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MUNDO

(D)Os intermináveis 100 dias do golpe na Guiné-Bissau

Youssef, Lisboa (Portugal)

O dia 27 de Fevereiro de 2020 representou a tomada do poder absoluto da ala mais reacionária da burguesia guineense, organizada politicamente no MADEM-G15, coadjuvada pelo APU-PDGB e o PRS – o mesmo que, no contexto político actual, dizer o Exército Guineense – Carlos Gomes Júnior, Botché Candé e José Mário Vaz.

Este último, nas suas acções e omissões foi o iniciador do golpe em 2015 com as suas arbitrariedades e ziguezagues políticos passando pelo incentivo permanente ao resgate da burguesia guineense, pelo Estado, com a assumpção da dívida daquela perante a banca comercial, até à demissão do Governo de Domingos Simões Pereira invocando corrupção e nepotismo(nunca tendo contudo apresentado provas de tal). Mas este ex-Presidente José Mário Vaz é ainda suspeito do desvio de 12 milhões de ajuda angolana à Guiné-Bissau.

Este mesmo José Mário Vaz, durante o seu mandato, afirmou que tinha poder “para mandar matar, espancar”, mas que não o fazia. Nomeou Procuradores Gerais com objectivos políticos implícitos de instrumentalização desse órgão.

Desrespeitou o acordo de Conacry que seria um roteiro para a saída da crise que ele, e os interesses que representara criara. A consequência de tal foi a imposição de sanções da CEDEAO à sua entourage e, inclusive, ao seu filho.

Enquanto empresário, viu o seu despachante oficial Saido Camará e próximo colaborador preso despachante oficial suspeito de corrupção. Outro próximo colaborador – Djana Sané – envolvido na teia de corrupção era nomeado Governador da região de Gabu, no âmbito de um Governo ilegal, do outrora Primeiro- ministro General Umaro Sissoco, nomeado por José Mário Va.

Com a sua ala dirigida por Braima Camará, e a instrumentalização das forças do Ministério do Interior, tentou por todas as vias impedir a realização do IX Congresso do PAIGC.

Este mesmo Presidente José Mário Vaz, agora ex-Presidente, nomeou 7 Primeiros-ministros. Quando questionado sobre os motivos de, durante o seu mandato de cinco anos, o país ter tido sete primeiros-ministros, o Presidente justificou com a necessidade de garantir que “a paz, a tranquilidade e a liberdade” eram preservadas e com o combate à corrupção.

Na sua saga, negou o nome de Domingos Simões Pereira após o PAIGC ter ganho as legislativas de 2019 e apresentado uma solução de maioria parlamentar, e tentou nomear um Primeiro ministro de sua iniciativa.

Simbolicamente, sem qualquer respaldo constitucional, no dia 27 de Fevereiro de 2020, primeiro num hotel da capital guineense, depois no palácio Presidencial, trespassou o testemunho àquele que terminou o(s) golpe(s) de Estado que ele iniciara: o General Umaro Sissoco.

O General Sissoco é a face de um certo bonapartismo neocolonial na Guiné-Bissau. Empossado Primeiro-ministro, por José Mário Vaz, em Dezembro de 2016, apresentou a sua demissão 15 meses depois por pressões internas e externas. Hoje, aparece como o homem providencial, aquele que colocará fim à anarquia e estabilizará o país, quando na verdade é o representante de tal. É o representante político desta classe burguesa guineense – ligada as importações e exportações diversas, e ao sector da exportação de caju em cima da exploração dos agricultores guineenses. Mas também surge como representante da banca comercial guineense – essa banca com estruturas accionistas constituídas por estrangeiros, com excepção do Banco da África Ocidental.

Recentemente, em Maio último, essa mesma banca recebeu uma injecção de capital do Estado Guineense/Tesouro público guineense na ordem de 22,9 milhões de euros – Iniciativa exigida pela classe empresarial guineense em Abril de 2020 – para financiar a campanha de comercialização da castanha de caju.

Em detrimento de criação de cooperativas dos agricultores guineenses, este Estado sob tutela da burguesia golpista, financia a banca que por sua vez financia os mesmos burgueses golpistas para que possam comprar a castanha na mão dos produtores/agricultores, estando estes completamente entregues à sua sorte, não obstante um preço definido pelo Governo mas igualmente sem mecanismos de controle da parte dessas mesmas instituições estatais da venda a esse mesmo preço.

De referir que este sector organizado – Associação nacional dos importadores e exportadores da Guiné-Bissau, Associação de Operadores turísticos e similares da Guiné-Bissau e a AIGB/Câmara da Indústria – já tinha redigido uma carta ao Governo golpista, com o título “Propostas de medidas para a contenção da crise económica provocada pelo COVIDQ9 de Abril de 2020” exigindo, entre outras, 3 medidas : redução da carga fiscal e financiamento à banca para emprestar aos empresários (como foi feito); redução da carga fiscal e moratórias para um prazo de 6 meses (pagamento de créditos da banca e juros).

