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O orgulho contra o fascismo

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Parada LGBT em Brasília

Orgulho é resistência

Orgulho é resistência é a coluna LGBT do Esquerda Online, um canal livre e diverso de debates políticos e anticapitalistas para fortalecer as nossas ideias e a preparar no nosso movimento para as lutas que virão. Nossas existências, corpos, afetos e expressões são resistência!

Por LUCAS MARQUES, de Campinas, SP

 

“Não se compreendeu que o fascismo, nas suas origens e no começo da sua transformação em movimento de massas, combatia principalmente a classe média alta, e que não podia ser considerado como ‘mero defensor da grande finança’, pelo simples motivo de que era um movimento de massas”
Reich, W.

Neste dia 28 comemoramos 51 anos da revolta de Stonewall e nesse marco queremos propor uma reflexão sobre os desafios colocados para as LGBTs e a esquerda diante de uma situação política tão difícil no Brasil.

Nas últimas semanas assistimos a uma grande popularização da discussão sobre fascismo e antifascismo, no bojo do levante negro nos EUA e da criminalização de movimentos ANTIFA pelo governo Trump. As manifestações que ocorreram no Brasil no período subsequente tiveram marcado caráter antifascista e antirracista. Mas afinal, o que é o fascismo contra o qual lutamos? Qual a relação desse fascismo com a lgbtfobia?

Um (não tão) breve comentário sobre as características do neofascismo brasileiro

O fascismo pode ser definido como uma forma ditatorial específica do Estado capitalista, um regime reacionário de massa; mas também como uma ideologia e o movimento que luta pela implantação ou manutenção dessa ditadura, um movimento reacionário de massa. O regime político vigente no Brasil atual é uma democracia burguesa, ainda que deteriorada. Por um lado, é democracia burguesa pois os governantes foram eleitos e o congresso nacional segue funcionando e tendo influência efetiva no processo decisório (o organismo de representação da classe exploradora possui capacidade governativa, de fazer política de Estado), inclusive derrubando ou limitando decretos e medidas provisórias da Presidência. Por outro lado, é deteriorada pois 1) o judiciário, através da Operação Lava Jato, constituiu um aparelho que atuou para impugnar candidaturas de representações que não fossem diretamente burguesas (prisão de Lula); 2) as instituições políticas, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), vem sofrendo severas pressões das forças armadas.

A história demonstra que não há uma relação automática entre governo fascista e regime fascista: no caso de Hitler, um governo fascista eleito, a implantação de um regime fascista ocorreu no primeiro mês, no caso de Mussolini esse processo levou alguns anos. O governo é fascista por seu projeto de implantar uma ditadura de tipo fascista e porque se apoia no movimento reacionário de massa que tem este projeto político e o objetivo eliminar as organizações da classe trabalhadora. Este movimento é originário das classes médias e cooptado pela burguesia. No caso brasileiro é possível afirmar que o governo é predominantemente neofascista e se apoia num movimento reacionário de massa gestado nas manifestações pelo impeachment de Dilma Roussef em 2015 e posteriormente depurado para conformar o bolsonarismo. 

Dizemos que se trata de um neofascismo pela necessidade de resguardar diferenças com os fenômenos políticos ocorridos em países imperialistas na primeira metade do século XX. Sendo o fascismo uma categoria geral, o neofascismo se trata de um subtipo, com características específicas. O neofascismo brasileiro, o bolsonarismo, tem como algumas características específicas:

1) Ser originado por uma crise política menos grave do que a que gerou o fascismo original (essa crise veio a se agravar e aprofundar posteriormente), marcado por uma disputa entre a grande burguesia interna e a grande burguesia associada ao capital internacional no bloco no poder, em um país da periferia do capitalismo no século XXI. 

2) O fascismo original se enfrentava com os grandes e poderosos batalhões de trabalhadores organizados dos antigos partidos socialistas e comunistas, que impunham a necessidade de uma forma político-organizativa mais sólida e um enfrentamento físico mais brutal: um partido de massa com milícias organizadas. O neofascismo se enfrenta, no Brasil, principalmente com a base do PT, que é ampla mas possui, após anos de governos de frente popular e estrategia institucional, um nível de organização e poder de combate muito menor. Frente a isto sua forma político-organizativa do neofascismo é mais frouxa, difusa e se dá através das redes sociais, através de uma rede de agitação reacionária. 

