A calamidade pública do Distrito Federal chama-se Ibaneis Rocha

Lígia Maria*, de Brasília, DF
Marcelo Camargo / Agência Brasil

O governador eleito Ibaneis Rocha (DF),, durante Fórum de Governadores eleitos e reeleitos, em Brasília.

Na última segunda-feira, dia 29 de junho, o governador do Distrito Federal declarou calamidade pública na capital em razão da pandemia. Ao mesmo tempo, Ibaneis Rocha referiu à imprensa sua intenção de reabrir totalmente o Distrito Federal para as atividades até agosto, incluindo bares, restaurantes, escolas e universidades. A entrevista concedida pelo governador traz, entre muitas falácias, o reforço à afirmação negacionista e obscura referida pelo Governo Federal desde o início da pandemia do novo coronavírus: “a COVID-19 deve ser tratada como uma gripe”.

A atitude do poder executivo suscitou reações do legislativo e, principalmente, o debate entre a população, que passou a discutir as condições às quais o DF está submetido e se, realmente, é possível retomar as atividades totalmente na capital. O decreto nº 43.939/2020, publicado no dia 2 de julho, considera medidas impraticáveis, sobretudo no âmbito da educação, desprezando a realidade da periferia do DF. Há na normativa disposições inalcançáveis para a estrutura das escolas públicas da capital e até mesmo de sua instituição de ensino superior distrital, a Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), uma vez que os espaços físicos não comportam o distanciamento social, o custeio e o investimento não abrangem a compra de insumos que garantam a higiene e a estrutura física das unidades de ensino como um todo é precária.

Será neste contexto onde o governo reinserirá jovens periféricos, muitos pertencentes ou conviventes com grupo de risco, sem muitas opções de proteção; além disso, a grande maioria dos estudantes da rede pública distrital de ensino, do básico ao superior, é dependente do transporte público, o qual – desde o início da pandemia – está desestruturado no tocante às medidas de higiene e de contenção de aglomerações. Enquanto isso, na rede privada de ensino os espaços privilegiados, bem financiados e o retorno bem planejado permitirão às famílias decidirem se os discentes podem continuar acompanhando as atividades escolares à distância ou não, favorecendo a segurança dos jovens de classe média e classe alta e, assim, reforçando as desigualdades e acentuando a vulnerabilidade da periferia à contaminação pelo novo coronavírus.

Ibaneis se afirma como detentor da razão ao resgatar o fato de, no início da pandemia, ter se antecipado quanto ao decreto de quarentena, referindo que manteve a população confinada por 72 dias – o que o restante do Brasil não foi capaz de fazer – e que, hoje, conta com aporte de leitos hospitalares e com a educação social para municiar sua medida de abertura.

Ao declarar seus questionáveis acertos, Ibaneis ignora a maneira elitizada e mal planejada como a quarentena foi conduzida na capital. O período de suspensão mais rigorosa das atividades foi contemporâneo àquele em que as regiões de classes média e alta da capital concentravam o maior número de casos. Bastou a maior cidade da periferia do DF, Ceilândia, tornar-se o epicentro em número de casos e mortes para o governo decidir flexibilizar definitivamente a quarentena. Para mais, o governador se esquece de tocar no fato de que, no dia 28 de junho, a mídia noticiou a ocupação da capacidade hospitalar do DF em cerca de 90%; em dois dias, ou seja, no dia 30 de junho, a capital acordou com a notícia de que havíamos chegado a 100% de ocupação dos leitos hospitalares.

Este não é o único problema relacionado à capacidade da rede de saúde no DF. Há, ainda, uma questão comum a todo o território brasileiro: a desestruturação da atenção primária em saúde (APS). A gestão de Ibaneis Rocha na saúde é caracterizada por intervenções políticas importantes, que prejudicaram significativamente o processo gerencial. A APS, em especial, teve gestores escolhidos com base no critério pessoal de Ibaneis, logo as indicações políticas não conduziram adequadamente a maior parte das regiões de saúde. Mesmo antes da pandemia, essa problemática já estava sendo apontada em razão do surto e possível epidemia de dengue, pois acarretou em problemas de territorialização, de alcance das equipes de saúde da família ao território e de efetividade da assistência conforme os princípios da atenção primária. Acrescido a esse panorama, temos a desconstituição das equipes pela falta, principalmente, de profissionais médicos e agentes comunitários de saúde; além da estrutura física das unidades, que não ampara a condução dos fluxos de atenção com segurança sanitária.

