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COLUNISTAS

Em defesa de Alexya Salvador, mulher trans, negra, reverenda e socialista

Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online
Arquivo pessoal.

Alexya Salvador, vestindo uma estola costurada por ela mesma.

“Fundamentalismo. Substantivo masculino.

  1. [RELIGIÃO] movimento religioso e conservador, nascido entre os protestantes dos E.U.A. no início do século XX, que enfatiza a interpretação literal da Bíblia como fundamental à vida e à doutrina cristãs [Embora militante, não se trata de movimento unificado, e acaba denominando diferentes tendências protestantes do sXX.].
  2. [POR EXTENSÃO] qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos; integrismo.”

Definição de fundamentalismo numa pesquisa pelo Google.

Alexya Salvador, mulher trans, negra e reverenda anunciou sua pré-candidatura a vice-prefeita na chapa com Sâmia Bonfim na cidade de São Paulo pelo PSOL. Uma grande quantidade de pessoas se opuseram a essa escolha, muitas com bastante ódio. Os fundamentalistas cristãos consideram que é uma afronta à sua fé que uma mulher trans se declare cristã, ainda mais reverenda. Alguns militantes de esquerda consideram que não deveríamos aceitar uma pré-candidata trans, porque isso afastaria votos. Nada mais parecido com a transfobia de direita do que a transfobia de esquerda.

De quem é a contradição?

“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista.”
Dom Hélder Câmara.

Confesso que, mesmo sendo ateia, sou fascinada pela história de Jesus de Nazaré, esse homem que teria vivido dois mil anos atrás nas terras do atual Oriente Médio. Fico imaginando como era, provavelmente se parecia como qualquer galileu de sua época – pele marrom, cabelo crespo, nariz grosso – e ia andando de cidade em cidade, apenas com a túnica do corpo e as sandálias dos pés, castigado pelo Sol numa terra bastante árida, batendo de porta em porta, pedindo comida, um lugar para ficar e água. Que situação vulnerável: se as pessoas não atendessem, ele poderia morrer pelo caminho!

Certamente não tinha nada a ver com a caricatura que fizeram dele, a começar por sua aparência nas milhares de pinturas em que foi retratado – um europeu de pele branca e olhos claros. Se ele viajasse no tempo e no espaço até o Brasil atual, seria negro, sofreria racismo e muito provavelmente seria confundido com um mendigo. Bem, na verdade, de certa forma, ele era um mendigo, não era?

É natural que seu nome tenha sido lembrado e proferido várias vezes ao longo da história por grupos marginalizados quando se levantavam contra a opressão e a violência da qual eram vítimas. O que é realmente bizarro é o mesmo nome ter sido lembrado e proferido também pelos seus algozes! Tento imaginar como esse simples homem reagiria se visse tudo o que foi e é feito em seu nome até hoje. Quanto sangue derramado, quanta violência, quanto ódio! Será que ver tudo isso não lhe seria tortura maior que a própria cruz?

Pobre rapaz! Ser assassinado daquele jeito para depois ser assassinado de novo, de novo e de novo pela Grande Caneta da História!

Por tudo isso, não me estranha que o cristianismo seja reivindicado por pessoas como Alexya Salvador, uma ativista da luta contra a discriminação, defensora dos direitos humanos e da liberdade religiosa. E antes que alguém queira fazer uma pregação, poupe seu tempo: eu conheço as histórias, os sermões e as parábolas do nazareno. É óbvio, para qualquer pessoa com mais de dois neurônios, que nada é mais oposto aos evangelhos – inclusive aos apócrifos! – do que o fundamentalismo cristão.

Em defesa da liberdade de crença – para todas as pessoas, para todas as crenças

“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”
Artigo  5o, inciso VI da Constituição Federal.

Se não é surpresa que os fundamentalistas cristãos sejam incapazes de compreender uma simples frase como “Amai-vos uns aos outros” (e quem dirá a Parábola do Samaritano!), o que assusta é ver a esquerda posicionar-se contra a liberdade de crença porque confundem fundamentalismo com cristianismo.

Os fundamentalistas cristãos querem impor sua crença a todo mundo, menos a nós. Todas as crenças não-cristãs são atacadas por eles. Como a população deste país é majoriamente cristã, o cristianismo não costuma ser alvo de intolerância religiosa, mas há uma exceção a essa regra: as pessoas trans, particularmente as travestis. Para os fundamentalistas, é uma afronta à ‘moral e os bons costumes’ quando uma mulher trans negra não apenas se declara cristã, como também é nomeada reverenda – Alexya Salvador é a primeira mulher trans a receber esse título.

Nós, pelo contrário, temos o dever de defender todas as crenças: cristianismo, umbanda, candomblé, espiritismo, hinduísmo, budismo ou ateísmo.

Eu, particularmente, penso que a chapa de Boulos e Erundina para a prefeitura de São Paulo é a melhor neste momento, mas não porque Alexya vai ‘afastar votos’. Na minha opinião, o pressuposto da esquerda é ganhar corações e mentes para o projeto socialista, para a defesa de direitos e contra toda forma de discriminação. Quando isso não é possível, é melhor perder o voto e tenho certeza que será este o caso independente se a chapa do PSOL for formada por Boulos e Erundia ou por Sâmia e Alexya. Apenas considero que Boulos é, neste momento, o melhor nome para encabeçar uma frente única da esquerda independente, unindo partidos da classe trabalhadora e movimentos sociais. Para ganhar corações e mentes, um nome conhecido ajuda muito.

Independente disso, sou obrigada a criticar os argumentos, inclusive os da esquerda, que se colocam contra a liberdade de crença das pessoas trans, seja por confusão, por transfobia velada ou explícita. Considero que a liberdade de crença é um princípio e, portanto, deve ser defendida em qualquer situação. Não somos nós que abandonamos nossos princípios para ganhar votos.