3) O existe um núcleo de ideologia conservadora comum ao fascismo original e ao neofascismo. Esse núcleo tem como parte, além do anticomunismo, o reforço e politização do machismo, do racismo e da LGBTfobia. No caso específico da LGBTfobia o discurso adquire um caráter mais enfático e sistemático do que no fascismo original.

As raízes lgbtfóbicas do neofascismo brasileiro

É preciso estabelecer que o que enfrentamos no Brasil é um governo predominantemente neofascista e austericida, apoiado em um amplo movimento de massa, organizado de forma difusa pelas redes sociais e constituído com base na agitação sistemática de uma crítica superficial à direita da democracia burguesa e de ideologias opressoras. Este movimento de massa chegou ao centro político do governo, se utiliza do aparato estatal para difundir suas ideologias e tem o projeto político de implantar uma ditadura de tipo fascista no Brasil. 

O leitor pode estar se perguntando a razão dessa longa digressão sobre as características do neofascismo no Brasil e o que isso tem a ver com o dia do orgulho LGBT. A razão é que apesar de propriamente gestado nos movimentos reacionários de 2015 e 2016, o movimento neofascista pode ter seu DNA mapeado até um momento anterior, durante os governos do PT, até a agenda fundamentalista evangélica e as capitulações do petismo diante dela. 

É possível encontrar aqui no portal Esquerda Online alguns artigos que falam um pouco desse tema, o texto de Fernanda Moura é particularmente interessante. O movimento escola sem partido foi criado em 2004, por Miguel Nagib, para combater uma suposta “doutrinação” nas escolas. O movimento encontrou pouco espaço para disputar ideias anti-esquerda no Brasil que havia acabado de eleger Lula presidente e permaneceu no ostracismo por muitos anos. A situação muda quando, em 2011, surge a polêmica do “kit gay”, que na realidade era o “kit escola sem homofobia”, material que seria distribuído nas escolas públicas com o objetivo de combater a homofobia. Jair Bolsonaro, junto a outros parlamentares fundamentalistas, foi um dos principais difusores de mentiras acerca do projeto, afirmando que tinha como objetivo transformar estudantes em gays e lésbicas. O projeto acabou sendo vetado pelo governo Dilma diante da polêmica com esses setores fundamentalistas que eram base do governo. Os grupos conservadores encontraram nisso um tema que dialogava muito mais com a população do que uma suposta “doutrinação comunista”.

Na verdade, um ano antes, durante as eleições presidenciais, na famigerada “carta ao povo de Deus”, Dilma já se eximia da responsabilidade sobre pautas fundamentais como o aborto legal, a união estável LGBT, prometendo manter um compromisso de fazer da família o foco principal de seu governo. Foi nesse espaço, deixado pela recusa do PT em disputar até o final as pautas democráticas fundamentais dos setores oprimidos na sociedade, que a extrema-direita cresceu e se fortaleceu ainda sob os governos petistas. 

De 2011 em diante, o tema da “ideologia de gênero”, termo cunhado pela igreja católica, foi abraçado pelos grupos conservadores e se tornou pauta permanente no debate público, aparecendo com toda força em 2014 com a discussão acerca do novo Plano Nacional de Educação (o PNE do qual foi retirada a obrigatoriedade dos debates de gênero nas escolas). Neste mesmo ano Flavio Bolsonaro (então deputado estadual), encomendou o PL Escola Sem Partido a Nagib, sendo o primeiro parlamentar a apresentar um projeto deste tipo em uma casa legislativa. Em seguida, o seu irmão Carlos Bolsonaro apresentou outro projeto ESP na Câmara do Rio de Janeiro. No período subsequente assistimos à batalha pelos Planos Municipais de Educação e contra as chamadas “emendas da opressão”, impulsionadas por parlamentares de extrema-direita que buscavam restringir os debates de gênero e sexualidade na educação municipal. 

No trágico espetáculo que foi a votação do impeachment de Dilma Rousseff (que deve ser devidamente caracterizado como um golpe parlamentar) na Câmara, era visível as declarações de voto por “deus”, pela “família”, contra a “ideologia de gênero”. Neste ano já havia mais de 50 PLs de censura espalhados por todo Brasil. Então movimento ESP passou a divulgar candidaturas comprometidas com suas pautas reacionárias, entre eles a família Bolsonaro. Em 2018, durante as eleições, já havia mais de 150 PLs ESP em todo o Brasil. O ESP atuou para eleger e elegeu diversos parlamentares durante este período, incluindo os próprios Bolsonaros.