O contexto actual, não se vê como uma oportunidade para transformar o sector produtivo, nomeadamente o agrícola, na Guiné-Bissau – a divisa, cara a Thomas Sankara, de “produzir, transformar e consumir” em África, é letra morta entre os “nossos”. Mas certamente, não será este Estado capitalista neocolonial que se coloca de cócoras perante interesses da conservadora burguesia guineense a levar avante essa empresa civilizacional…

Se para muitos – ingénuos políticos ou intelectualmente desonestos – há dúvidas relativamente à tomada de poder do general Sissoco pela via golpista, só outra categoria de cínicos poderá aceitar como legal o empossamento de um novo Governo liderado por Nuno Nabiam. É de frisar que o Governo do PAIGC, liderado por Aristides Gomes, para além da maioria parlamentar também já tinha um programa de Governo aprovado, prerrogativas constitucionais para continuar a sua governação.

As novas nomeações de indivíduos ligados ao tráfico de droga para cargos públicos, (re)confirmam o papel do exército neste golpe de Estado. Igualmente é mais um indicador do conluio que existiu entre uma elite dirigente ávida de controlo de todas as instituições do Estado e as chefias militares ligadas ao tráfico internacional de droga. A recente promoção de quatro coronéis à categoria de generais devido ao seu tempo de serviço, é igualmente revelador deste cimentar da força militar do golpe de Estado.

A invasão da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau, no dia 6 de Maio, por forças da Polícia Intervenção Rápida e por agentes da Guarda Nacional, justificando o acto com “ordem superior” é um indicador da força do Estado golpista e de que o poder, em última análise, continua a estar na ponta de um fuzil, contudo, a questão permanece: que consciência política e que interesses de classe guiam os fuzis na Guiné-Bissau nos dias de hoje?

As perseguições políticas a Aristides Gomes, Ruth Monteiro, a Marciano Indi e mais recentemente a Armando Dias Correia, representam uma das faces violentas do golpe: repressão política aos adversários e la mise en garde [NT: a expressão significa advertência, aviso] de qualquer indivíduo que queira fazer oposição ao poder político.

O estado de emergência é mais um instrumento para consolidar o golpe, impedir quaisquer protestos da classe trabalhadora guineense perante as arbitrariedades do poder político – já vamos à sexta renovação daquele estado. As milícias que pululam por Bissau e a violência que se abateu sobre os trabalhadores guineenses durante este período nada mais é do que o resultado do ambiente político instalado em que os parcos direitos, liberdades e garantias outrora existentes, estão sob a tutela de um golpe de Estado militar.

A criação de uma comissão para modificar a Constituição, publicada no decreto de 11 de Maio de 2020, sem qualquer respaldo no poder político-legal para tal pois esse poder cabe estritamente aos deputados – artigo 127.º da Constituição – é mais um separador de águas, entre tantos, entre a Constituição da República da Guiné-Bissau e as acções e desvario déspota do General Sissoco e dos interesses económicos que o secundam.

Procura-se estabilidade. Mas o que significa? Estabilidade significa para as elites guineenses, acumulação primitiva de capital ininterrupta e, para tal, num contexto neocolonial de miseráveis condições materiais de existência para os trabalhadores guineenses, é sinónimo de um Estado potencialmente repressivo, sempre que seja necessário…

A nomeação de Fernando Gomes como procurador Geral da República é outro indicador da unidade com o anterior “Berlusconi” da Guiné-Bissau: o sr., Carlos Gomes Júnior, vulgo Cadogo.

Fernando Gomes, braço-direito de Carlos Gomes, foi seu Ministro do Interior, entre 2011 e até ao golpe de Estado de 2012. Nesse período foram assassinados Iaia Dabó, irmão do Major Baciro Dabó, em finais de 2011, e Samba Djaló em março de 2012.

Os governos anteriores de Carlos Gomes Júnior ficaram marcados por assassinatos políticos de opositores como Roberto Cacheu, Hélder Proença, bem como também dos ex-chefe das Forças Armadas Tagme Na Waie e do ex-Presidente da República Nino Vieira. Carlos Gomes Júnior decidiria apoiar o General Umaro Sissoco na 2ª volta das Presidenciais de Dezembro 2020.

O caso das vacinas já a ser administrada a trabalhadores guineenses, acima dos 54 anos – teste este negado pelas autoridades de saúde dos Estados Unidos devido ao seu grau de incerteza, logo periculosidade – é outro indicador do carácter de classe do regime e do inexistente zelo pelos interesses do povo guineense.

