Não existe quarentena no Brasil. Pode ser que seja decretado o chamado Lock Down (fechamento total) por alguns dias em alguns lugares. Mas o isolamento social em todo país com objetivo de acabar com a disseminação do novo Coronavírus hoje é inviável. Com isto, podemos dizer que o Presidente da República foi vitorioso? Afinal, seu discurso era de que o povo deve ignorar a pandemia e viver a vida normalmente.
Mas não houve quarentena?
Em primeiro lugar, devemos definir o que é uma quarentena. É quando as pessoas não saem de casa para se proteger de uma doença, a não ser em casos de extrema necessidade. Se a pessoa “está de quarentena” mas sai de casa para visitar um amigo ou transar, ela não está de quarentena. Se a pessoa “está de quarentena” mas sai de casa para tomar um ar ou dar uma corridinha, ela não está de quarentena. Em abril, 21% da população brasileira afirmou estar realmente em isolamento social. Em junho, essa parcela não passou de 12%. Não se trata de julgar as pessoas ou ser moralista. É um fato. Nunca houve e não vai haver quarentena no país.
Inclusive é um erro a esta altura condenar as pessoas que estão saindo para pequenas reuniões na casa de amigos. Essas pessoas não têm o poder de decretar uma quarentena. Quem tem essa obrigação são os governantes. Eles é que deveriam aplicar políticas públicas para garantir o isolamento social. Não é apenas uma questão de voluntarismo individual, mas de organização coletiva.
As condições materiais da população e fatores culturais influenciaram para que não houvesse quarentena no Brasil. Mas a política foi decisiva para que hoje sejamos o segundo país do mundo em número mortes.
É fato que o isolamento social foi derrotado
O isolamento social foi fruto de uma disputa política. De um lado Bolsonaro e os bolsonaristas fazendo uma campanha para “o Brasil não parar”. Primeiro eles disseram que não havia pandemia. Depois disseram que não havia provas de que o isolamento era eficaz. Depois passaram a defender o “isolamento vertical”, que seria uma quarentena apenas para quem é grupo de risco. Hoje dizem que já é hora de abrir o comércio.
Não foi apenas a campanha feita por meio das carreatas, declarações presidenciais ou Fake News do Whatsapp. Bolsonaro usou sua “caneta” para sabotar a quarentena o tempo topo. O Ministério da Saúde chegou a esconder os dados do vírus para as pessoas se sentirem seguras. O governo federal chegou a publicar uma portaria definindo cabeleireiro e manicure como “serviços essenciais”. E não houve uma campanha nacional oficial para esclarecer a população sobre os cuidados necessários.
Do outro lado da trincheira estava a esquerda e os defensores da ciência. O biólogo Átila Iamarino acabou se tornando uma figura pública da campanha pelo #fiqueemcasa. Foi um marco seu vídeo em que ele previa um milhão de mortes no Brasil se nada fosse feito. Toda esquerda abraçou a luta para evitar esta tragédia. Parte da mídia, setores da sociedade civil e até alguns políticos de direita também estiveram a favor do isolamento social.
Isolamento que nunca se deu no nível necessário para controlar o vírus. O ideal seria que 70% das pessoas ficassem em casa, o que quase nunca aconteceu, de acordo com as empresas de monitoramento.
O brasileiro acabou tomando cuidado da maneira que pôde
A maioria dos brasileiros tomou algum cuidado. Apenas 3% da população age como se nada estivesse acontecendo. Isto não é qualquer coisa. O uso de máscaras se tornou generalizado e há um esforço no cotidiano para evitar a aproximação física entre as pessoas. E isto aconteceu sem que o Ministério da Saúde tenha feito uma campanha de conscientização. Apenas algumas empresas e governos estaduais e municipais fizeram isto.
O brasileiro médio viveu em um dilema. De um lado o Presidente da República dizendo que a Covid-19 é uma gripezinha. Do outro, parte da imprensa e influenciadores digitais divulgando dados alarmantes. O resultado deste fogo cruzado foi esse isolamento “meia bomba” que tivemos, com cerca de 40% da população em casa e o resto saindo de máscara. Não impedimos a disseminação do vírus e dezenas de milhares morreram. Mas pelo menos não teremos a carnificina na casa dos milhões desejada por Bolsonaro.
Bolsonaro foi parcialmente vitorioso nesta batalha
No mundo ideal do Presidente, o cidadão comum iria sair de casa para cortar o cabelo sem se importar com as pilhas de cadáveres jogados nas ruas. O Corona Vírus seria um “assunto proibido” e todos iriam fingir que nada está acontecendo. Era o que Bolsonaro desejava quando, em março, fez o pronunciamento dizendo que a Covid-19 “era uma gripezinha” e que ele não tinha nada a temer por ter “histórico de atleta”.
Não podemos negar que foi uma vitória de Bolsonaro que, com dezenas de milhares de mortos, não haja uma comoção nacional capaz de derrubar este governo. Mas esta vitória foi parcial. Ele não conseguiu impor sua política. A mobilização em favor da ciência e da saúde teve efeitos. Se milhares de vidas foram perdidas, outras milhares de vidas foram salvas. Com certeza absoluta o número de mortos seria bem mais que 60 mil no fim de junho se nada fosse feito.
Estamos em um período reacionário. A classe trabalhadora ainda não se recuperou das derrotas do golpe de 2016 e da vitória de Bolsonaro em 2018. O nível de consciência, de mobilização e de solidariedade social dos trabalhadores ainda estão baixos. Mas nossa classe não está morta. Há reação.
A guerra em defesa da vida não acabou
As mobilizações de junho contra Bolsonaro conseguiram tirar o monopólio das ruas dos fascistas. E foi melhor ainda por não haver grandes episódios de violência e por ser mantida a redução de danos quanto ao risco de contágio. Todos viram que a esquerda foi às ruas usando máscaras e tomando as medidas de higiene para conter a Covid-19, enquanto nos atos bolsonaristas não havia o menor cuidado.
Hoje 40% da população rejeita o atual Presidente e o apoio não passa dos 30%, mesmo com o pagamento do auxílio emergencial. Claro, se não estivéssemos em um período reacionário, essa rejeição seria bem maior e o apoio seria bem menor. Afinal, é um governo responsável por milhares de mortes e que não apresenta nada de bom para a população. Estamos ainda em desvantagem, mas não estamos mortos.
A guerra ainda não acabou. Bolsonaro quer o fim inclusive das medidas de redução de danos que estão sendo tomadas no combate à Covid-19. E ao lado dele estão alguns políticos tradicionais, como o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). Ele disse que a pandemia deveria ter sido tratada como “uma gripe” desde o começo. Ou seja, “morra quem morrer”, como disse o prefeito de Itabuna (BA), Fernando Gomes de Oliveira (PTC).
Muito já foi feito, mesmo em circunstâncias desfavoráveis. E ainda há muito a se fazer. A luta para que sejam tomadas medidas mínimas de cuidado até que chegue a vacina não será uma luta fácil. Mas a realidade nos mostra que o inimigo não é invencível. Vidas estão em jogo, não podemos desistir.
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