria possível encontrar com bastante facilidade um tratamento que fosse válido não somente para a SARS-1, mas também para outros coronavírus que viriam depois. Estimaram o custo desta investigação em 200 ou 300 milhões de euros. Obviamente, necessitavam de subvenções públicas. Não as obtiveram.

Os governos consideram que a pesquisa sobre os medicamentos pertence à indústria farmacêutica. E a indústria farmacêutica não pesquisa pelo bem da humanidade ou da saúde pública, mas com finalidades lucrativas. Portanto, necessita de um mercado e de clientes solventes. Como a epidemia da SARS havia terminado, já não havia mercado, nem clientes, assim que a pesquisa não foi realizada. Isso ilustra a natureza da atitude política daqueles que tomam as decisões e dos líderes econômicos frente às grandes ameaças ecológicas de que agora forma parte a pandemia, sua incapacidade para levar em conta o que se conhece e as advertências que lhes são feitas.

Essa surdez ou cegueira deve-se principalmente ao fato que as e os responsáveis políticos estão completamente subordinados ao imperativo do lucro capitalista no curto prazo e, portanto, não veem mais além de seu próprio nariz. Em segundo lugar, há uma razão mais ideológica: estão intoxicados pela ideologia do capitalismo, a ideologia neoliberal. Consideram que as leis do mercado são mais fortes que as leis da biologia para o vírus ou as leis da física para a mudança climática. Consideram que as leis de seu sistema econômico são leis naturais superiores e que o mercado consertará tudo se algo der errado. Agora, mais do que nunca, vemos que o mercado não resolve tudo: se pedimos máscaras para a China para proteger os cuidadores de nosso país, mas a China está bloqueada pela pandemia, não há mais máscaras e não estamos protegendo as cuidadoras e cuidadores, nem a cidadania. Tão simples como isso.

V

A gestão da pandemia. Todos os políticos de hoje em dia se veem obrigados a geri-la, incluso aqueles que não pensavam que tinham de fazê-lo, como Trump, Johnson ou Mark Rutte (NT: primeiro-ministro da Holanda), que queriam deixar que o vírus se propagasse e a comunidade se tornasse imune. Inclusive essas pessoas se veem obrigadas a retroceder apressadamente. Não fazer nada, como defenderam no começo, não somente será mais custoso para o sistema capitalista, mas terá um custo muito caro em termos eleitorais, e para Trump, por exemplo, isso é peccata minuta (NT: pecado pequeno, coisa menor ou sem importância), nada menos. Assim que todos nos dizem o mesmo: que é uma questão de bem comum e que todo o mundo deve se unir ao redor dos ilustrados líderes para lutar contra o vírus. Evidentemente, temos que respeitar as instruções de segurança: permanecer confinados, respeitar a distância física (e não a social)… Não fazê-lo seria irresponsável, mas respeitar as instruções de segurança não significa submeter-se à lógica política que existe por trás delas. Essa lógica é uma lógica de classe, de capitalismo puro. A primeira prioridade dessa lógica é a de minimizar o impacto da pandemia no setor produtivo, onde se obtém o lucro, que é o coração da economia capitalista e, por isso, enviam-se os trabalhadores e trabalhadoras a trabalhar em setores que não são essenciais.

A segunda prioridade nessa gestão da pandemia é não questionar a política antissocial, os planos de austeridade que foram impostos até agora, especialmente no setor da assistência [sanitária], por isso o excesso de carga de trabalho de todos os trabalhadores e trabalhadoras desses setores. Obviamente, a condição para que esta equação seja equilibrada é cessar todas as atividades sociais, ou culturais ou pessoais que não entrem nessas categorias; e por isso, o lockdown e o confinamento.

Também existe uma preocupação política que se soma a essas considerações: todos (ou a maioria) dos governos se enfrentam a uma terrível crise de legitimidade, as pessoas já não acreditam neles e querem uma mudança. A pandemia oferece uma oportunidade para que os líderes se apresentem como senhores da guerra, como o fez Macron na televisão; com o pretexto de lutar contra a pandemia estão sendo implementados fortes mecanismos autoritários. Um caso para um livro de história é o de Orban na Hungria, que se erigiu em ditador para a gestão da epidemia. Estamos na lógica descrita por Michel Foucault: a biopolítica unida à “vigilância e o castigo”. Esta é uma advertência séria, porque a pandemia é grave, mas não é comparável com o impacto da mudança climática se ocorrer uma mudança em direção a um cataclismo climático com o aumento do nível do mar em 2 a 3 metros.

A gestão da pandemia nos dá uma imagem do que poderia ser a gestão capitalista de tal situação, que evidentemente [os capitalistas] não anteciparam e que serão obrigados a gerir. Voltarão a priorizar os mesmos tipos de medidas: prioridade à produção colocarão as liberdades, a vida social, a vida cultural em quarentena e, em nome da luta contra a epidemia, serão outorgados poderes especiais e criarão um Estado forte.

VI

Obviamente, o objetivo estratégico da gestão sanitária [para os poderes atuais] é o de relançar a máquina capitalista, que de momento está completamente avariada por causa da pandemia. A situação irá conduzir a uma crise econômica de grande escala, pior que a crise financeira de 2007-2008. Hoje em dia, para fazer frente à situação, os governos têm que deixar de lado suas políticas neoliberais: a União Europeia congelou o pacto de estabilidade orçamentária e seus objetivos de dívida zero/déficit zero. Estão obrigados a ir mais longe, estão obrigados a questionar não somente certo número de dogmas neoliberais, mas também certo número de regras capitalistas, por exemplo, a sacrossanta liberdade de empresa: fala-se de nacionalizações e expropriações. Em outras palavras, devemos salvar o capitalismo colocado em perigo pelo capital. Isso não significa de nenhuma maneira que já haja uma ruptura com o neoliberalismo e muito menos com o capitalismo. Pelo contrário, significa que está sendo preparada uma ofensiva social em grande escala perante a qual as classes trabalhadoras devem se preparar para responder.