As supostas medidas do Governo golpista

Qual é o quadro político? Da mesma forma que num regime ditatorial existem medidas “positivas” avulsas, que não obliteram a realidade de violências políticas, assim o é na Guiné-Bissau de hoje.

As medidas contra o COVID19 que, numa primeira fase não passaram de mimetismo neocolonial, revelaram a incapacidade de o Governo ter imaginação política para fazer face à pandemia que a cada dia infecta mais guineenses. Nem a Doutora Magda Robalo poderá mudar o quadro actual, não obstante a chegada de médicos cubanos a Bissau.

Já avisáramos no documento “Magda Robalo – TRIUNFO POLÍTICO DOS GOLPISTAS”: “Qualquer estrutura técnica, científica, burocrática, por mais grave que seja a situação num determinado território, por melhores preparados que possam estar nas suas áreas respectivas, e se o objectivo é a resposta a uma necessidade colectiva de dimensão nacional, esses agentes têm que ter uma direcção política. Direcção política esta, sufragada pelos trabalhadores guineenses e com o projecto de sociedade escolhido por estes, organizados politicamente. A “Tecnocracia” não pode, jamais, sobrepor-se, à “Democracia”. Citando Cabral:” Primeiro a resistência política, primeiro de tudo e no fim de tudo: RESISTÊNCIA POLÍTICA”.

O actual Governo golpista da Guiné-Bissau invoca o pagamento de salários – com base na emissão de títulos da dívida de tesouro e empréstimos vários – como grande feito e ganho do Governo, bem como a distribuição de bens alimentícios perante a população. Numa perspectiva política de vistas curtas e análise incompleta, aplaudir-se-ia. Mas um Governo que no seu elenco governativo comporta enquanto Ministro Botché Candé – que se apropriou do arroz do povo oferendado pela República popular da China – e demais ministros de um partido do qual figurava o ex-ministro da Agricultura, Nicolau dos Santos, igualmente implicado na apropriação do arroz do povo, leva-nos, mais uma vez se não bastasse a forma como chegara ao poder, à conclusão da falta de seriedade deste Governo e que estas medidas têm um carácter instrumental.

E num contexto de golpe de Estado, só mentes obtusas podem analisar positivamente um Governo pela bitola do mero pagamento de salários. De referir que no período de Governação de Carlos Gomes Júnior, enquanto Primeiro-ministro, também os salários eram pagos mas, concomitantemente com assassinatos políticos e a institucionalização de uma ditadura bem como a monopolização da economia nacional pelo empresário e primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e um punhado de burgueses nacionais.

Retomámos o que escrevêramos num documento anterior: “É lapidar a caracterização realizada por Frantz Fanon – n’Os Condenados da terra – desta classe burguesa compradora nos países colonizados pós-independência, e tão fidedignamente representada, à luz dos seus negócios, por Carlos Gomes Júnior, vulgo “Cadogo”: “De agora em diante, exigirá que as grandes empresas estrangeiras passem por ela, quer desejem permanecer no país, ou que pretendam entrar. A burguesia nacional descobre a missão histórica de actuar como intermediária”… mesmo pagando salários (ver o documento “A actual luta pelo controlo do Estado na Guiné-Bissau”, nomeadamente o capítulo A miserável burguesia burocrática compradora bissau-guineense – Braima Camará, “Cadogo”, “Jomav” – e o FUNPI;).

Se por um lado Cabral dizia que “(…) o povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em paz e melhor, para ver sua vida progredir e para garantir o futuro de seus filhos. Libertação nacional luta contra o colonialismo, construção da paz e do progresso – independência – tudo isso são coisas vazias e sem significado para o povo, se não se traduzem por uma real melhoria das condições de vida (Guiné-Bissau, Nação forjada na Luta, pg., 46) também este mesmo simples africano nos dizia: Primeiro a resistência política, primeiro de tudo e no fim de tudo: Resistência politica”. (Análise de alguns tipos de resistência, pg.,14).

E de uma forma mais contundente: “Devemos lembrar que não chega produzir, ter a barriga cheia, fazer boa política e fazer a guerra. Se o homem, a mulher, um ser humano, faz tudo isso, sem ele próprio avançar como ser inteligente, como primeiro ser na natureza; sem ele próprio sentir que cada dia aumentam na sua cabeça os conhecimentos do meio, como do mundo em geral, quer dizer sem ele avançar no plano cultural, tudo aquilo que faz – produzir, fazer boa política, combater – não dá resultado nenhum (Análise de alguns tipos de resistência, pg.,71).

