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BRASIL

O colapso financeiro das universidades estaduais paulistas e as tarefas do movimento estudantil

Afronte SP
USP

As universidades estaduais de São Paulo são um patrimônio da educação pública do Brasil. São referência na qualidade do ensino e no desenvolvimento de pesquisas em toda a América Latina. A manutenção desse status é resultado, também, de uma luta cotidiana dos três segmentos da comunidade acadêmica, porque é parte de uma luta cotidiana dos movimentos estudantil, docente e técnico a conquista de recursos públicos para a universidade pública.

Há anos que a UNICAMP, UNESP e USP passam por uma crise de financiamento. Foram anos de uma positiva expansão, porém sem a elevação da dotação orçamentária. Contudo, em 2020, o país passa por uma das maiores recessões (ou depressão) de sua história. A contração da renda e redução das vendas compromete a arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de modo que a já existente crise de sub financiamento das universidades se soma a uma crise financeira do Estado podendo comprometer serviços básicos da universidade; pressionar o fechamento de campus; levar a corte de gastos com pessoal ampliando o EaD; e levar a buscas por “formas alternativas de financiamento” através de parcerias com organizações privadas comprometendo o interesse público da pesquisa e o acesso ao ensino através de cursos pagos ou cobrança de mensalidades. 

Discutir um pacote fiscal emergencial para as universidades estaduais será uma tarefa da mobilização estudantil do próximo período, pois a possibilidade do fechamento do campus de Rosana da UNESP e a aprovação de cursos de pós-graduação lato sensu na Unicamp são um prelúdio do que está por vir nos próximos meses. Por outro lado, está cada vez mais evidente que a dependência de um único imposto bastante sensível aos ciclos econômicos como ICMS para garantir o financiamento do ensino superior paulista é colocar as universidades em situações de crise financeira regularmente. É necessário abrir uma outra discussão de um financiamento mais seguro, com impostos menos sensíveis ao ciclo e não-regressivos.

O subfinanciamento das estaduais paulistas

A forma de financiamento das universidades estaduais paulistas foi estabelecida com o decreto da autonomia universitária (decreto nº 29.598, de 02 de fevereiro de 1989) do governo Quércia, que tem como um dos aspectos centrais a autonomia de gestão financeira. Até aquele momento não havia legislação que definisse claramente de onde sairiam as verbas e seus valores, sendo os reitores e diretores de faculdades e institutos obrigados a estar sempre buscando verbas junto aos governos, muitas vezes para projetos específicos. Isso impedia um bom planejamento financeiro, com investimentos constantes, e impunha uma dependência política significativa das universidades. 

O decreto fixa que as estaduais passariam a ser financiadas por um repasse de 8,4% da arrecadação global do ICMS no estado de São Paulo. O então reitor da Unicamp, Paulo Renato, calculou que nos três anos anteriores as estaduais receberam o equivalente a 11,6% do repasse do ICMS, o que significa que a apesar de uma conquista de maior autonomia, as universidades tiveram redução da dotação orçamentária. Nos anos subsequentes seguiu-se a luta pela ampliação da alíquota de repasse para 11,6%. Em 1992, conquistou-se um aumento para 9% até que, em 1995, o percentual foi elevado para 9,57 %, valor que vigora até hoje.

Acontece que observando a expansão das universidades do Estado de 1995 até 2017 é notável que o repasse de 9,57% do ICMS se mostrou insuficiente.

Fonte: Proposta do Fórum das 6 para a LDO 2020. 

Entre 1995 e 2017, as 3 universidades estaduais tiveram uma redução no número de técnicos administrativos. O caso da UNESP é o mais grave com uma queda de 24,4%. O quadro docente também diminuiu no caso da UNICAMP (-4,8%) e da UNESP (-3,2%). A USP teve um aumento de 11,37% no número de professores. Por outro lado, todas as três universidades expandiram consideravelmente o número de cursos de graduação e pós-graduação. Isso se expressou num aumento das matrículas que, no caso da graduação, atingiu um crescimento, no mesmo intervalo de tempo, de 93,68% na UNESP, 98,8% na UNICAMP e 76,1% na USP. Soma-se a isso a abertura de novos campi como o campus de Limeira da UNICAMP e os campus de Rosana, Ourinhos, Itapeva, São João da Boa Vista, Sorocaba, Dracena, Registro e Tupã, da UNESP. É inconteste que há um problema de subfinanciamento de modo que é impossível ampliar o quadro de servidores de maneira que acompanhe a expansão no número de matrículas. Porém, a expansão foi possível devido ao ciclo de crescimento econômico de 2003 à 2013, que possibilitou um aumento da arrecadação do ICMS.