Irei me restringir aqui ao impacto ecológico de um renascimento da economia capitalista. Este impacto é muito perigoso. François Gemenne (membro do IPCC, coautor do Atlas do Antropoceno) não se equivoca ao afirmar que a crise do coronavírus é uma catástrofe climática. Porque o discurso que escutaremos é o de dar prioridade à economia, à recuperação, utilizando o emprego como pretexto. A partir dessa lógica, para reativar a economia se colocará rebaixar os objetivos climáticos, relaxar as regulamentações ambientais que são demasiado rígidas, e assim sucessivamente. Mas François Gemenne tampouco tem razão: tudo isso não se deve ao Coronavírus; pelo contrário, esta crise demonstra hoje que poderíamos reduzir radicalmente as emissões de CO2 em torno de 7%/anuais se produzíssemos e transportássemos menos mercadorias no planeta. O perigo não provém da crise do coronavírus, mas da resposta capitalista a esta crise do coronavírus, e é tão maior que a crise do coronavírus está sendo utilizada como pretexto ou cortina de fumaça para responder a uma crise econômica que começou antes da pandemia.

Temos que estar preparados para um ataque muito duro, porque irão colocar na balança, como costuma ocorrer no capitalismo, o emprego, por um lado e a defesa do meio ambiente, por outro. No entanto, há uma contradição muito importante nessa vontade de ir à ofensiva: é que o desejo de relançamento e de dar prioridade ao capital e à sua rentabilidade vai contra o sentimento das pessoas, que pensam que fomos demasiado longe com a economia, com o lucro, que nos esquecemos do social, da saúde e do cuidado das pessoas. Essa contradição é um grande obstáculo para a ofensiva capitalista que querem levar a cabo os governos. Porque à luz da crise da pandemia, os cuidados têm um conteúdo muito concreto. Trata-se de evitar outras pandemias que poderiam ser mais graves e que teriam a mesma origem na destruição dos ecossistemas.

A conclusão é óbvia: se queremos evitar outras pandemias, temos que abandonar a agroindústria, a agricultura industrial, temos que deter o desflorestamento, necessitamos uma reforma urbanística em longo prazo que desconstrua todas essas megalópoles e construa cidades mais interconectadas com entornos naturais ou seminaturais. Para combater as pandemias, necessitamos, sobretudo, água limpa, à que não têm acesso centenas de milhões de pessoas. A água deve ser pública e não deve ser utilizada para irrigar as plantações agroindustriais. Da mesma forma, se queremos estabelecer sistemas de saúde robustos, capazes de fazer frente às novas pandemias do antropoceno, eles devem ser radicalmente refinanciados. Para isso, é preciso que os acionistas paguem e que a dívida dos países do Sul seja cancelada. Quarenta e seis países gastam mais dinheiro em pagar os juros da dívida que em atenção sanitária. O cancelamento da dívida é uma condição sine qua non para lutar contra as pandemias.

Também existe a mudança climática em si mesma: sabemos que, provavelmente, o derretimento do permafrost1 liberará antigos vírus ou bactérias que se propagarão por meio dos trabalhadores das minas dessas zonas. Por isso, é absolutamente necessário respeitar o objetivo fixado em Paris de um aquecimento máximo de 1,5°C e, portanto, socializar a energia e as finanças.

Em resumo, trata-se de desenvolver o caminho dos “cuidados” – um tema desenvolvido pelas (eco)feministas – para desvendar todos os objetivos anticapitalistas. Trata-se de reformular a alternativa ecossocialista a partir desse ponto de vista: partir da grande mudança que supõe o que hoje em dia a conclusão que as pessoas extraem da crise é que se necessita dar uma prioridade muito maior à saúde, o bem-estar e o cuidado, e que para isso é preciso colocar os meios [necessários]. Isso representa um importante ponto de inflexão estratégica, porque durante décadas os ecossocialistas se enfrentaram a um problema: que a luta ecológica, ainda que social no longo prazo parecia estar em contradição com o bem-estar social no curto prazo. Agora, com esta grande mudança, com a irrupção dos “cuidados”, os dois temas se superpõem, o social e o ecológico coincidem: liderar a luta social é liderar uma luta ecológica.

É este ponto de inflexão que devemos tratar de aproveitar e cuja oportunidade devemos ver. Tem consequências imediatas e temos que começar essa luta desde já, lutando contra este sistema e contra projetos produtivistas como o 5G, lutando para que a saúde saia definitivamente do mercado, seja refinanciada e para que a indústria farmacêutica seja confiscada, para que os bancos sejam socializados, etc.

 

*Transcrição da videoconferência dada por Daniel Tanuro realizada em 1/04/2020: https://www.facebook.com/gaucheanticapitaliste/videos/530976537793375/UzpfSTEwMDAwMTYzMDk0MDAwMjoyOTE1NjgzNDkxODI5MzIw/

 

1 NT: O permafrost é um solo que fica permanentemente congelado, encontrado a centenas de metros de profundidade. É encontrado no subsolo de regiões muito frias (polares e subpolares) como, por exemplo, no Ártico e na Sibéria.