É nesta tensão permanente entre o entendimento das necessidades concretas da classe trabalhadora guineense, mas ao mesmo tempo possuir a capacidade de análise do quadro político nacional e internacional a curto, médio e longo prazo, que nos deverá levar a criticar estas medidas avulsas “positivas” de um governo golpista que deve ser derrubado pela luta da classe trabalhadora guineense.

Sindicatos

A União Nacional dos Trabalhadores da Guiné (UNTG) e a Confederação Geral dos Sindicatos Independentes (CGSI) confirmaram o seu lado nesta luta quando, após o golpe de Estado, tomaram partido pelo Governo golpista, assinando um memorando de concertação.

A legislatura do último Governo legal de Aristides Gomes foi marcada por várias greves, nomeadamente a dos professores. Num contexto em que estava em vista o golpe de Estado e a tomada do poder pela força da parte dos golpistas, a acção dos sindicatos concorreu para a queda do Governo na medida em que nunca fizeram a distanciação entre as suas demandas sectoriais de representantes dos interesses dos professores, e o distanciamento com a possível queda do Governo pela força golpista… Um governo eleito, mesmo no quadro das eleições burguesas num espaço neocolonizado, tendo que cair, tem que ser pela força da luta da classe trabalhadora e não por via golpista (conhecendo-se tão bem os interesses coligados e impulsionadores do golpe).

Vis-à-vis dos sindicatos é preciso frisar que em 2018, quatro sindicalistas pertencentes ao Sindicato Democrático dos Professores, ao Sindicato Nacional dos Professores e ao Sindicato dos Técnicos de Saúde, foram detidos por suspeitas, que se vieram a confirmar para pelo menos um dos sindicalistas, de recepção de carros da parte do Presidente da República, para que efectuassem greves com o fito de descredibilizar o Governo PAIGC da altura…

Contrariamente à posição tomada depois do golpe de 12 de Abril 2012 – fazendo parte da frente unida contra o golpe – FRENAGOLPE – a UNTG, decide desta vez dar tréguas aos golpistas e, ao mesmo tempo, omite críticas ao Governo perante os renovados estados de emergência em período de COVID19 e as consequências para os trabalhadores (Historical Dictionary of the Republic of Guinea-Bissau, pg.,190).

O único sinal de contestação vem da parte dos Sindicatos de contribuição e impostos criticando o clientelismo que é a premissa para nomeação de directores. “Todos os dias, guias de marcha de pessoas sem vínculo com o Estado são entregues aos novos funcionários e sem mínima responsabilidade, assumem funções de responsabilidade dentro dos serviços da direcção dos Impostos. O mais grave é que todos os quadros técnicos foram substituídos”.

Uma direcção sindical que não defende os direitos dos trabalhadores, e não consegue ver que um golpe de Estado, numa dinâmica de luta de classes, representa a médio e longo prazo a cassação dos direitos laborais, para que serve senão para ser lançado no caixote do lixo da História, e substituído pelos trabalhadores? É uma tarefa que se perfilha com urgência.

Imprensa

A imprensa, enquanto designação colectiva dos veículos de comunicação, depende do Estado, quer sob a alçada de um Governo golpista ou legal – pois são necessárias autorizações para a renovação de licenças – e do poder económico – para o seu financiamento. A partir destas factualidades, entendemos a inércia da imprensa no tratamento do golpe de Estado e dos seus agentes.

Raras excepções, e a custo individual de ameaças, tanto a nível de rádios comunitárias e nacionais, há uma denúncia do golpe de Estado mesmo que de forma subtil não designando o General de Presidente, mas de “Presidente autoproclamado”.

Para uma visão geral sobre os “Media” na Guiné-Bissau ver “Os media na Guiné-Bissau” do escritor e jornalista guineense Tony Tcheka.

O P5 – CEDEAO, UA, CPLP, EU, ONU

Nunca é demais frisar que a Guiné-Bissau está num espaço político e económico neocolonizado. Na presença de militares franceses no Sahel Maliano – operação Barkhane que foi para além do pedido pelo Governo maliano –, e no campo económico com monopólios de empresas francesas, tais como no Níger e a exploração do urânio com a Areva, revela-se o carácter neocolonial do espaço CEDEAO e, todos os países, de forma directa ou indirecta, são negativamente impactados por tal – ou o objectivo pan-africanista imperialista se coaduna com monopólios e presença militar presença em África?

