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Sobre a militância (21): Os profissionais da revolução

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Precisamos conversar sobre a relação entre a militância e a profissionalização na política. Ser um profissional da revolução é muito diferente do que disputar um mandato, ou ser uma liderança sindical, ou ser ativista em um movimento social. Não é um projeto pessoal, não é uma aventura solo. É uma complexa especialização. Decidir ser um revolucionário profissional é um ato de paixão.

Toda paixão é formidável, arrebatadora, avassaladora. A perspectiva de um mundo mais justo pode ser, irresistivelmente, fascinante. A maioria dos militantes vive essa paixão como um momento de descoberta. Ela amplia a imaginação do possível e oferece um sentido para a vida. Mas para alguns é mais do que isso.

A decisão de ser um revolucionário profissional é a mais importante na vida de um militante. É leninismo na veia. Ela é quase sempre assumida quando se é ainda jovem, e a paixão ocupa um lugar central. A força das emoções é muito poderosa. Não sabemos ainda muito bem como opera a mente. A ciência ainda engatinha sobre os mistérios da consciência.

Sabemos que a linguagem da mente é um fluxo de ideias e sentimentos. E sabemos que não há pensamento sem emoção. Mas as emoções são muitas em simultâneo. Se manifestam como uma cacofonia de ideias, há algum “barulho’ na consciência.

Os sentimentos não são um mau guia para a tomada de decisões. Afinal, a seleção natural operando durante milhões de anos estabeleceu um processo de operação da mente em altíssima intensidade. Mas uma militância séria exige autoconhecimento contra a omnipotência, a arrogância, o orgulho. Não é possível o domínio de si mesmo sem um permanente exercício de racionalidade. A paixão deve se moderada pela experiência. A experiência pode ser enriquecida pela educação.

Não é possível a vitória de uma revolução socialista sem a existência de organizações revolucionárias. Esse pressuposto já foi posto à prova incontáveis vezes. E não é possível construir instrumentos de luta úteis e eficazes para a revolução sem os profissionais. Discutir profissionalização é refletir sobre os critérios de formação da liderança. Ser profissional da revolução não é uma carreira, e não é ser funcionário de um aparelho. Paradoxalmente, exige muito mais do que uma carreira profissional, mas não oferece qualquer segurança. Oferece muitas possibilidades de autodesenvolvimento, mas em contrapartida exige imensa devoção.

A luta pela transformação da sociedade é uma maratona. Dedicar a vida à preparação de uma revolução exige constância e paciência. A revolução não é somente uma insurreição. Uma militância revolucionária não deve ser encarada como uma corrida de cem metros. A explosão do encantamento juvenil deve dar lugar à firmeza e equilíbrio de um compromisso estável.

Traz recompensas, mas pede sacrifícios. Não se pode ter uns sem os outros. Estar em posição de liderança em um coletivo oferece alguma satisfação consigo mesmo, até complacência, mas o peso da responsabilidade impõe endurecimento e maturação acelerada, até implacável. Não é indolor.

Exige muitos anos de formação e, sobretudo, dedicação. Não é uma atividade free lancer. Ser um funcionário é uma tarefa técnica. Não é o mesmo que ser um profissional. Não é uma ocupação compatível com qualquer outra. Ser um revolucionário profissional não é possível sem ter dedicação integral.

Uma organização se constrói, mas se destrói a partir da direção. Organizações se constroem de baixo para cima, mas, também e sobretudo, de cima para baixo. Ideias horizontalistas são influentes, porém, ingênuas e, sobretudo, erradas. Nenhum coletivo tem consistência e futuro sem divisão de tarefas. Os quadros são o que há de mais precioso em qualquer organização.

Uma das decisões mais delicadas e complexas de uma organização socialista é selecionar os seus líderes. Não basta que sejam combativos ou inteligentes, simpáticos ou populares. Têm que ter bom caráter. E têm que ser sérios. Em especial aqueles que serão os “permanentes”, os profissionalizados, os fulltimers. Porque mais tempo livre é mais poder.

Ideologia não é certificado de bom caráter. Ser socialista é compreender que não há pessoas boas e más. O mundo não se divide em pessoas que são, naturalmente, do bem e do mal. São as diversas experiências e circunstâncias, e os estímulos sociais que recompensam ou refreiam as ações que nos transformam. Mas há gente muito deformada, e podem aderir a ideias socialistas sem ter disposição para mudar de atitude. Há muita gente que tem excelente caráter, e não é socialista. Infelizmente, o contrário é, igualmente, verdadeiro, e todo coletivo socialista honesto tem o direito de se proteger.

Ativismo não é garantia de seriedade, juízo, responsabilidade. Não é raro que se dissimule com a militância tendências à lumpenização. A lumpenização é uma das pressões mais poderosas na sociedade contemporânea. Há aqueles que cedem a impulsos errantes, ociosos, instáveis e se transformam em cínicos, indolentes, insolentes. Há lumpens em todos os ambientes e classes sociais. Todo coletivo atrai gente que está cheia de ideias do que os outros devem fazer, sugerindo ações e riscos que os outros devem correr. Não devem dirigir.

Ser um revolucionário profissional é uma oportunidade de dedicação ao que mais nos interessa. Os profissionais são a coluna vertebral de qualquer organização. Mas o superativismo pode distorcer nossas mentes. A excitação, empolgamento, entusiasmo favorecem ilusões narcisistas. Sobre si próprio e sobre o projeto político: o desfecho não pode ser senão autoengano. E a frustração pode nos envenenar. Conviver exige respeito. Aonde o respeito se perdeu surgem relações tóxicas. Revolucionários não podem ser nem fanáticos, nem maníacos.

Não basta ter disposição e ambição para ocupar um lugar de direção, embora seja necessário muita resiliência. Dirigentes têm que ser escolhidos. Não é o mesmo ser um militante e ter responsabilidades de liderança. Os deveres não são iguais. O nível de exigência deve ser, incomparavelmente, mais rígido, severo, e rigoroso. Não é possível querer ter o reconhecimento como direção, sem carregar os fardos das responsabilidades.

A paixão revolucionária é bem vinda porque um compromisso honesto com a luta política, na longa duração, exige uma imensa motivação para que a tenacidade seja possível. Mas a dialética nos ensina que tudo está em evolução permanente. As mudanças podem assumir distintas direções. Tudo pode se transformar no seu contrário. Uma paixão frustrada pode degenerar em ódio. É perigoso nos deixarmos seduzir pelos nossos desejos.

A premissa de que as massas estão sempre dispostos a lutar, sejam quais forem as circunstâncias, é uma projeção imaginária. Ser um revolucionário não é repetir todos os dias que a única solução é a revolução. Não pode ser um estado exaltado de consciência. Uma práxis revolucionária não é a distribuição ininterrupta de insultos contra quem tem uma discordância tática. A autoproclamação é uma prova de fraqueza, não de força. Estar isolado pode ser inevitável, mas não pode ser vocação, destino. Quando se tenta embelezar uma condição minoritária crônica em virtude já estamos diante de uma doença política.

As profissionalizações precoces não são ruins, mas, quando prolongadas por muitos anos, favorecem a desestruturação social, e podem induzir maus hábitos. As inevitáveis desprofissionalizações podem trazer percepção de abandono e rancor, portanto, sofrimento psíquico intenso e irreparável. Ninguém é de ferro. As pessoas quebram. Resumo da ópera: as profissionalizações não devem ser feitas sem máxima seriedade e um plano.

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Série militância