Eu gostaria de ser só estilista. Mas quando se nasce indígena, não existe outro caminho que não seja lutar. Entendam que para existir, resistimos. A militância é parida juntamente com todo corpo indígena desde que colocamos nossa cabeça nesse mundo. A gente decide o que faz com esse corpo, com essa mente e com nossa existência. Mas acredito que a luta já vem entranhada nas nossas vidas. Antes mesmo de termos consciência, lutamos com nossas famílias. Seja por uma causa ou pela sobrevivência diária. A luta é contínua e intensa. Não tem trégua.
Descolonizar a moda é um ato de resistência, uma estratégia de ocupar todos espaços e descolonizar conceitos, mentalidades e comportamentos. Descolonizo a moda quando meu corpo indígena chega nos bastidores onde nenhum parente pisou antes; quando descubro uma nova modelo e esse rosto é indígena; quando misturo toda minha ancestralidade com o comportamento contemporâneo e crio uma marca de roupas minimalistas; quando compreendo que não posso perder os valores, a essência do que sou e o que represento; quando promovo um olhar de empatia e igualdade racial; quando me torno um referencial de beleza para crianças que não enxergam representatividade na moda e na mídia. Eu luto por isso, por que se eu não o fizer, continuamos nesse lugar distante e excludente que a moda promove diariamente.
Visibilidade promove igualdade social. Ainda somos invisíveis nos comerciais, publicidades, passarelas, revistas e cargos relevantes. Eu luto para que garotas como eu, se sintam representadas. Estar nas capas e trabalhar com moda, é algo raro para os nossos povos. Mas não quero apenas as capas de revistas e editoriais. Moda não se faz apenas com modelos. Onde estão os stylists, fotógrafos, diretores, assistentes, produtores, maquiadores e outros trabalhadores indígenas? Para as grandes revistas, TV’s e cinemas somos inexistentes.
Descolonizar a moda é romper as barreiras do apagamento histórico que envolve os povos originários de Pindorama (o nome do Brasil antes da invasão dos colonizadores). Não podemos romantizar a dor e a violação que sofremos (e continuam sofrendo todos os povos indígenas). Descolonizar a moda, significa descolonizar as nossas mentes. Nos despir do racismo, do preconceito e da forma superficial como pensamos questões tão profundas.
Para mim, falar sobre descolonizar a moda, está inteiramente relacionado com a minha origem. A minha família materna vem de uma linhagem de mulheres indígenas do povo fulni-ô (Águas Belas – PE). Nasci na cidade mas se eu pudesse escolher, nasceria lá na aldeia. Não escolhi nascer na cidade. Minha avó foi retirada da aldeia quando criança. Mas a memória ancestral sustentou ela e toda nossa família. Mesmo longe nunca estivemos distantes. Sabíamos de nossa origem, amávamos nossa cultura e vovó falava palavras em yathê que nos pareciam “errado”. Ela misturava tudo, palavras no idioma nativo e em português. Hoje compreendo que essa era forma mais legítima dela nos lembrar a que lugar pertencemos.
Cresci entendendo que eu não era uma criança branca. Me chamavam de “exótica”. Diziam: “Muito exótica”. Eu não entendia muito bem o motivo pelo qual adultos se referiam a mim dessa forma. Mas desde pequena, me faziam parecer estranha. Um dia uma professora me olhou e disse que com um nariz tão largo e uma boca tão grande, eu nunca poderia me considerar feminina e bonita. Segundo ela, meus traços eram fortes demais para uma menina. A professora branca também me tratava de forma hostil e bastante ríspida. A mesma professora era gentil e carinhosa com as meninas loiras. O racismo é fortemente disparado nas salas de aulas também. Geralmente ele está em todo lugar que não nos deixam ser quem somos.
Esse é o mundo que vivemos. Nos ensinam que nossos traços são feios e acabam com a nossa auto estima desde a nossa infância. Quando crescemos, nos deparamos com a imagem estigmatizada do indígena. Nos colocam num lugar que não é nosso. E se esquecem que o Brasil todo é terra indígena. Não chegamos aqui em 1.500. Sempre estivemos aqui. Tivemos nossas terras invadidas, nossa cultura marginalizada, nossas vidas violadas e nosso direito de ser quem somos, aniquilado. Depois de 500 anos, continuam reproduzindo atitudes coloniais em todas as partes desse país. É estrutural. Por isso, nunca nos vemos nas revistas de moda, nas atrizes, vitrines, desfiles, comerciais da tv, novelas e outros tantos lugares.. E aí Lembramos da fala da professora branca e começamos a compreender que não somos amplamente representados por que o racismo é real.
A minha cara, é a cara que o Brasil renega. E esse é um dos muitos efeitos da colonização. Eles dizem que indígena de verdade não tem celular. Nós dizemos que isso é uma forma de continuar nos excluindo digitalmente, um recurso que hoje é importante para todos. Para nós, nos possibilita denunciar e nos colocar em diversas situações; proteger, defender e enaltecer os povos indígenas.
Sem contar o fato que consumo acelerado começa a existir após colonização. Mas esse é um papo para outro momento. As pessoas adquirem muitas coisas sem pensar nas consequências de suas escolhas. Comprar conscientemente significa nem mais, nem menos. Apenas o essencial. O que realmente se precisa. Independente de como você consome ou em quantas parcelas divide, quem paga a conta é o planeta; as florestas, as pessoas, o meio ambiente. O efeito que o capitalismo produz é insuportável. Não se pode falar de consumo consciente sem a compreensão desse fato. Nós, indígenas temos outra visão de mundo, inclusive sobre isso. Talvez pareça que nós não consumimos. Mas é óbvio que consumimos! A diferença é que não fizemos isso de forma desequilibrada.
Para concluir, pessoas não indígenas podem colaborar com a descolonização na moda. Dar voz, visibilidade e relevância, significa cooperar com um maior nível de influência. Se informem, busquem da fonte, sigam pessoas indígenas que estão descolonizando o Brasil, a moda, a arte, a cultura e tantos outros lugares. Acredito que só existirá novos mundos possíveis, quando as portas que se fecharam há 520 anos, finalmente se abrirem.
*Estilista, Figurinista, Stylist e representante do Fashion Revolution em Niterói – RJ
Texto originalmente publicado na coluna do Fashion Revolution para a Carta Capital, em 28/06/2020.
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