Relevamos aqui (ainda) a existência da moeda neocolonial designada de Franco-CFA. Esta realidade monetária fazia com que os países africanos possidentes desta moeda tivessem que depositar parte das suas divisas numa conta corrente do Tesouro Francês. Durante décadas, e até hoje, esta imperatividade retirou dos cofres dos tesouros dos países africanos da zona CFA biliões de dólares. O que se pode traduzir em menos investimento na educação pública, na saúde pública, nas infraestruturas básicas…

O actual papel destas organizações internacionais perante o actual golpe na Guiné-Bissau, foi antecipado e definido pelo Presidente golpista General Sissoko, aquando do aúdio vazado em Outubro, antes do início da primeira volta das eleições presidenciais, perguntado sobre a reacção que a dita comunidade internacional poderia ter: “vamos gerir a situação”. Foi exactamente o que foi feito. Tendo condenado o golpe de Estado numa primeira fase, a rede do Presidente golpista General Sissoco, nomeadamente Macky Sall – Presidente do Senegal – Muhammadu Buhari – Presidente da Nigéria – e Mahamadou Issoufou – Presidente do Níger– conseguiram com que a CEDEAO legitimasse Sissoco. De referir que o Presidente do Senegal tem o maior interesse na Guiné-Bissau, para além da questão de Casamance e a necessidade de impedir a entrada dos rebeldes do MFDC em território guineense quando acossados pelo exército senegalês, mas também na delimitação da fronteira marítima entre os 2 países pois implica a exploração de petróleo (ver Carlos Vamain, Ação de Nulidade do Laudo Arbitral perante a Corte Internacional de Justiça: o caso Guiné-Bissau/Senegal).

Por intermediária da CEDEAO, por sua vez, visto que mandatada pela UA, a UA também anuiu o golpe de Estado, bem como a União Europeia, a CPLP e a ONU. As diligências do PAIGC a nível diplomático valem o que valem, mas retiram a centralidade da resolução do problema político na Guiné-Bissau no sujeito político “trabalhadores guineenses”. Sabiamente Amílcar Cabral já dissera no seu discurso em 1966, na Tricontinental em Havana: “por mais quente que seja a água da fonte, ela não coze o teu arroz”. O que antes e agora continua a significar: o povo guineense está entregue a si mesmo e a ele enquanto sujeito político o dever de fazer a sua História (Unidade e Luta, pg. 201).

A ideia errada de Unidade e “O que fazer”?

Certo projecto desenvolvimentista denominado “Terra Ranka” – desenvolvimentista, mas também contraditório pelo endividamento que isso implicaria para os trabalhadores guineenses, o carácter social dos investimentos e a direcção das mesmas, e com todas as limitações inerentes ao contexto de um espaço político-econômico neocolonizado – a par com o FUNPI e o dito resgate aos bancos comerciais, despoletou a divisão da burguesia guineense.

Poderemos colocá-la em 2 campos: aquele tradicional ligada ao export e import e uma outra que, ligada ao PAIGC, poderia aproveitar os fundos que daí adviriam para uma reorganização da economia com determinados projectos desde os portos de águas profundas de Buba e Pikil, centro de tratamento de resíduos e produtos químicos passando pela construção da rede nacional de transporte de energia eléctrica ou implementação do plano caju – apoio à produção, transformação e comercialização mas também e a criação de todo um quadro legislativo para a dita “Melhoria do ambiente de negócios e desenvolvimento do sector privado”. Aquela burguesia tradicional guineense, ligada principalmente ao export e import e serviços, organizada no MADEMG15 – típica das burguesias compradoras dos países neocoloniais –– que tem como Presidente o ex-presidente da Câmara de Indústria e Comércio da Guiné-Bissau, Braima Câmara – entendera que, após as eleições legislativas em que o PAIGC conseguiu uma maioria aliando-se ao Aliança do Povo Unido-Partido Democrático da Guiné-Bissau, Partido da Nova Democracia (PND) e o partido União para a Mudança (UM), estaria perante uma questão existencial: ou o seu candidato – o General Umaro Sissoco – ganharia as eleições presidenciais, por que meios fossem necessários, ou poderia representar o fim da organização política e da sua burguesia/burocracia/clientela que depende, para sua sobrevivência, das receitas provenientes dos vários cargos obtidos na Administração Pública, benefícios/isenções fiscais, facilidades no acesso a créditos nos bancos comerciais( com aval do Estado…), impunidade/protecção da Justiça…

A recomposição dessa ala burguesa reaccionária, com vista à tomada do poder absoluto na Guiné-Bissau, deu-se aquando da segunda volta das presidenciais prevista para o dia 29 de Dezembro de 2020 em que, José Mário Vaz, Carlos Gomes Júnior, PRS e Nuno Nabiam – este último, outrora aliado do PAIGC no pós-eleições legislativas de Março sustentando o Governo do PAIGC – aliam-se contra o candidato mais votado da primeira volta, o candidato do PAIGC, Domingos Simões Pereira (Primeiro-ministro deposto por José Mário Vaz em 2015 e negado novamente por José Mário Vaz quando o mesmo PAIGC ganhou as eleições e tendo apresentado maioria no parlamento, coligado).

