Conte-nos um pouco sobre sua trajetória biográfica e política.
Nasci no Canadá, onde passei toda a minha vida. Na adolescência me senti atraído pelas revoluções cubana e vietnamita, e sendo ainda estudante me tornei ativista da esquerda marxista. Participei na organização de manifestações contra a guerra e no apoio a refugiados latino-americanos nos anos sessenta e setenta, e durante esse período escrevia com regularidade em revistas socialistas do Canadá e dos Estados Unidos. Meu primeiro livro, publicado em 1981, foi Canadian Bolsheviks, uma história dos primeiros anos do Partido Comunista no Canadá.
Como socialista e marxista, quando escutou sobre a mudança climática pela primeira vez? Quais foram os livros, os acontecimentos e os assuntos que chamaram sua atenção a essas questões?
Sempre estive muito interessado na ciência, e é por isso que há muito tempo sigo os debates e temáticas ambientalistas; não tenho certeza quando pensei na mudança climática como uma preocupação particular. No entanto, nos anos noventa me interessei por discussões e debates sobre a possibilidade de uma análise marxista da crise ecológica global. Li livros e artigos de uma ampla variedade de pesquisadores ecologistas, socialistas e marxistas, e durante algum tempo estive de acordo com a ideia de que Marx e Engels não tinham muito que dizer sobre a natureza, ou que o que disseram era inadequado ou inclusive que estavam equivocados. Meu momento de inspiração foi quando li A ecologia de Marx, de John Bellamy Foster. Ao contrário de outros escritores, Foster ia às raízes, mostrando em detalhe o que Marx havia dito sobre a agressão do capitalismo à natureza e como se relacionava com a sua visão materialista do mundo. Marx analisou a grande crise ambiental de seu tempo – o declive da fertilidade dos solos na Inglaterra e na Europa – e identificou a fonte disso como uma ruptura provocada pelo capitalismo no que ele denominou o “metabolismo universal da natureza”. Como mostrou Foster, esse conceito de ruptura ou “fissura metabólica” nos oferece um marco indispensável para entender as crises ecológicas atuais.
Essa análise, e o trabalho na mesma linha de Paul Burkett em Marx and Nature me convenceram completamente. Depois de escrever uma série de artigos sobre temas ambientais, impulsionei a revista online Climate & Capitalism em 2007, e nesse mesmo ano participei na construção da Rede Internacional Ecossocialista (Ecosocialist International Network, EIN). Junto com Michael Löwy e Joel Kovel, escrevi o Segundo Manifesto Ecossocialista (também conhecido como a Declaração Ecossocialista de Belém), em 2008. A EIN teve uma vida breve, mas foi um primeiro passo importante: creio que a recentemente criada Rede Global Ecossocialista promoverá a construção dos movimentos sociais amplos que necessitamos.
Há alguns anos, você escreveu Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System: poderia nos falar sobre os argumentos de seu livro, o conceito de Antropoceno como a marca de uma nova época geológica e histórica?
Nas últimas décadas, o conhecimento científico de nosso planeta mudou radicalmente. Um número cada vez maior de pesquisas colocou o foco não somente em problemas ambientais concretos, mas no planeta de conjunto, e demostrou que o Sistema Terra está mudando rapidamente e de forma radical. As condições ambientais que prevaleciam desde a última idade do gelo – as únicas condições em que as civilizações humanas têm existido – estão sendo varridas. A mudança climática é o exemplo mais óbvio: o nível de dióxido de carbono na atmosfera é agora muito maior que em qualquer período dos últimos dois milhões de anos. Isso, junto com outras mudanças radicais, levou muitos cientistas à conclusão de que começou uma nova época no sistema Terra. Eles denominam essa nova época o Antropoceno e há um amplo acordo de que a mudança decisiva para essas novas condições se produziu em meados do século XX. Em Facing the Anthropocene, tentei mostrar como as grandes mudanças do capitalismo durante e depois da Segunda Guerra Mundial provocaram as mudanças globais que os cientistas identificaram. Basicamente, a ruptura metabólica que Marx identificou passou a ser um conjunto de rupturas globais inter-relacionadas, imensas rupturas nos sistemas que sustentam a vida no planeta Terra.
Esta crise ampla, global, é o problema mais importante neste momento. Houve um tempo em que os socialistas podiam tratar legitimamente o dano ambiental como um dos muitos problemas do capitalismo, mas isso agora já não é correto. Lutar para limitar o dano causado pelo capitalismo hoje e construir o socialismo nas condições do Antropoceno, irá requerer mudanças que nunca teria imaginado nenhum socialista do século XX. Entender essas mudanças e nos preparar para elas precisam ser a prioridade número um de nossa agenda socialista.