No contexto de COVID-19, a APS não tem, portanto, sua capacidade total de atuação garantida. Logo, o estabelecimento de fluxos de atendimento fica altamente lesado, acarretando em desassistência à população e sobrecarga física e mental para os servidores da saúde, já submetidos ao alto risco de contaminação e a condições de trabalho inadequadas. Outro problema somado é a debilidade do sistema de vigilância. Embora a vigilância epidemiológica esteja realizando um trabalho esforçado e, dentro de seus limites, assertivo, sua atuação fica restrita à estatística e não consegue acompanhar, junto da APS, o rastreamento e acompanhamento dos casos; ao passo que a vigilância sanitária se encontra bastante desestruturada, mostrando que não há segurança no retorno de estabelecimentos comerciais, em razão da impossibilidade de fiscalização.

Ibaneis assegura a capacidade de assistência baseado, principalmente, em sua confiança no fornecimento de insumos por parte do Ministério da Saúde – sobretudo de respiradores – e na quantidade de leitos. Contudo, é necessário considerar que um leito hospitalar não funciona apenas com equipamento de alta tecnologia e o espaço de uma cama, são necessários outros insumos – como, por exemplo, sedativos para intubação, dos quais a escassez foi noticiada, e equipamentos de proteção individual – e, por óbvio, contingente profissional. Com as condições precárias de trabalho, os profissionais da saúde estão se contaminando de forma cada vez mais acelerada e numerosa, aumentando o déficit de servidores já existente. Assim, não há recursos humanos suficientes para operar os leitos abertos e oferecer assistência à população.

Nesse cenário, a conduta de Ibaneis ainda é atravessada por inúmeras acusações de corrupção. A própria estatística de ocupação hospitalar foi alvo de diligência pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), em razão da divergência entre os dados divulgados pela Sala de Situação do governo do DF, comandada pela organização privada que gere unidades da Secretaria de Estado de Saúde do DF (SES-DF), e pelo Complexo Regulador em Saúde da SES-DF, responsável por gerenciar os leitos hospitalares e outros serviços de saúde. A diferença nos dados chega a cerca de 40%, demonstrando a fragilidade no levantamento por parte do GDF e a necessidade de preocupação quanto à capacidade da rede de saúde da capital para receber os novos casos que serão diagnosticados rapidamente a partir da reabertura.

Além disso, outras acusações também perpassam a gestão da crise pelo governador Ibaneis: desvio de verba na construção do hospital de campanha, contrato do hospital da polícia militar sob suspeita, denúncias de corrupção na compra de testes rápidos e contratos emergenciais sob investigação. Há, ainda, acusações de superfaturamentos e até desvio de máscaras, investigadas por uma operação federal que abrange 12 estados e o DF, resultando em um possível montante de até R$ 857 milhões desviados da verba destinada ao combate do novo coronavírus. Só no DF, o cálculo alcança o valor de R$ 125 milhões, sendo R$ 79 milhões nas obras do hospital de campanha e R$ 46 milhões em superfaturamento de materiais. As acusações de corrupção na lida com a crise sanitária se aliam, ainda, à notícia de que Ibaneis Rocha foi indiciado pela Polícia Federal por crime eleitoral, em razão do uso de candidatas laranjas para esconder gastos com a campanha eleitoral, como se não bastasse já ser tido como o maior estelionatário eleitoral do DF graças ao descumprimento de sua plataforma de campanha. Parece, portanto, que as semelhanças do governador do DF com o presidente da república se estendem para além do covarde e mentiroso discurso, alcançando sua prática pública.

Os casamentos e divórcios nas condutas de Ibaneis e Bolsonaro estão presentes durante toda a crise, submetendo a população ao amargo sofrimento dos impactos da pandemia. No início, a conduta de Ibaneis contrária àquela preconizada por Jair Bolsonaro não significou uma ruptura do alinhamento entre o governo distrital e o federal, mas servia justamente a isso, era parte do projeto político de Ibaneis Rocha. O decreto relativamente antecipado de quarentena, que sempre foi elitizado e desigual, deu segurança ao empresariado que serve como base do governo de que em breve haveria estabilidade para a retomada das atividades econômicas e garantiu a mão de obra às empresas, pois a classe trabalhadora, residente na periferia e ocupante dos postos de serviços essenciais, continuou submetida ao risco de contaminação em prol de sua sobrevivência. Posteriormente, vimos o acordo entre Ibaneis e Bolsonaro para abertura de escolas cívico-militares e, eventualmente, de outras unidades de ensino, algo veementemente repreendido pela população, levando o governador a voltar atrás para, em breve, dar novamente sinal positivo a quem tem como exemplo de gestor.