Aquando das presidenciais, o candidato do MADEM G-15, a meio da primeira volta já encenara uma tomada de poder, tornada pública com um aúdio vazado. O tribalismo político e a ameaça de golpe de Estado explícito estavam na ordem do dia…

Denunciáramos o PAIGC: “O PAIGC errou ao obliterar a denúncia de Cissoko como golpista da ala mais reaccionária da burguesia guineense, tanto na primeira como na segunda volta das presidenciais. Higienizou a presença deste nas eleições e, neste momento, mesmo com as últimas declarações tanto do Chefe das forças armadas General Biague Nan Tam e do General Cissoko, continua a jogar a carta da contemporização da classe trabalhadora guineense com os discursos de “calma” e “serenidade” tanto proferidas pelo Presidente Domingos Simões Pereira como pelo Primeiro Ministro Aristides Gomes. Não obstante o erro passado, neste momento o PAIGC, coloca toda a sua confiança nos juízes do Supremo Tribunal em detrimento da força da classe trabalhadora guineense como único recurso e última fronteira da defesa das parcas conquistas existentes na Guiné Bissau para a sua classe trabalhadora”.

Após a declaração da CNE – Comissão nacional de eleições – aclamando Sissoco como vencedor, o PAIGC invocando irregularidades várias – nomeadamente a não assinatura da acta de apuramento nacional –, e ameaças ao Presidente do CNE para que adulterasse resultados recorre ao Supremo Tribunal de Justiça que instou a CNE a uma recontagem nacional, embora a interpretação desta demanda tenha sido diferente da parte da CNE reafirmando que o seu papel estava terminado. O Supremo Tribunal, até hoje, não se pronunciou sobre a contenda, invocando a inexistência de condições institucionais para tal que vão desde o estado de emergência como ameaças do General golpista Umaro Sissoco…

Nesta contenda e reconhecendo unicamente a CNE como legitima para pronunciar o vencedor das eleições – e não o Supremo Tribunal de Justiça – o General Umaro Sissoko assalta o poder, indigitando Nuno Nabiam como Primeiro-ministro e ordenando a ocupação militar das várias instituições do Estado, incluindo a rádio e a televisão públicas.

Na cerimónia de posse de Nabiam enquanto Primeiro-ministro, o Exército esteve presente com a sua alta cúpula, assim como António Indjai, ex-chefe das forças armadas e sob o regime de sanção das Nações Unidas, e procurado pela DEA norte-americana. Um grupo de 18 partidos sem representação parlamentar também estão com Sissoco/MADEM.

Perante primeiras hesitações, a CEDEAO, e a demais comunidade internacional, reconheceu Sissoco.

É preciso referir que Nuno Nabiam e as demais forças do golpe declaram que o PAIGC perdeu a maioria, pois o partido, na pessoa do seu líder, Nuno Nabiam rompeu o acordo de incidência parlamentar com o PAIGC que dava sustentabilidade à maioria do PAIGC. Por outro lado, os deputados do partido de Nuno Nabaim denunciam-no como golpista e afirmam que se manterão fiéis ao acordo com o PAIGC. Acrescente-se que um dos 3 deputados do APU- PDGB que garantem a maioria ao PAIGC, Marciano Indi – presidente do grupo parlamentar do APU-PDGB – foi raptado e brutalmente espancado por forças do Ministério do Interior, no dia 22 de Maio, o que provocou a saída à rua da população do seu círculo eleitoral mas que, da parte das autoridades golpistas não mereceu qualquer reparo ou investigação…De referir que mais 2 militantes das estruturas de base do PAIGC – Abdulay Ly e Almeida Ié – foram igualmente detidos de forma arbitrária e encaminhados para a mesma, já famosa, 2ª esquadra em Bissau. O mesmo aconteceu com 2 elementos do corpo de segurança do Primeiro-ministro Aristides Gomes. Primeiro-ministro este que se encontra em parte incerta – tendo sido obrigado a esconder-se dos golpistas – e a Ministra da Justiça, Ruth Monteiro, só conseguiu sair do país com intervenção da diplomacia internacional, após ter sido acusada de apropriação de veículos do Estado, no pós-golpe de Estado…

O Presidente do PAIGC, Domingos Simões Pereira, encontra-se exilado em Portugal invocando que não pode regressar, pois não estão garantidas as condições de segurança sobre a sua integridade física.

Ironia que, daquilo que o General golpista acusara Domingos Simões e o PAIGC é o que ele, os partidos que o apoiam e os militares estão a levar a cabo na Guiné-Bissau: “amordaçar as liberdades essenciais dos cidadãos, com o objectivo de instalar um regime absolutista, revanchista e ditatorial na Guiné-Bissau”.