Com a crise econômica que eclode em 2015, as estaduais passam a ter dificuldade de manter suas atividades. A narrativa do Governo do Estado e do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (CRUESP) é que houve um aumento descontrolado de gastos combinado com uma política da reitoria de ceder a “demandas corporativistas” (é como se referem à luta histórica dos técnicos administrativos pela isonomia e a um plano de carreira sério, bem como a conquista de direitos dos trabalhadores). O que eles não falam é da expansão necessária das universidades que já se deu sob um cenário de precariedade e sem a suficiente contratação de funcionário e docentes. Também não falam da política do Governo Estadual de garantir isenções fiscais bilionárias do ICMS para grandes empresários, valores que chegaram a 16 bilhões em 2019.

O cenário pós 2015 é de aplicação de um duro ajuste e sucessivos cortes nas contas das estaduais, no qual as universidades perderam cerca de 10% do seu quadro docente devido ao congelamento das contratações. A busca do CRUESP era por um tal “equilíbrio de contas” que levou a uma defasagem salarial (frente à inflação) de 16% para docentes e funcionários (20% na UNESP) de 2015 até aqui. 

  O que este quadro aponta é que o problema orçamentário não é uma novidade trazida pela pandemia. O subfinanciamento é crônico e se arrasta há mais de duas décadas, se fazendo sentir ainda mais nos últimos anos.

A crise financeira de 2020

O tamanho da retração econômica ainda não está muito claro, mas, até o momento, as projeções e dados disponíveis são bem negativos. Projeta-se um retração de 6,5% do PIB para 2020 (Boletim focus, 19/06/20). As vendas em abril, segundo a PMC-IBGE, diminuíram em 16,8%. Esse cenário já começa a comprometer o repasse para as universidades de São Paulo. Calcula-se uma perda de 1,2 bilhões em 2020.

A crise financeira somada a crise crônica de subfinanciamento cria um cenário grave para as universidades estaduais. A UNESP, por exemplo, não contrata professores desde de 2014. Em 2019, não pagou 13º salário para os funcionários. Mesmo assim, a dotação repassada até o momento não é capaz de cobrir nem os gastos com o pessoal (118% do orçamento). USP(122%) e UNICAMP(125%) se encontram na mesma situação. A União deve repassar para o Estado de São Paulo 7,69 bilhões de reais como parte do plano de socorro dos Estados. Porém, até o momento, não há nenhuma previsão da destinação de parte desses recursos para as universidades estaduais. Mesmo num cenário em que as universidades mais precisam de recursos para garantir que todos os alunos tenham as condições técnicas de acompanhar o ensino remoto.

Defender recursos públicos para as Universidades Estaduais: Por um pacote fiscal de emergência sem comprometer outras áreas sociais! 

Diante da crise orçamentária, a ausência de um plano do Governo do Estado implica impor sobre as universidades um austeridade a partir de dentro. Isso pode significar num futuro próximo a venda de ativos, fechamento de campis, redução de bolsas e comprometimento de outras política de assistência estudantil. Para os profissionais do ensino superior: degradação das condições de trabalho, congelamento de salários, mais suspensão de contratações e redução de quadros. 

Haverá um disputa por saídas e uma maior pressão para a adoção de “vias alternativas de financiamento” que negam o caráter público da universidade. Já existe uma pressão do Governo Federal comprometido com uma agenda privatizante para o ensino superior. Essa agenda está expressa no projeto derrotado “Future-se”, que agora volta a ser discutido no Congresso Nacional.

O movimento estudantil junto aos docentes e técnicos terão uma grande batalha no período pós-pandemia. Existe possibilidades reais de grandes retrocessos que já começam a se expressar. Evitar o colapso das universidades estaduais sem abrir mão de seu caráter público, sem reduzir quadros e destruir a carreira docente, sem comprometer as políticas de assistência estudantil será um grande desafio. Os movimentos da educação superior de São Paulo precisam discutir de forma unitária uma plano de emergência para as universidade estaduais para obter recursos públicos sem comprometer outras áreas sociais. Num primeiro momento, garantir, para as universidades, parte dos recursos do pacote de socorro bilionário da União. Esse deve ser o início de uma campanha em defesa das universidades paulistas.

Os defensores do neoliberalismo dirão que é impossível aumentar o financiamento para as estaduais paulistas sem comprometer outros serviços essenciais. Sabemos que isso é mentira: 1) Além do repasse federal suplementar para os estados e da suspensão do pagamento da dívida dos estados com a União, sabemos que com o decreto de estado de emergência a Lei de Responsabilidade Fiscal foi suspensa, possibilitando que os estados possam contrair dívidas para financiar investimentos de urgência; 2) os estados poderiam usar sua competência tributária para obter mais recursos: por exemplo aumentando as alíquotas superiores do imposto sobre herança, ou revertendo desonerações tributárias.   

 Para além disso, é necessário pensar uma solução para a crise de subfinanciamento crônico. Está claro que a dependência, unicamente, de um imposto altamente sensível aos ciclos econômicos é um erro. Discutir não somente o aumento do repasse do ICMS, mas a obtenção de recursos de outras formas de tributação que sejam menos sensíveis ao ciclo e que não sejam regressivas como o ICMS é fundamental para que as universidades não entrem regularmente em crises financeiras em períodos recessivos típicos das economias capitalistas.