Tenho que reconhecer que me agradou a recepção que teve Facing the Anthropocene. Já está na terceira edição, passou a formar parte da lista de livros obrigatórios em muitos programas universitários de Ciências Ambientais e foi traduzido em vários idiomas.
Falaram-se muito sobre o Green New Deal, que se remonta aos programas públicos, reformas financeiras e regulamentações que aprovou o presidente dos Estados Unidos Franklin Roosevelt na década de 1930. Dizem-nos que um novo New Deal, radical e verde precisa ser aprovado atualmente, supostamente mobilizando todos os recursos dos Estados para evitar a catástrofe ambiental. O que você opina sobre estas propostas defendidas por Naomi Klein e outros ecologistas?
Nos Estados Unidos, onde foi cunhado o termo, a marca Green New Deal está sendo empregada por um amplo número de políticos e ativistas para defender propostas muito diversas. O plano Green New Deal vão desde reformas liberais do sistema fiscal até propostas de um Estado de bem-estar de corte socialdemocrata, incluindo em alguns casos a nacionalização das indústrias energéticas. E ainda são promovidas versões diferentes em outros países, particularmente no Canadá e no Reino Unido. Nenhuma delas supõe um desafio para o sistema capitalista como tal, mas, além disso, é difícil fazer valorações gerais sobre o seu conteúdo; é preciso analisar o que significam cada um dos projetos que apresentam. Os detalhes são importantes, mas, no meu ponto de vista, é muito mais importante ainda se um projeto do tipo do Green New Deal puder mobilizar pessoas fora dos ambientes do poder. Nas palavras de Marx, “cada passo de um movimento real é mais importante que uma dezena de programas”. E como diz Naomi Klein, “agora só os movimentos sociais podem nos salvar”.
O que vemos na realidade por parte da maioria dos líderes políticos e Organizações Não Governamentais são planos verticais desenhados para persuadir os políticos e os altos funcionários do estado, empregando a ação extraparlamentar como cortina de fumaça, ou instrumentalizando-a em direção do apoio eleitoral aos políticos liberais. É uma fórmula pensada para vencer. Nisso consiste o Green New Deal: é um papel sem valor.
Mas, tendo dito isso, o crescente interesse por soluções ecológicas é um sinal positivo. Há poucos anos teria sido impossível para Alexandria Ocasio-Cortez conseguir que sua versão do Green New Deal fosse escutada; nem digamos que fosse aprovada por outros deputados e que o tema fosse acolhido em importantes debates na imprensa e em outros meios de informação. Isso não significa conseguir as mudanças que necessitamos, mas mostra que alguns de nossos dirigentes começam a sentir a pressão dos protestos e mobilizações. Assim que, inclusive se essa não tenha sido a intenção de seus autores, a ideia de um Green New Deal pode nos ajudar para que as pessoas saiam às ruas.
Roape é uma revista e uma página web de economia política crítica, focada na África. Pode nos contar um pouco sobre a extensão da crise climática no continente e no Sul Global de forma mais geral?
Há um capítulo em Facing the Anthropocente intitulado “Não estamos para nada juntos nisso”. O saqueio brutal contínuo na África é uma clara evidência disso. As pessoas e os países que têm a menor responsabilidade pelo aquecimento global são já suas principais vítimas. É um cliché ecologista o lema de que todos estão no mesmo barco no globo terrestre, mas em realidade, poucos viajam na primeira classe, com assentos reservados nos melhores botes salva-vidas, enquanto que a maioria vai no convés, em bancos de madeira expostos à intempérie e sem acesso aos botes salva-vidas. O apartheid ambiental é a norma no Antropoceno.
Se o capitalismo fóssil segue sendo dominante, o Antropoceno será uma nova era de governo selvagem controlado por alguns poucos e um terrível sofrimento para a maioria, especialmente no Sul Global. Esse é o motivo que a chamada de Climate & Capitalisme tenha adaptado o slogan do famoso apelo de Rosa Luxemburgo à resistência para impedir o desastre da Primeira Guerra Mundial, “Ecossocialismo ou barbárie: Não há uma terceira via”.
O ativismo militante ecologista estremeceu o mundo inteiro no ano passado, tendo as crianças e jovens um papel central nas greves e protestos. Que poderia nos dizer sobre o papel e a importância do ativismo e como esses movimentos necessitam se vincular a grupos mais amplos e uma política anticapitalista?