A atuação do GDF sobre o acampamento do grupo autodenominado “300 do Brasil” e a multa aplicada ao ex ministro da educação, Abraham Weintraub, também não representaram o distanciamento entre Bolsonaro e Ibaneis Rocha, tampouco a responsabilização do GDF sobre os representantes do governo federal no tocante ao descumprimento das medidas sanitárias. Possivelmente, foram apenas símbolo da retirada de mecanismos de atuação do governo federal já desgastados e sem grande efeito, suscitando alguma ruptura, mas sem nenhuma substância. Tanto é que, agora, em concordância com o disparate de Jair Bolsonaro de retirar a obrigatoriedade sobre o uso de máscaras em ambientes como templos religiosos, comércios, escolas e órgãos públicos e desobrigar o governo a fornecer máscaras para pessoas vulneráveis, Ibaneis declara a intenção de reabertura total da capital. As semelhanças de atuação ainda se estendem à caótica oferta de auxílio emergencial, passando por extrema burocracia, fraudes e concessões irregulares do benefício tanto no âmbito federal quanto no distrital.

Quando questionamos a coerência do governador do DF sobre as condições em que está implementando a medida de abertura ao mesmo tempo em que declara calamidade pública, devemos resgatar a afirmação do próprio Ibaneis, em entrevista ao Estadão, de que a declaração de calamidade teve como único objetivo a possibilidade de receber as verbas federais. Logo, Ibaneis não dá relevância ao contexto no qual a reabertura acontecerá, sobretudo porque os impactos negativos estarão direcionados para a população pobre, majoritariamente negra e residente na periferia da capital, onde nem Ibaneis nem Bolsonaro, das janelas de seus palácios, conseguem enxergar. A suspensão das obrigatoriedades por parte de Bolsonaro e a reabertura total por parte de Ibaneis são duas faces muito semelhantes de uma mesma moeda: o genocídio da classe trabalhadora.

Uma reabertura razoavelmente bem pensada abrangeria uma boa estrutura de atuação para a atenção primária em saúde, em firme parceria com a vigilância epidemiológica não apenas na vigilância passiva, que aguarda que a população manifeste sintomas, procure o serviço de saúde e, então, o caso seja notificado; mas a transição para uma vigilância ativa, enraizada no território e socialmente referenciada, com observação de infectados, rastreamento de casos e análise dos contatos. A reabertura segura resistiria aos disparates do governo federal, manteria exigente restrição sanitária para os estabelecimentos comerciais e garantiria atuação assertiva da vigilância sanitária. Um retorno protegido às atividades na capital consideraria a rede de saúde em todos os seus níveis de atenção, com o aporte necessário de recursos materiais e humanos e condições de trabalho adequadas para os profissionais da linha de frente contra a COVID-19. Uma gestão responsável da crise sanitária não serviria ao empresariado nem compactuaria com o negacionismo e o neofascismo, mas obedeceria às recomendações das entidades de saúde e tomaria medidas estruturadas de fechamento para uma posterior reabertura segura e gradual, aliando assistência social e assistência em saúde.

Contrariando a indignação devida ao fato de que somos, em meio à pandemia, o único País sem ministro da saúde, Ibaneis Rocha afirmou que Eduardo Pazzuello tem feito um ótimo trabalho, pois pandemia é uma guerra e guerra se trata com general. Não, governador Ibaneis, pandemia é resultado da crise de um sistema econômico defasado do qual você se coloca como ator; é situação sanitária que exige medidas de saúde científicas, bem pensadas e acertadas. Pandemia não se trata com general, trata-se com ciência e, nesse País, deveria se tratar com um Sistema Único de Saúde respeitado e devidamente estruturado.

 

**Enfermeira em formação pela Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal (ESCS-DF)

Militante do Afronte! DF.