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Que raios é ‘platô’ e por que os governos falam disso?

Travesti Socialista

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

“Na política de massas, dizer a verdade é uma necessidade.”

Antonio Gramsci

 

João Dória declarou à imprensa que a cidade de São Paulo estaria próxima de um platô. Em seguida, o Ministro da Saúde declarou que, no Brasil, o número de mortes atingiu o platô, porém o número de casos continua a crescer. Primeiro vamos à questão: que raios é platô? Segundo, esse conceito se aplica ao Brasil? Por fim, por que os políticos que estão no governo estão falando em ‘platô’ e não no tradicional ‘pico’?

O que é platô?

O comportamento do número de pessoas infectadas tipicamente observado em qualquer epidemia são as ondas. Isso costuma acontecer independentemente de haver algum fator externo (por exemplo, uma política de quarentena total ou outro tipo de contenção). Apresento alguns gráficos desse tipo abaixo:

Gráfico 1: Número de mortes diárias por influenza e pneumonia no Reino Unido durante a pandemia de gripe espanhola (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, 2009).

 

Gráfico 2: Número de casos ativos de COVID-19 na Uganda desde 15 de fevereiro, estimados a partir dos casos confirmados. Dados do CSSE, da Johns Hopkins University.

No caso específico do novo coronavírus, foi observado, em raros casos, um tipo distinto de onda, onde o topo das ondas é ‘achatado’. A esse fenômeno foi dado o nome de platô, do francês ‘plateau’, que significa ‘planalto’. Poderíamos, a princípio, suspeitar que esse dado se trata de uma política de testagem ruim, por exemplo quando o número de testes diários em determinado país é limitado. Neste caso, o número de casos confirmados mais ou menos constante, o que gera um ‘platô’ meramente aparente. Este é, sem dúvida, o caso da cidade de Manaus, no Amazonas (explicarei mais abaixo o motivo).

Gráfico 3: Número de casos confirmados ativos em Manaus. Um exemplo de falso platô. Dados do Brasil.IO.

Entretanto, em outros casos, é possível observar um platô mesmo em algumas situações onde a política de testagem se mantém a mesma ao longo da pandemia de COVID-19. É o caso, por exemplo, dos EUA durante o mês de abril.

Gráfico 4: Novos casos diários nos Estados Unidos. Ao longo do mês de abril, o número de novos casos diários permaneceus mais ou menos constante (desconsiderando a oscilação diária, que é natural e consequência da variação da testagem no país), formando portanto um platô. Dados do CSSE, da Johns Hopkins University.

Vale ressaltar que o surgimento de um platô verdadeiro como este é raro. Na vasta maioria dos países, os casos ativos e os novos casos continuam seguindo o padrão de onda tradicional.

Em quais casos surge um platô verdadeiro?

“Se as demais coisas permanecerem iguais, a explicação mais simples tende a ser a correta.”

William de Ockham

Um estudo realizado por dois cientistas de Bangalore, na Índia, foi capaz de explicar e modelar matematicamente as condições específicas nas quais os platôs verdadeiros ocorrem. Demonstrou-se que há duas características específicas da COVID-19 que causam esse fenômeno: (1) um longo período de incubação do vírus (segundo vários estudos, em média 5 a 7 dias) e (2) a grande quantidade de casos pré-sintomáticos e assintomáticos que são, mesmo assim, infecciosos.

Há ainda outras duas condições apontadas pelo mesmo estudo: (1) a implementação repentina de uma política estatal capaz de reduzir drasticamente a transmissão do vírus (por exemplo, um decreto de ‘lockdown’ ou uma política de testagem em massa com isolamento de pessoas confirmadas, como no caso da Coreia do Sul) e (2) uma política de testagem que é eficiente e capaz de detectar pessoas assintomáticas, que seriam, neste caso, isoladas para impedir novas contaminações.

A razão, daí, para o surgimento do platô é a seguinte: a política estatal reduz a transmissão do vírus, porém ainda há uma grande quantidade de pessoas pre-sintomáticas e assintomáticos, que permanecem sem serem detectados por um período considerável, e portanto continuam a contaminar outras pessoas até que sejam detectadas, testadas, confirmadas e colocadas em isolamento. Conforme essas pessoas vão sendo testadas, elas vão sendo contadas entre o número de novos casos. Isso causa uma estabilidade nesse número por um longo período de tempo.

Vale ressaltar que estas condições não se aplicam, nem de longe, ao Brasil. Aqui, a política de testagem é bastante ineficiente, gerando uma alta taxa de subnotificação. Nem mesmo todos os casos sintomáticos são testados, quem dirá os assintomáticos! Ora, estes são a maioria dos casos, como apontam vários estudos feitos pelo mundo. Além disso, também não existe uma política de isolamento de pessoas confirmadas.

Por esse motivo, não há qualquer razão para esperar que, no Brasil, esse fenômeno ocorra. O que se verifica aqui são platôs falsos devido ao número limitado de testes, que está longe de dar conta do enorme número de contaminações que ocorrem aqui. Por tudo isso, o suposto ‘platô’ no número de mortes no Brasil é aparente, assim como o ‘platô’ de casos que ocorre em Manaus, no Amazonas.

Mas por que estão falando de platô, então?

A razão para os governantes no Brasil apontarem a existência de um platô chama-se oportunismo político. Afinal, não há nenhum dado real que aponte que o pico tenha sido atingido em algum local, nem mesmo em Manaus. Em vez disso, é mais fácil e conveniente apoiar-se numa falsa impressão nos dados que é causada, justamente, pela política instável e insuficiente de testes.

Este é nitidamente o caso da cidade de São Paulo. Segundo uma estimativa realizada pela própria prefeitura da cidade, para cada caso confirmado, existem cerca de 10 pessoas infectadas. Este número altíssimo, por si só, demonstra que a subnotificação é enorme e, por isso, é a explicação mais simples para a aparente diminuição no número de novos casos na cidade. Apesar de saber que a subnotificação na cidade é enorme, o governador continua a propagandear, dia após dia, que o número de novos casos está diminuindo na capital paulista e que o número de testes está aumentando. Trata-se, assim, de de um oportunismo.

No caso do número de mortes a nível nacional, o mesmo problema se verifica. De fato, cada morte está demorando semanas para ser testada e, neste caso, ela é inserida no número de mortes do dia da testagem. Por exemplo, as 1252 mortes confirmadas no último dia 2 de julho não ocorreram neste dia, mas há uma, duas, talvez três semanas atrás. O atraso cada vez maior na testagem faz com que o número de mortes confirmadas diariamente fique mais ou menos estável, criando um falso platô. Portanto, é mais um exemplo de oportunismo político.

Tudo isso serve, em última instância, como desculpa para as políticas morticidas que estão sendo adotadas pelos governos de flexibilizar a abertura quando o número de casos ainda continua em ascensão. Em vez disso, o que deve ser feito é uma política radical de quarentena geral, juntamente com outras políticas de contenção e de prevenção de contaminação por parte dos governos, a começar pelo federal. É necessário, além disso, de garantir as condições sociais e econômicas para que as pessoas possam permanecer em casa.

Para que isso seja possível, o primeiro e fundamental passo é derrubar imediatamente o presidente Bolsonaro.

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