Como eu dizia, efetivamente, a tarefa que temos pela frente é a de construir movimentos sociais amplos nas ruas, fora dos gabinetes do poder. Deveríamos considerar o fato que esses movimentos não serão perfeitos de acordo a uma teoria e adotarão formas inesperadas. Ninguém, que eu conheça, teria podido prever as dimensões do movimento juvenil de greve mundial pelo clima que foi iniciado por Greta Thunberg, nem o impacto do movimento Extinction Rebellion, no Reino Unido, mas ambos são exemplos significativos do que se pode fazer.
No Canadá, as campanhas mais efetivas estão sendo dirigidas por povos indígenas que lutam para proteger suas terras ancestrais da exploração realizada pelas indústrias de gás e do petróleo. Há pouco, em seus protestos e piquetes, conseguiram cortar as principais vias férreas do país, forçando que o governo tivesse que negociar com o povo Wet’sunwet’en, que está lutando para manter um gasoduto de gás natural fora de suas terras.
Em situações como essas, o pior que podem fazer os socialistas (e lamentavelmente muitos radicais puristas fazem exatamente isso) é colocar-se à margem, criticando o movimento porque suas demandas não são suficientemente reivindicativas, ou porque os ativistas tenham ideias irreais sobre o que é possível conseguir com o sistema atual. Temos que recordar a famosa explicação de Marx de que as pessoas não mudam suas ideias e depois mudam o mundo: mudam suas ideais na ação de mudar o mundo.
Os ecossocialistas necessitam ser participantes ativos e construtores de um movimento conectado com a realidade; e, à medida que o fazemos, temos que explicar com paciência a necessidade de uma mudança radical, mostrando que a crise ecológica global é, na verdade, uma crise do capitalismo global, e que não será possível construir soluções sustentáveis enquanto o capitalismo seguir dirigindo este planeta.
Ao lado de minha escrivaninha tenho o famoso aforismo de Gramsci “Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” porque para mim ele define o que tem que ser a atitude ecossocialista em nosso tempo. O capitalismo é poderoso e sabemos que é realmente possível que ocorra um desastre, mas não podemos nos render à desesperação. Se lutarmos, pode ser que percamos; se não lutamos, perderemos. Uma luta consciente e coletiva para parar o trem em direção ao inferno que significa o capitalismo é a única esperança de um mundo melhor.
Muitas pessoas estabelecem um vínculo entre a crise climática, o capitalismo e o surgimento da Covid-19. Poderia nos descrever de que forma, em sua opinião, estão estreitamente relacionados esses temas?
Há três anos, a Organização Mundial da Saúde, recomendou aos organismos de saúde pública que se preparassem para o que eles chamaram de “Enfermidade X”: a provável emergência de um novo patógeno que causaria uma epidemia global. Nenhum dos países ricos respondeu a esse conselho; continuaram suas políticas neoliberais de austeridade, reduzindo o gasto em pesquisa e serviços de saúde. E inclusive agora, quando a Enfermidade X chegou, os governos estão gastando mais dinheiro para resgatar bancos e empresas petrolíferas que para salvar vidas.
Toda uma série de novas enfermidades zoonóticas (vírus, bactérias e parasitas que passam da vida silvestre aos humanos e animais domésticos) está emergindo em todo o mundo porque o capitalismo está arrasando os bosques primários substituindo-os por monoculturas a partir das quais obtém lucros.
Nos ecossistemas desestabilizados resultantes há mais oportunidades para que enfermidades como o Ebola, o vírus da Zika, a Gripe suína, outras novas gripes, e agora a Covid-19 contagiem as comunidades próximas.
O aquecimento global piora a situação ao permitir (ou forçar) que os patógenos abandonem áreas isoladas em que haviam existido, passando despercebidos durante séculos inteiros ou maior tempo. A mudança climática, além disso, debilita os sistemas imunitários das pessoas e os animais, tornando-os mais vulneráveis às enfermidades, e com mais probabilidades de experimentar complicações extremas. Em definitivo, o capitalismo coloca o lucro à frente das pessoas, e isso nos está matando.
Ian Angus é editor da revista online Climate & Capitalism e autor de vários livros, incluindo Facing the Anthropocene e A Redder Shade of Green, ambos publicados por Monthly Review Press. É membro fundador da Rede Global Ecossocialista
*Texto original em: http://roape.net/2020/03/24/ecosocialism-or-barbarism-an-interview-with-ian-angus/
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