Pular para o conteúdo
Colunas

Parte III: O ultraneoliberalismo e a política dos ressentidos

Juliana Fiuza Cislaghi

Mestre e Doutora em Serviço Social pelo PPGSS/UERJ, Especialista em Saúde e Serviço Social, Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da UERJ e pesquisadora do GOPSS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social. Diretora da Associação de Docentes da UERJ (Asduerj) entre 2011 e 2015 e diretora do ANDES-SN entre 2016 e 2018.

A crise de 2008, primeira aguda crise mundial do capitalismo no século XXI, em nada é um raio em céu azul. Faz parte de um período de crise estrutural do capital em curso desde o fim da década de 1970, que á marcado por uma depressão contínua, longeva, duradoura, sistêmica e estrutural, que, para Mezsáros (2011), se combina com momentos de depressões mais agudas e momentos de alguma retomada, que não alteram, porém, os limites absolutos da reprodução do capital. Para Mezsáros (2011, p.135), no entanto, esse momento recente da crise estrutural é mais grave e sensivelmente diferente, na medida em que “irrompeu globalmente com grande veemência”.

Para Varoufakis (2016) 2008 é fruto de uma mudança na forma de dominação imperialista dos EUA que passam de maiores credores para maiores devedores mundiais, sofrendo permanentes déficits orçamentários e comerciais, o que Meszáros (2011, p.41) chama de “imperialismo de cartão de crédito”. Os EUA mantiveram sua hegemonia por múltiplos meios: econômicos, financeiros, militares, ideológicos, impondo ao mundo a sustentação de sua insolvência. O financiamento de seus déficits se deu pela inversão de capitais em favor do país apoiada em um aumento da produtividade de suas empresas – por meio da ampliação das taxas de exploração de sua força de trabalho e taxas de juros atrativas. A crise tem, então, seu epicentro nos EUA mas ocorre também em países da zona do euro, especialmente a Grécia. É apresentada, entretanto, como uma crise do setor público, que de fato assumiu com gasto do fundo público os prejuízos do capital, mas, se tratou quase integralmente de uma crise das atividades financeiras do setor privado (Blyth, 2017).

De maneira geral, há um crescimento do endividamento dos países capitalistas desde meados da década de 1970. Mas isso não ocorre por pressões democráticas por mais direitos e melhores salários. Ao contrário, esse momento coincide com a perda de poder político dessas democracias na ascensão da hegemonia neoliberal, o que Demier (2017), caracterizou como uma blindagem das democracias.

Recolocam-se as contradições entre capitalismo e democracia e, ainda que se mantenham os processos eleitorais, pouca diferença faz seu resultado para mudanças na economia política, dado que as reivindicações do capital são consideradas condições empíricas para o funcionamento dos sistemas, enquanto as reivindicações do trabalho são consideradas fontes de perturbação (Streeck, 2018). “A participação política é redefinida  como entretenimento e desconectada das decisões políticas, especialmente das decisões político-econômicas” (Streeck, 2018, p.119).

Como resposta à essa crise, mas mesmo muito antes dela, a austeridade fiscal tornou-se uma política inquestionável em todos os países. Ela se caracteriza como uma forma de deflação voluntária, que ajusta a economia pela redução de salários, preços e despesas públicas. Supostamente pretende reestabelecer a competitividade dos países cortando o orçamento, as dívidas e os déficits dos Estados, o que traria “confiança dos mercados” (Blyth, 2017, p.22). Seus efeitos, no entanto, foram um imenso custo social, associado a baixo crescimento e continuidade do aumento da dívida pública. Para Blyth (2017, p.36) a austeridade é uma ideia perigosa que, em suma, não funciona na prática e faz com que os pobres paguem pelos erros dos ricos, tornando-se um argumento moral que transfere a responsabilidade das finanças para o Estado. “Poucos de nós são convidados para a festa, mas nos pedem, a todos, que paguemos a conta”.

Os Estados nacionais após a crise de 2008 tornaram-se ainda mais endividados, o que faz com que os credores para garantirem as obrigações de pagamento dos Estados esforcem-se ainda mais para interferir na política. No conflito entre o capital credor e os trabalhadores os primeiros precisam garantir  que, em caso de crise, seja dada prioridade aos seus “direitos” (Streeck, 2018).

Podemos afirmar, então, que a crise de 2008 levou o capitalismo neoliberal financeirizado a um novo patamar que permitiu na década seguinte a formação de um novo bloco histórico para sua legitimação que teve como consequência a ascensão de governos neofascistas em vários países do mundo.

A partir da década de 2010, a configuração hegemônica do neoliberalismo passa a ter uma face reacionária, racista, misógina

Fraser (2020) afirma que o neoliberalismo, ao contrário de algumas percepções, não é uma visão de mundo total, mas, ao contrário, é um projeto político-econômico que pode se articular a perspectivas de reconhecimento diversas, inclusive progressistas, mantendo intocados seus pressupostos. A partir da década de 2010, a configuração hegemônica do neoliberalismo passa a ter uma face reacionária, racista, misógina, que retoma sua experiência inicial da ditadura chilena da década de 1980, inclusive ressuscitando personagens do período como Paulo Guedes, Ministro da Economia brasileiro desde 2019.

