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BRASIL

As inspirações de Paulo Guedes

Esse texto é um compilado de reflexões sobre o vídeo da famigerada reunião ministerial de abril, que veio à público graças ao ministro Celso de Mello. Os principais canais da imprensa se horrorizaram com as falas de ministros tais como Ricardo Salles, Damares Alves e Abraham Weintraub, mas considerando a edição do Jornal Nacional que repercutiu o vídeo, um dos ministros do governo de Jair Bolsonaro saiu com sua reputação intacta. Paulo Guedes.

Fernando Pureza, professor da UFPB
Fábio Rodrigues/Agência Brasil

O ministro da Economia, Paulo Guedes, fala na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, sobre os impactos econômicos e financeiros da Nova Previdência.

Não é de hoje que Paulo Guedes surge como o garantidor do governo Bolsonaro para a burguesia brasileira. Não obstante seus delírios de grandeza e sua mitomania – inclusive registrada por economistas como Persio Arida, Guedes segue sendo figura inquestionável no governo de Jair Bolsonaro. 

Esse é o principal motivo pelo qual as falas de Guedes não foram transmitidas em rede nacional. E, diante da coleção de absurdos e ataques à classe trabalhadora, um detalhe me chamou a atenção ao ler o laudo do STF com a transcrição do vídeo. Em dado momento da reunião, Guedes menciona diretamente o nome ‘Schacht’, tecendo elogios à “reconstrução da Alemanha”. Mas por que esse nome e essa obsessão com a reconstrução é tão importante?

Hjalmar Schacht: o banqueiro de Hitler

A menção era a Hjalmar Schacht, ministro da economia do III Reich, da Alemanha nazista, entre 1934 e 1937, também conhecido como o “banqueiro de Hitler”. Entre 1923 e 1930, ele foi também o presidente do Banco Central alemão, durante a República de Weimar e um ardoroso defensor da contenção de gastos públicos do Estado, inclusive do corte de programas sociais. Foi precisamente isso que fez com que, em 1926, Schacht se afastasse do Partido Democrata Alemão e passasse a flertar cada vez mais com a extrema-direita.

A partir de 1931, Schacht foi se aproximando do partido nazista, travando uma série de conversas com seus líderes e inclusive conhecendo pessoalmente Adolf Hitler. Mas sua atuação política ganhou destaque, de fato, no ano seguinte, em 1932. O então ex-presidente do banco central, diante dos impasses da política alemã do período, redigiu e foi signatário do Industrielleneingabe, uma petição de vinte representantes da burguesia alemã que exigia que o então presidente Hindenburg nomeasse Adolf Hitler como chanceler do país. A nomeação não ocorreu de imediato e Hitler só assumiria o cargo em 1933, mas as relações de Schacht com o partido nazista não pararam por aí. Ele organizara o Circuito Keppler, reunindo economistas para desenvolver um plano econômico para o partido, participou do famoso comício de Nuremberg e doou significativas quantias de dinheiro para as milícias nazistas da S.A. Por conta disso, mesmo sem se filiar formalmente, Schacht recebeu uma filiação honorária do partido nazista em 1937.

Após 1937, contudo, as relações de Schacht com a cúpula nazista começaram a perder efeito. Seu fiscalismo impiedoso não via de bom grado os gastos excessivos que Göring defendia para construir a máquina de guerra alemã. Por conta disso, foi sacado da condição de ministro, mas continuou como presidente do Banco Central alemão até 1939. Apesar disso, por pedido do próprio Hitler, Schacht se manteve no governo até 1943.

Inspiração de Paulo Guedes: as frentes de trabalho

Guedes não se inspira em um Schacht que foi preso, acusado de conspirar contra Hitler, que foi preso pelos nazistas e depois pelos Aliados. É, na verdade, a imagem do banqueiro de Hitler que parece tanto interessar Paulo Guedes. Em determinada parte da reunião, o ministro brasileiro defende abertamente como modelo de “reconstrução” uma política de “frentes de trabalho”. Essa política, durante o III Reich, foi caracterizada pela construção massiva de auto-estradas (chamadas Reichsautobahn) como forma de “resolver” o desemprego alarmante da Alemanha na época. Os salários baixíssimos (200 Reais, segundo a sugestão de Guedes) e a militarização dos trabalhadores (inclusive botando jovens soldados nessa atividade) parecem indicar o desejo reprimido de Paulo Guedes tornar-se uma espécie de Schacht brasileiro.

