Pular para o conteúdo
Especiais

Capitalismo, coronavírus e mudança climática

John Molyneux

Tradução Waldo Mermelstein

 

Em termos do conhecimento e da tecnologia médica e científica nunca houve um momento na história humana em que estivemos colocados tão bem como hoje para lidarmos com o tipo de ameaça que estamos enfrentando.

Ainda é difícil imaginar um sistema social e econômico pior para responder efetivamente do que o capitalismo, especialmente o capitalismo em sua atual forma neoliberal. O problema não é somente que muitos de nossos líderes, os da laia de Donald Trump e [Boris] Johnson não dão a mínima importância às vidas e mortes das pessoas comuns. É mais do que isso. Toda a forma como este sistema está organizado impulsiona precisamente na direção oposta à de lidar com a pandemia na forma em que se requer, mesmo nos termos médicos mais simples.

Primeiro, há um fato fundamental que sob o capitalismo a produção é organizada em base ao lucro privado. A comida é produzida, as casas são construídas, os remédios e os fármacos são produzidos para dar lucro. Se não gerarem lucro não serão feitos. Os defensores do capitalismo acreditam que isso é algo bom. Eles acreditam que sem o incentivo do lucro nada será produzido ou as únicas coisas produzidas seriam mercadorias de má qualidade e que não funcionam.

Mas, em uma situação de pandemia, a necessidade mais urgente é a de grandes quantidades de mercadorias e serviços (higienizador das mãos, máscaras faciais, kits de testes, respiradores, cuidadores de saúde de todos os tipos) que não podem ser fornecidos a tempo com base aos incentivos de mercado. Os economistas e políticos que justificam o capitalismo argumentam que se houver falta de uma mercadoria para a qual existe demanda, o preço de tal bem irá subir e isso irá incentivar os capitalistas a produzir mais dele até que oferta e demanda entre em equilíbrio. Na realidade, isso não funciona mesmo tem tempos “normais”. Em uma crise sanitária de uma pandemia, suas consequências são catastróficas; isso simplesmente significa que enquanto esperamos que os mecanismos de feedback do livre mercado funcionem, literalmente centenas de milhares (globalmente, muito milhões) morrerão. Isso é tão brutal e claro que, nesta situação, inclusive o mais insensível ideólogo neoliberal é forçado a reconhecer a completa inadequação do mercado e a necessidade de uma drástica intervenção estatal. Mas isso vai contra tanto as suas inclinações como à integralidade do sistema.

Em segundo lugar, há o fato de que, sob o capitalismo, a produção é organizada de forma competitiva. Diferentes empresas e companhias estão envolvidas em uma incessante competição umas contra as outras. Novamente, os apoiadores do sistema acreditam que isso é bom e que o que eles denominam de “espírito competitivo” deve ser incutido nas crianças desde a idade mais precoce possível.  Mesmo no melhor dos momentos, isso causa absurdos como numerosas marcas de sabão em pó e celulares que são mais ou menos os mesmos, mas fingem ser diferentes na disputa por uma participação maior no mercado. Mas, nessa crise sanitária global, tal competição é totalmente desastrosa porque bloqueia qualquer planejamento racional justamente no momento em que o planejamento é mais necessário. Por exemplo, isso leva a que companhias aéreas rivais façam dezenas de milhares de “voos fantasmas” por medo de perder suas “quotas” nos aeroportos e minha caixa de e-mails ainda está sendo bombardeada, enquanto escrevo, com anúncios da Ryanair para fazer reservas para feriados. Se alguns pubs no centro da cidade estão abertos, outros farão o mesmo para não perder espaço e serem excluídos do mercado; logo, a loucura dos pubs, clubes e ruas no sábado à noite.

É igualmente prejudicial que haja muitos centros de decisões competindo entre si não somente dentro de cada país, mas entre nações rivais. Se houve alguma vez uma situação que exija de nossos denominados líderes mundiais concertarem um plano internacional comum é nesta pandemia global. Pelo contrário, temos diferentes países adotando decisões unilaterais e empregando estratégias diferentes, como a Grã-Bretanha que manteve as escolas abertas [NT: no início da pandemia], enquanto outros países estão fechando-as.  E, claro, aqui na Irlanda temos o absurdo de duas políticas diferentes na ilha da Irlanda, uma catastrófica, no Norte (sob domínio britânico) e uma, um pouco melhor, na República da Irlanda, como se o vírus pudesse ser detido na fronteira; uma situação que os Unionistas pró-britânicos lutarão para manter “por princípio”.

Terceiro, há o fato de que a crise do coronavírus também está gerando uma grande crise econômica. Aqui é importante compreender que NÃO é a doença e as mortes de grande número de pessoas que estão fazendo com que os mercados acionários caiam acentuadamente ou causem uma recessão global; é o pânico que a pandemia está incutindo nos investidores e especialmente as medidas que precisam ser introduzidas para controlá-la. A Segunda Guerra Mundial, que ceifou 50 milhões de vidas, foi de fato muito boa para o capitalismo e o tirou da depressão dos anos 1930. Como o capitalismo está sempre propenso a crises e quebras e requer um crescimento incessante para evitar o colapso, tomar medidas perfeitamente sensatas no interesse da saúde pública diminuindo o transporte aéreo, eventos esportivos de massas ou a venda de álcool em pubs ameaça imediatamente afundar o capitalismo em uma espiral descendente desastrosa, que prejudicará ainda mais a capacidade da sociedade de adotar a resposta de saúde pública necessária para salvar incontáveis vidas.