É a partir destas realidades que se deve entender a actual situação política na Guiné-Bissau.

A oposição legalista e pacifista, representada pelo PAIGC, mais uma vez age pela via dos Tribunais – aguarda a decisão do Supremo Tribunal da Guiné-Bissau sobre o contencioso e, no final de Maio, recorreu ao Tribunal Justiça da CEDEAO, contestando o reconhecimento da organização da eleição do General Umaro Sissoco.

Apesar de o Governo estar a ser liderado por Nuno Nabiam, actualmente coloca-se a questão de quem deve governar, decisão imposta pela CEDEAO mas invocando que os resultados das eleições de 10 de Março de 2020 devem ser respeitados.

O Presidente golpista indicou que dissolveria o parlamento caso os partidos não chegassem a um entendimento.

Perante esta manobra dos golpistas, o PAIGC recorrera à ideia de unidade nacional para poder preservar o pouco ou nada do que poder que lhe restou, embora as negociações tenham falhado para essa mesmo unidade nacional, pois o PAIGC, por hora, não abdica de liderar o Governo. A luta nos tribunais e a retórica de esgotar as vias legais – num contexto de completo livre arbítrio déspota ditatorial – demonstra o carácter adialéctico da luta da oposição ao golpe na Guiné-Bissau. A última decisão do PAIGC, impelido pela realidade dos factos que continuam a ser teimosos, foi a negação da participação na sessão ordinária – convocada com base no Artigo 89 da Constituição – em que se confirmaria que grupo parlamentar tem maioria no parlamento. Esta recusa justifica-se com o “actual estado de terror” no país que, segundo o PAIGC, “põe em causa, de forma séria e objectiva, a realização da sessão ordinária”. Esta análise do PAIGC da situação actual é corroborada pelo comunicado de imprensa da Assembleia Nacional Popular do passado dia 22 de Junho.

Idrissa Djaló, líder do PUN, outra face visível da oposição ao golpe, apresentara outrora uma proposta, perante a ameaça do Covid-19 na Guiné-Bissau, de uma unidade governamental, onde se incluiriam tecnocratas. Não obstante esta proposta, rejeitada outrora pelo PAIGC, tal não lhe poupou de ameaças de morte da parte dos golpistas.

O que fazer?

Retomamos o capítulo “O que fazer” colocado enquanto questão em 2018, actualizando-o para 2020. Mas quase 2 anos e meio anos decorridos, a nossa análise da necessidade de uma frente unida à época contra os golpistas, estava certa.

O que se coloca na ordem do dia na Guiné-Bissau é a conquista e defesa de direitos democráticos e que, tacticamente, deverá implicar uma frente unida, sem que aqueles que defendem os interesses da classe trabalhadora guineense, percam as suas características e identidade de classe. A premissa para a unidade deve ser esta: os que se posicionam concretamente contra o golpe sem quaisquer compromissos com os golpistas.

O que dizia Cabral sobre a unidade num período de resistência: ”A primeira condição para a resistência política, camaradas, é unir as pessoas (…) unir sem oportunismo, negar o oportunismo (…). Unidade nacional sim, mas contra todos os traidores, contra todos os oportunistas, contra todos os imorais. Não podemos fazer unidade nacional com ladrões mentirosos, com bandidos. Fazer a unidade nacional, com um objectivo certo: combater o inimigo, lutar contra o inimigo, mas também ao mesmo tempo lutar contra todos os factores negativos no nosso meio” (Análise de alguns tipos de resistência,pg.,16).

Trotsky, perante o nazismo na Alemanha, legara a táctica da qual hoje, na Guiné-Bissau devemos tirar ilações – “marchem separados, mas protestem unidos! Estejam de acordo apenas em como protestar, contra quem protestar e quando protestar! […] Sob uma condição: não fiquem de mãos amarradas”.

Fazendo uso de todos os instrumentos teóricos legados por grandes pensadores e, na linha de Fanon, que afirmava o dever de assumpção da universalidade pelo Homem – (…) sou um homem, e nesse sentido, a guerra do Peloponeso é tão minha como a descoberta da bússola” –, recorremos ao legado do pensador revolucionário alemão Karl Marx, que nos legara esta pérola na táctica revolucionária:

onde a democracia não tenha sido conquistada, os comunistas e os democratas lutam lado a lado, e os interesses dos democratas são também os interesses dos comunistas. Até esse momento as divergências de ambos partidos têm um carácter puramente teórico (…) sem prejuízo algum para as acções comuns.” (Marx y la Revolución de 1848, pg.,38).”