É importante salientar que o que é chamado de “marxismo cultural” por estes grupos conservadores na prática trata muito mais de temas de gênero e sexualidade do que de comunismo em si. Daí o papel deste tema na conformação ideológica da máquina bolsonarista, que se articula e vai se construindo como uma luta contra a esquerda que quer sexualizar as crianças. Essa é uma das raízes do antipetismo.

Evidentemente, este fenômeno político não se explica sem levar em consideração a ofensiva burguesa que se abriu no Brasil no ano de 2015. Mas não é possível compreender a ascensão do bolsonarismo que ganhou maioria social na disputa de ideias em 2018 sem entender o papel de suas raízes LGBTfóbicas. Bolsonaro foi uma contingência, não era a opção prioritária da burguesia. Como qualquer movimento fascista, o bolsonarismo parte de baixo (setores médios) para cima e acaba sendo cooptado pelas classes dominantes. Essa é uma explicação para a derrota humilhante de Geraldo Alckmin (que tinha metade do tempo de televisão e apoio majoritário da burguesia). A agitação LGBTfóbica é parte fundamental do impulso do bolsonarismo e da aglutinação de pessoas em torno do seu projeto político.

Entre os elementos políticos diversos presentes na agitação nas redes sociais que mobilizam a base bolsonarista, a LGBTfobia e o pânico sexual são talvez um dos elementos de maior alcance na população. Não por acaso, Jean Wyllis, ex-deputado federal abertamente gay e ativista da pauta LGBT, foi uma das principais vítimas da máquina de fake news bolsonarista e viu sua votação cair significativamente em 2018. Depois de eleito o parlamentar abandonou o mandato e saiu do país devido às constantes perseguições e ameaças de morte. Não por acaso, a sinistra ministra Damares Alves, que sistematicamente discursa contra a população LGBT, é uma das mais populares do governo, mais do que o próprio Jair Bolsonaro, em pesquisas de opinião.

O orgulho contra o facismo

Queremos propor com essa análise duas conclusões importantes: uma conclusão programática e uma conclusão mais diretamente política.

A primeira diz respeito ao duro balanço da política dos governos do PT com relação às pautas LGBT (e também sobre outras pautas de setores oprimidos, como a legalização do aborto). Durante os governos petistas assistimos a uma série de recuos da pauta diante do fundamentalismo evangélico, que limitou ações no sentido do combate à LGBTfobia, principalmente no terreno da educação. Esse recuo para garantir o apoio dos setores fundamentalistas e a governabilidade do PT no Congresso Nacional se mostrou um erro gravíssimo e teve um preço alto: o fortalecimento desses setores no espaço deixado pelo recuo, os mesmos setores que vieram a conformar o bolsonarismo. É preciso tirar lições sobre esse processo, pois ele demonstra a importância de levar até o final as pautas dos setores oprimidos, bem como as duras consequências de não levar.

A conclusão mais diretamente política diz respeito ao processo de conformação do bolsonarismo enquanto movimento de massa, intimamente ligado com a ofensiva ideológica no terreno dos costumes. Para derrotar o bolsonarismo é preciso ganhar o debate de ideias na sociedade, construir uma maioria social contra a ideia de que o debate de gênero e sexualidade nas escolas vai transformar os estudantes em LGBTs, por exemplo. Isso também significa um enfrentamento ideológico com o movimento de massa reacionário e sua máquina de agitação LGBTfóbica.

A esquerda que fala que a ofensiva do bolsonarismo sobre o tema dos costumes é cortina de fumaça e não leva a sério o problema que Damares Alves representa à frente do ministério, que hierarquiza a retirada de direitos sociais a todo o resto, não foi capaz de fazer um balanço até o final dos erros cometidos pelos governos do PT. Essa esquerda não compreendeu o processo de conformação do bolsonarismo e como a ofensiva burguesa articula aspectos ideológicos e econômicos, sendo uma ofensiva global contra os explorados e oprimidos.

 

Referências

SAES, D. –  Democracia. São Paulo: Editora Ática. 1987

BOITO, A. Jr. – Por que caracterizar o bolsonarismo como neofascismo. Disponível aqui (PDF)

REICH, W. – Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.