Finalmente, existe a divisão de classes que é inerente ao capitalismo. Isso significa que aqueles que tomam as decisões mais importantes são, como um todo, menos prováveis de pagar esse preço. Janotas esnobes como Boris Johnson e patrões bilionários como Donald Trump sabem que eles e sua classe serão relativamente protegidos da crise. Eles podem se dar ao luxo de contemplar com equanimidade a “matança” de uma porção da população com a segurança de que serão principalmente os trabalhadores, os pobres, os idosos (os idosos pobres, não os ricos) que não se salvarão. Claro que mesmo Trump e Johnson não são imunes, especialmente se a crise continuar, mas a escala do impacto será enormemente diferenciada como é o caso de todas as questões de saúde.

Como ecossocialistas, devemos observar que todas as características básicas do capitalismo que o tornam tão ruins ao lidar com o coronavírus são precisamente as mesmas coisas que tornam o capitalismo incapaz de deter a mudança climática. De certa forma, a crise do coronavírus é similar à mudança climática, mas comprimida em um marco de tempo muito mais curto.  O fato de que a ameaça colocada pela mudança climática seja menos imediata torna mais fácil para os governos procrastinar e empurrar com a barriga para futuras gerações ou mesmo para o próximo governo. Além disso, é muito mais fácil para as classes dominantes imaginar que podem se proteger a si próprias e aos seus pares da mudança climática do que contrair o vírus. Isso significa que, ainda que eles tenham tido muitos alertas sofisticados e saibam perfeitamente bem o que virá mais à frente, os vários capitalismos rivais e seus governos continuam a não estar dispostos a tomar a ação que eles sabem que é necessária.

Neste ponto, mudemos o foco das falhas do capitalismo para o que precisa realmente ser feito. Eis dez propostas práticas simples que são obviamente necessárias na presente crise: essas propostas são especificamente dirigidas à situação na Irlanda, mas a maioria delas poderiam se aplicar na maioria dos países:

  • Estabelecer uma resposta dos 32 condados para a emergência com uma estratégia unificada no Norte e no Sul
  • Requisitar leitos e instituições privadas para enfrentar a aguda falta de leitos.
  • Colocar todos os laboratórios e instalações de pesquisa sob controle público para melhorar o diagnóstico e tratamento.
  • Aumentar decisivamente a testagem e redirecionar a produção sob controle estatal para produzir kits, equipamentos de proteção e respiradores, todos os quais estão com baixa oferta.
  • Estabelecer um Fundo de Assistência de Emergência em uma escala comparável aos resgates dos bancos em 2008, ou seja, 64 bilhões de euros ou mais para pagar pelas medidas de emergência.
  • Fornecer pagamentos de emergência para todos os trabalhadores que foram colocados em layoff, foram demitidos e os que estão em auto-isolamento.
  • Testagem emergencial e apoio para todos os trabalhadores cuidadores.
  • Congelar alugueis e financiamentos imobiliários e deter os despejos para que não haja um grande aumento na população sem-teto.
  • Fim aos centros de acolhimento dos refugiados, pois eles tornam o distanciamento social e o auto-isolamento impossíveis. O mesmo é correto com relação aos abrigos para sem-teto. Requisitar quartos de hotéis para os refugiados e os sem-teto – haverá muitas vagas devido ao declínio no turismo. Isso não é somente a respeito de cuidar os sem-teto e os refugiados, é no interesse de todos nós.
  • É urgente que as comunidades se organizem para apoiar os vulneráveis e umas às outras.

Seria fácil continuar, mas o ponto que quero salientar é que, não somente essas propostas são medidas que os socialistas – tais como Pessoas Acima dos Lucros na Irlanda – têm defendido, mas elas são em si mesmas passos na direção do socialismo. Isso é assim porque produzir para as necessidades sociais e mobilizar todos os recursos da sociedade, incluindo sua economia, para servir aos interesses dos 99% e não ao do 1% é exatamente o que o socialismo significa.

Uma economia não baseada em uma compulsão para crescer e acumular, mas no planejamento racional, incluindo em muitos casos planejar para congelar o crescimento (por exemplo, para lidar com a mudança climática) não iria colapsar quando o crescimento fosse interrompido por algumas semanas ou meses. Uma sociedade em que as necessidades básicas, tais como habitação, transporte público, assistência em saúde, alimentos básicos, etc., fossem desmercantilizadas, ou seja, tornadas gratuitas e pagas coletivamente a partir dos impostos gerais, na forma em que a água e a educação o são em muitos países, salvaria incontáveis vidas e evitaria imenso sofrimento na atual crise; isso contribuiria para uma sociedade muito melhor, mais saudável e mais sadia em geral do que a insanidade da corrida destrutiva em que o capitalismo quer que participemos.

E exatamente o mesmo se aplica ao enfrentamento da mudança climática. Todas as coisas óbvias que precisam ser feitas – preparando um plano nacional e global e para eliminar a tempo os combustíveis fósseis, não em 30 anos; acabar com a compulsão de crescer indefinidamente; assegurar uma justa transição para os trabalhadores que percam seus empregos e para os países do Sul Global que sofrerão mais por meio da solidariedade internacional; caminhar para um transporte público muito expandido; reflorestamento planejado em uma escala massiva – são precisamente o que os socialistas devem certamente propor e que, se implementadas como parte do planejamento socialista democrático não somente salvariam a humanidade e incontáveis espécies, mas criariam um mundo muito melhor para todos que nele vivemos.

 

*John Molyneux, escritor e ativista socialista, editor da Irish Marxist Review, Irlanda.

 

Publicado originalmente em: http://www.globalecosocialistnetwork.net/2020/03/17/capitalism-the-coronavirus-and-climate-change/