Alguns meses atrás, a adolescente Ndeye Fatou Ndiaye, de 15 anos, foi vítima de racismo através de mensagens compartilhadas em um grupo de WhatsApp, pelos seus colegas de uma escola de elite no bairro Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro. Em um vídeo, a diretora do Colégio lamenta o ocorrido, mas chocante foram as suas palavras que, em momento algum, referiu-se à ação dos alunos como criminosa. Eis as palavras:
“Foi uma rede da internet, das redes sociais fora da escola. Eu queria dizer para vocês é que vocês têm que ter cuidado com as redes sociais. Escrevem o que não devem escrever. Se vocês escrevem nas redes digitais, isso é crime. Então vocês não podem. Tem que ter cuidado. Às vezes é uma brincadeira boba… A gente tem que ter muito cuidado. Isso é muito ruim. Então tenham cuidado…”
Causa revolta como ela trata a situação de crime de racismo chamando-o de “brincadeira boba” e dizendo, inclusive, que a gravidade não está no racismo dos alunos da sua escola, mas no fato de terem compartilhado o que pensavam em redes sociais, pois, nessa sua lógica, teria ficado tudo bem se tivessem somente pensado que o negro ou a negra é inferior, objeto a ser vendido e motivo de piada. Tudo ficaria bem se eles guardassem para si mesmos ou compartilhassem entre si, mas fora das redes sociais. Diretora, diretora, senta aqui um pouquinho!
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Paremos de uma vez por todas de amenizar a criminalidade cometida pelos adolescentes e pelos marmanjos de classe média, quase todos brancos
O que esses “garotões” endinheirados fizeram é crime, previsto na lei 7.716 do dia 05 de janeiro de 1989. Esse crime expresso nas redes sociais, no “rolezinho” com os playboys, na cozinha de suas casas ou no recreio da sua escola, é crime do mesmo jeito. É definitivamente crime. Paremos de uma vez por todas de amenizar a criminalidade cometida pelos adolescentes e pelos marmanjos de classe média, quase todos eles brancos. Esses homens, que um dia foram tratados como esses jovens, não receberam limites ou nunca foram responsabilizados pelas suas ações.
Eu tinha 17 anos quando um grupo de jovens brancos de classe média, da cidade de Brasília ateou fogo no índio Galdino, que dormia em uma parada de ônibus. Ele acabou morrendo devido às queimaduras. O chocante, tanto quanto as palavras dessa diretora, foi a justificativa daqueles jovens na época: “Achamos que era um mendigo” e ainda e ainda “Era só uma brincadeira”.
Ahhh, os marmanjos da classe média! Quantas “brincadeiras” de estuprar empregadas domésticas, botar fogo em pessoas, envenenar moradores de rua, humilhar pobres, destruir patrimônio público, proferir ofensas racistas, traficar drogas nos seus condomínios de luxo e até aparelhar a Polícia Federal porque o pai assim o determinou! E de brincadeira em brincadeira essa sociedade, representada nessa diretora e nos pais desses “garotões”, vai “passando pano” até se tornarem adultos ou velhos e continuarem a cometer crimes dos mais variados e surpreendentes. A “namoradinha do Brasil”, que ri de mortos da ditadura militar e quer apagar a memória social sobre as torturas nesse país, Regina Duarte, disse sobre o presidente da República e suas falas criminosas: “é da boca pra fora”.
Esses rapazes crescerão um dia e muitos deles se tornarão médicos, advogados, juízes, promotores. E sabem o fim disso? Homens que não aprenderam o significado de ética e empatia, a arcar com as consequências de suas ações e tampouco os limites entre legalidade e ilegalidade, pois passaram a vida em uma sociedade que os justificam o tempo todo, que é uma extensão de si mesmos, dos próprios caprichos e narcisismo.
A desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, foi buscar seu “garotão” na cadeia, preso por porte ilegal de arma, e ainda usou o carro do Tribunal de Justiça. Em 2011, um juiz condenou uma agente de trânsito a pagar indenização porque ela, na sua razão e no cumprindo do seu trabalho, o multou por dirigir com a carteira de motorista vencida e lhe disse que juiz não é Deus. Em 2015, uma jovem de classe média, de 24 anos, atropelou um gari com seu carro, provavelmente presente do papai, e ainda ligou para o “190” dizendo que pensava ter atropelado um bandido.
