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BRASIL

Monumentos da barbárie

Edson Xavier*, de Juazeiro do Norte, CE
Reprodução/ Telemundo noticias)

Estátua de Cristovão Colombo é pintada em Houstoun, Estados Unidos

Um interessante fenômeno ocorreu na Europa e nos EUA durante as manifestações antirracistas que se espalharam a partir do levante de Charlottesville onde George Floyd, um homem negro, foi morto por um policial branco. Estátuas de figuras históricas ligadas ao tráfico de escravos e ao colonialismo foram derrubadas, incendiadas, pichadas, decapitadas e lançadas ao mar, sob os olhares estarrecidos dos intelectuais de gabinete.  

Para quem não esteja atento ao clima das recentes manifestações, ao discurso e à prática dos manifestantes, essas ações podem parecer mero vandalismo, no entanto, elas trazem em si importantes questionamentos aos aspectos fundamentais da formação de nossas sociedades. A derrubada ou os ataques feitos às homenagens públicas materializadas nas estatuas indicam um questionamento e a contraposição de importantes setores dessas sociedades à permanência não somente das homenagens em si, mas das consequências do escravismo e do colonialismo. 

As estátuas postas em locais públicos como homenagens a figuras históricas são representações simbólicas dos valores que uma determinada época pretende preservar e nesse sentido seria importante levantarmos duas questões: a primeira delas a de que os valores, sentimentos e compreensão de mundo são mutáveis, elas se transformam no decorrer da história, a outra questão pertinente é que quem tem o poder de determinar quem deve ser homenageado e que valores e ideias devem ser preservadas junto essas homenagens são as classes e grupos sociais detentores do poder político e econômico.

Assim como os símbolos postos em espaços públicos são colocados nesses espaços para reforçar uma forma historicamente construída de compreender a sociedade, a destruição desses símbolos fazem parte de um movimento que carrega consigo uma compreensão histórica determinada. Quando se ataca um símbolo como esse se mira na ordem representada por esse símbolo e nisso se disputa a memória histórica, se disputa a compreensão do passado e a projeção do futuro. A luta política e social que se trava nas ruas ao mesmo tempo se desenrola no campo ideológico e  simbólico.

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.”

Aos que afirmam a necessidade de manutenção dessas estátuas nos locais públicos vale lembrar o que escreveu Walter Benjamin, em 1940: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”  

Nesse sentido compreendemos que a construção da cultura na qual vivemos, seus monumentos e símbolos, são representações que não podem passar intactas às mudanças sociais. As sociedades mudam, as vezes lentamente, as vezes de forma rápida e radical e os símbolos que antes eram motivo de orgulho, outros que permaneciam ignorados pelas pessoas, podem passar de um momento a outro a ser causa de ojeriza, pois o que determina o valor de um personagem histórico, de um monumento ou do próprio patrimônio histórico não é simplesmente sua importância no passado, mas sua conexão com o presente, o que ele diz às pessoas de hoje.

Relegar ao silêncio os que são derrotados e exaltar os vencedores durante muito tempo foi parte da prática comum aos historiadores e de uma perspectiva de história disseminada pelo estado, mesmo que a escrita da história tenha sofrido importantes mudanças, esse tipo de pratica ainda é parte da concepção de patrimônio histórico assim como das representações e homenagens públicas. Relembrando novamente Benjamim podemos dizer: “Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.” 

As estátuas de bandeirantes, traficantes de escravos, generais da ditadura militar, colonizadores, ferem a memória histórica dos oprimidos pois cada um desses personagens está conectado na raiz dos seus mais sérios problemas. Em momentos em que há uma crise na hegemonia dos grupos sociais dominantes e as chagas da sociedade se expõem esses símbolos são atingidos pela critica e pela ação efetiva dos oprimidos e explorados com parte de um processo mais amplo de ação social.

A destruição das estátuas nesse momento histórico como em vários outros no decorrer da história mundial não é somente uma revolta quanto ao passado e desejo de suprimi-lo – o que obviamente é impossível – mas, é sim, uma revolta contra as condições nas quais os descendentes de africanos escravizados, dos povos americanos nativos e de todos aqueles trabalhadores e trabalhadoras quanto as suas condições atuais de vida, condições essas legadas pelo passado. São uma ato simbólico de quem deseja tomar o próprio destino em suas mãos. Não devemos ter melindres quando compreendemos que não somente as estátuas, mas a atual sociedade deve ruir para que em seu lugar possamos construir algo novo. 

 

* Sindicalista, professor e mestre em ensino de história.