Guedes enfatizou na reunião seu interesse no termo “reconstrução”, lembrando de modelos da Alemanha depois da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, bem como do Chile “dos rapazes lá de Chicago”. Mas em nenhum momento ele usa o termo wiederaufbau, palavra que designa o esforço de reconstrução alemã do pós-Segunda Guerra Mundial. Seu interesse estava nas Reichsarbeitsdienst, ou frentes de trabalho do Reich. Conter o desemprego com obras públicas, mas gastando o mínimo possível.

Alguns críticos podem sugerir que políticas keynesianas do New Deal americano tinham essa mesma ênfase. Mas há uma diferença entre o New Deal de Roosevelt e o Neue Plan, de Schacht e Hitler. No primeiro, a política salarial e as condições de negociação dos trabalhadores foram prioridade. No segundo, a política de Schacht abriu a possibilidade de expandir a ideia de superexploração do trabalho até o limite, em especial diante da escravidão proposta pelo Plano de Quatro Anos que o nazismo desenvolveu para a Segunda Guerra Mundial.

Essa combinação de cortes em programas sociais e um massivo programa de construção civil foi um dos segredos da Alemanha nazista para conter o desemprego, é bem verdade. Mas convém ressaltar que, ao mesmo tempo, a repressão contra sindicatos e a criação da Deutsche Arbeitsfront (a Frente de Trabalho Alemã) minou toda a capacidade de negociação coletiva da classe trabalhadora no país. Salários achatados, militarização do trabalho e responsabilidade fiscal. Esse foi o receituário Schacht, que só saiu do primeiro escalão do governo nazista em 1939, porque começou a achar que a guerra era um gasto fiscal desnecessário. Nesse contexto, a figura do banqueiro de Hitler não pode ser dissociada do regime nazista. E ainda assim, tal associação passou desapercebida pela imprensa brasileira.

Inspirações do III Reich e esquecimentos seletivos

Saber quem é Hjalmar Schacht não é exatamente algo fácil, tendo em vista que há uma aura de respeitabilidade sobre o seu trabalho como economista – o próprio senador Roberto Requião já teceu elogios à Schacht em certas ocasiões no senado. Mas a memória sobre Hjalmar Schacht que foca apenas no respeitável banqueiro parece especialmente determinada em esquecer suas fidelidades políticas. Por que, afinal de contas, o ídolo de Paulo Guedes não é lembrado como o “banqueiro de Hitler”? 

Creio que é possível apontar duas razões para isso: a primeira diz respeito ao Tribunal de Nuremberg. Preso em 1945 pelos Aliados, o ministro do III Reich foi julgado como criminoso e, apesar dos juízes soviéticos desejarem sua condenação, suas importantes ligações com o mundo das finanças fizeram com que caísse na graça dos juízes britânicos, sendo inocentado da acusação de “crimes contra a paz”. Schacht chegou a ser condenado por um tribunal local alemão, acusado de ser “um dos líderes do Reich” – todavia, após ter recorrido, conseguiu sua liberdade em 1948, onde retornou à vida civil.

A outra razão, igualmente importante, está conectada à dolorosa memória de certos liberais no que diz respeito a algumas políticas do nazismo. Apesar da força que a extrema-direita faz para associar o nazismo como um fenômeno “de esquerda”, é sabido que o apoio do bloco capitalista sobre o regime de Hitler foi praticamente intermitente ao longo da guerra. Mas mais do que isso, como o economista Germa Bél demonstrou, o capitalismo alemão do início do III Reich foi marcado por práticas que ainda hoje os jornalões vendem como “grandes verdades da economia”. Schacht promoveu a venda de bancos públicos e o rígido controle fiscal sobre os gastos públicos do Estado, estabelecendo uma lógica privatista na condução da economia alemã – o próprio termo “Reprivatisierung” foi um neologismo criado para chamar o movimento de “reprivatizar” os bancos. 

Até 1937, a privatização, o rígido controle fiscal, o corte de gastos públicos e as frentes de trabalho – envolvendo coerção, militarização dos trabalhadores e salários reduzidíssimos – foram as formas pelas quais Schacht, o “mago das finanças”, ajudou a construir a ideia de uma Alemanha economicamente forte e que tão bem serviu aos propósitos de Hitler. Esse receituário é o mesmo receituário que Paulo Guedes oferece hoje para o Brasil, sem tirar uma vírgula sequer. Sua admiração não é pontual, é programática.

No fundo, não seria de se admirar se Guedes se visse como encarnação de um novo Hjalmar Schacht. Afinal de contas, um banqueiro liberal que defende frentes de trabalho militarizadas e com salários de fome bem que deve estar procurando um Hitler para chamar de seu. O que é intrigante é que tantos jornais, que se colocam na posição de defensores da democracia, parecem calar-se quando se trata do “banqueiro do Jair”.