E mais, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve preso um homem que furtou um barbeador pela juíza Camilla Marcela Ferrari Arcaro e na sentença a magistrada escreve: “É evidente que, nestas circunstâncias, se colocado em liberdade, voltará a delinquir, devendo permanecer encarcerado para evitar que volte a atentar contra o patrimônio dos cidadãos de bem”, disse Camila.
“O réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele clara, olhos e cabelos claros”
Em outra sentença ainda, de Lissandra Reis Ceccon, da 5ª Vara Criminal de Campinas, em 2016, sobre um acusado de roubar um carro e atirar contra as vítimas, escreve: “O réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele clara, olhos e cabelos claros”.
Parece brincadeira, mas não é. Os marmanjos que cresceram vendo gente branca passar pela vida de forma lisa, sem obstáculos, sem sequer ser exposta ou punida, enquanto assiste o rosto do “bandido preto” na televisão, sem uma educação libertadora, com excesso de Disneylândia e Shoppings Centers aos fins de semana, só poderiam mesmo julgar com base em estereótipos.
Em nenhum desses casos a gente vê a cara desses garotões, desses marmanjos e dessas barbies de academia, que formam essa classe média “à brasileira” na tela da televisão, sendo arrastados por policiais ou expostos nos programas sensacionalistas onde somente a face do “bandido” é aquela de pobre e de preto. Os corpos brancos da classe média são “sagrados” para essa sociedade que cultiva bandido branco e rico. Vide o caso de Aécio Neves, flagrado cometendo crime, e como punição foi rebaixado do cargo de senador a deputado federal e seu rosto e nome foram esquecidos pela opinião pública e pela mídia hegemônica. Esqueceram do mineirinho, o “garotão”!
Esses homens viram médicos e estupram nos seus consultórios por décadas e quando são presos ainda conseguem brecha na justiça porque quem os julga são também “garotões”, os mesmos que na adolescência e juventude são acostumados com um mundo que os servem e os aplaudem. Quantos promotores, mais cheios de convicções políticas do que provas, têm a cara de pau de ir para a televisão dizer que vão fazer jejum, como se o que acreditam fosse importante para todo o Brasil e não o cumprimento da lei.
Esses marmanjos estão, atualmente, todos soltos e o cenário é propício para eles. Esse país atualmente vive o motim dos marmanjos de classe média, jovens e homens barbados exibindo seus músculos e sua arrogância nas ruas e nas instituições de todo o país, enfiando goela abaixo do resto da população as próprias ideologias, o desejo de exterminar o diverso, o contraditório e todos os obstáculos que encontram pelo caminho que se oponha aos seus desejos narcisistas de poder e privilégio. estão “nadando de braçada” nesse discurso fálico, violento e na possibilidade de andarem armados para melhor se imporem. Estão espancando quem pensa diferente, agredindo as instituições democráticas e ainda, no meio da pandemia, saindo com seus carrões para provar que estão acima de qualquer lei e de qualquer Contrato Social.
Esses marmanjos vão às redes sociais vomitar suas crenças e falas criminosas, ameaçar pessoas e pedir ditadura.
Esses marmanjos vão às redes sociais vomitar suas crenças e falas criminosas, ameaçar pessoas e pedir ditadura. Se esses jovens que cometeram crimes de racismo não forem repreendidos agora, como aqueles que lançam bombas em quartéis e depois se tornam presidente, esse país nunca terá jeito. É preciso conter esses marmanjos desde os primeiros atos criminosos, pois uma vez que ganham espaço e o próprio Ego se expande, até mesmo dentro das instituições, estamos ferrados.
É urgente freá-los e dissolver essa imagem que eles têm de si como “cidadãos de bem” e modelo para as classes populares. É urgente encará-los e rejeitar idolatrá-los, pois contra o “motim dos marmanjos”, somente o enfrentamento. Eu morei em um condomínio cheio deles em Jundiaí e via como o porteiro chegava pela manhã chamando-os de “dôtô” enquanto eles cresciam o peito, reforçando o poder. Muitas crianças mandavam nas suas babás com tamanha arrogância que uma delas, a segunda geração que servia a mesma família, revelou ter jogado em um dos marmanjos da casa um jarro de suco depois de anos de humilhação. Disse-lhe que suco era pouco. É preciso retirar-lhes o tapete vermelho debaixo do pé, esse sorriso cínico de quem se sabe acima da lei e essa hipocrisia de que estão preocupados com os valores da família. E para usar um linguajar do meu sertão mineiro, “contra a servergonhice dos marmanjos, somente a luta dos calejados”.
*Fabiane Albuquerque é sociόloga e pesquisadora pela Unicamp.
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