Será que defender os aspectos mais progressistas da democracia burguesa e por mais formais que eles sejam, num determinado contexto político reaccionário, sendo uma posição táctica de um partido revolucionário, representaria negar a teoria da revolução permanente – teorizada por Trotsky – para os países “atrasados”? Não, de todo!

Da mesma forma que Trotsky na sua magistral visionária obra “Revolução e contrarrevolução” defendeu a unidade pontual na acção entre as organizações dos comunistas e sociais-democratas contra a instalação do nazismo e consequente repressão que de tal facto resultaria para com as organizações dos trabalhadores e que se perfilhava no horizonte, para a Guiné-Bissau, este momento político de completa arbitrariedade dos agentes do Estado, quer do Presidente da República, quer do Ministro do Interior e das forças de repressão tuteladas por si, quer dos Tribunais, poderá, caso não for enfrentado pelo povo bissau-guineense, ser sinónimo de restrição violenta da possibilidade de organização de operários e agricultores em sindicatos; da possibilidade de manifestação, propaganda e agitação; ou da possibilidade, em última análise, de terem as suas organizações políticas e realizarem os seus congressos…

Não se trata de Democracia versus Ditadura de forma abstracta, ou seja, acima da luta de classes. Trata-se sim, de uma questão de luta por direitos, liberdades e garantias mínimas conquistadas no marco da luta pela independência e demais lutas que a classe trabalhadora bissau-guineense enfrentou ao longo da sua História.

Por mais limitados que sejam esses direitos, liberdades e garantias no marco de uma sociedade na periferia do sistema capitalista, têm que ser vistos e enquadrados numa luta maior para defesa da existência de condições de luta para criar outro projecto de sociedade radicalmente diferente daquele que existe. Não imbuídos do conservadorismo pequeno burguês stalinista, é preciso ter-se consciência clara que não se conseguem obter novas conquistas se nem formos capazes de preservar aquelas conquistadas.

E o “Estado de direito” democrático burguês, na sua formalidade, historicamente, é em certa medida isto: impedir o livre arbítrio dos representantes do Estado e colocar um freio nos seus desmandos. A Constituição, é um instrumento também que serve para restringir o Estado perante certos direitos adquiridos fruto da luta trabalhadores. Aquelas características do Estado de Direito, podem consubstanciar-se na realização de eleições burguesas, no princípio do voto universal e, finalmente, ter enquanto governo aqueles para os quais objectivamente a maioria votou.

Para a definição de uma táctica de luta consequente e que permita elevar o nível de consciência política da classe trabalhadora bissau-guineense, há que distinguir entre a saída de um governo deposto por forças reaccionárias e retirada de um governo por forças à sua esquerda para que se evite cair no erro de dizer que dentro do campo burguês comprador ou que defendem um projecto de sociedade capitalista e forçosamente neocolonialista no nosso contexto, são “todos iguais”.

Esta luta do povo guineense enquanto agente político consciente, fará entender à classe política bissau-guineense e à sua miserável burguesia que o povo bissau-guineense, organizado e consciente politicamente, não aceitará nenhum retrocesso a nível de direitos, liberdades e garantias consolidados. E esta experiência de luta moldará e temperará igualmente o carácter da classe trabalhadora bissau-guineense.

À juventude bissau-guineense, tanto no exterior como na Guiné-Bissau, mas principalmente na Pátria de Cabral – juventude no carácter (!) e na firmeza (!) que se mantém íntegro apesar de todas as pressões de uma sociedade onde a desigualdades de classe e a consequente miséria levam à bajulação e fazem desta uma instituição – continuar a organizar-se, a mobilizar-se, a estudar a teoria legada por Cabral e outros grandes pan-africanistas como Kwame Nkrumah que escreveu, por exemplo, Neocolonialismo, último estágio do imperialismo, e entender que a Guiné-Bissau está integrada num bloco político-econômico neocolonizado e a sua sorte não está separada daquele bloco e, do resto do continente africano e, em última análise, da luta dos outros povos no mundo.

À classe trabalhadora, lutar pelos direitos políticos, liberdades e garantias adquiridas e ancoradas nas suas organizações/bantabás de bairros, secções, sectores, regiões e sindicatos.

Após 47 anos, a luta deve ser cada vez mais transformar a luta para influenciar o poder político, para uma luta para se ser poder político de facto.

Pela construção, nos ombros do legado teórico de Amílcar Cabral, de um partido com uma clara definição ideológica anti-imperialista, com independência de classe, pan-africanista revolucionário e internacionalista!

Unidade e Luta!

*Publicado originalmente pelo Movimento Africano de Trabalhadores e Estudantes – RGB em: https://www.facebook.com/105018257677931/posts/171937704319319/?app=fbl