No Brasil, essa virada se inicia com o golpe parlamentar, jurídico e midiático de 2016, que derruba o governo eleito de Roussef, último representante do neoliberalismo de cooptação liderado pelo PT. Ainda que tenha garantido religiosamente as transferências de fundo público para o capital financeiro e a continuidade das contrarreformas redutoras de direitos sociais nas décadas anteriores, as exigências postas pelo capital, como consequências mundiais da crise de 2008, impuseram um aprofundamento dos pressupostos neoliberais passando ao que chamamos de ultraneoliberalismo. 

Dardot e Laval (2019) não utilizam o termo ultraneoliberalismo mas concordam que o neoliberalismo vai se ressignificar e aprofundar após a crise de 2008. Os marcos políticos dessa virada são, para os autores, a eleição de Trump em 2016, o Brexit em 2017 e a eleição de Bolsonaro no Brasil em 2018. O neoliberalismo, então, não só sobrevive mas se radicaliza, descartando cada vez mais os pressupostos da democracia liberal e dos direitos sociais, ainda que mínimos. Para os autores, isso ocorre pois o neoliberalismo se tornou um sistema mundial de poder que se alimenta das próprias crises econômicas e sociais que gera, porque as respostas a essas crises reforçam e aprofundam indefinidamente sua lógica, bloqueando qualquer alternativa. Assim que, nessa fase, que chamam de “novo neoliberalismo”, o sistema se aproveita dos questionamentos à democracia liberal, gerados pela própria razão neoliberal, e se apropria das tendências nacionalistas, autoritárias, xenófobas assumindo um caráter absolutista e hiperautoritário para impor uma melhor lógica do capital sobre a sociedade.

A base de legitimação desse novo momento pode ser explicada, entre outros fatores, pela compreensão do ressentimento como categoria política conforme elabora Kehl (2019). O ressentimento, para a autora é, como sentido político de massa, uma “revolta passiva” assumida por setores de classe média que, desidentificados com os mais pobres e frustrados com o fracasso de sua ascensão social procuram culpar alguém de seu infortúnio. (1) As crises econômicas agudizam esse ressentimento porque destroem a confiança no futuro e obrigam a vida a se tornar sobrevivência a cada dia, impedindo o vislumbre de um futuro melhor, de uma transformação promovida pelos próprios sujeitos. “Assim, apostas regressivas parecem conferir uma segurança imaginária” (Kehl, 2019).

Além desse elemento subjetivo, parte dessa classe média pôde aderir aos sistemas privados de educação, saúde, previdência e se vê na contradição entre defender a austeridade para que o Estado assegure ao mercado a garantia das suas poupanças investidas ou ser contra a austeridade para garantir seus direitos sociais históricos e o poder de consumo de seus salários (Streeck, 2018).

No Brasil, esses setores sociais retomam a centralidade do racismo e do patriarcado da nossa formação histórica. Os “homens brancos hétero”,  figuras de autoridade da ideologia dos “cidadãos de bem” e da “família tradicional”, perceberam as políticas de reconhecimento para mulheres, gays e LGBTTs  como perda de um status hierárquico e da legitimação de sua violência e passaram a sustentar de forma explícita esses movimentos conservadores e neofascistas (Almeida, 2020). Essa reatualização do fascismo e de preconceitos históricos tem sua direção assumida por setores da burguesia donos dos meios de produção midiáticos e de comunicação (2) e manifestam-se em correntes de whatsapp, fakenews, teorias da conspiração e instituições religiosas que se tornam a ideologia hegemônica do ultraneoliberalismo. 

No Brasil, após o golpe, o governo assumido por Temer, representante da assim chamada direita tradicional, vai aprofundar as limitações da utilização de fundo público, para além da exclusiva garantia dos direitos dos credores, por meio da draconiana Emenda Constitucional 95 que congelou todos os gastos, exceto os financeiros, por 20 anos.

O ponto de chegada do golpe de 2016 é a eleição da tosca figura de Bolsonaro em 2018. O distópico ano de 2018 se iniciou em março com o bárbaro assassinato da vereadora socialista Marielle Franco. (3) Seguiram-se, inclusive durante o período eleitoral, perseguições jurídicas a professores e reitores de universidades, exacerbação da repressão a movimentos sociais e a proibição e posterior prisão do ex-presidente Lula. Com isso venceu as eleições um projeto cunhado por Demier (2019) de semibonapartismo ultraneoliberal abertamente reacionário à frente do Estado que, desde então, atua para o aprofundamento do ataque aos direitos sociais (com uma nova e profunda contrarreforma da Previdência Social como ápice até o momento), o cerceamento de liberdades civis e democráticas, tentativas de censura às instituições de ensino e pesquisa, uma ainda maior escalada da violência estatal contra pobres, negros, indígenas e movimentos sociais, o fortalecimento das milícias e “o espraiamento de uma ideologia individualista de dessolidarização social” (DEMIER, 2019).

Assim, ainda que com resistências inclusive de alguns setores da burguesia, vem se materializando no Brasil a face ultraneoliberal do neoliberalismo. Processo em curso com caminhos ainda possivelmente dramáticos para os trabalhadores e certamente imprevisíveis e dependentes do desenrolar da luta de classes em todo o cenário mundial.

À guisa de conclusão:

Enquanto escrevia essas linhas explodia a pandemia de Covid-19. A necessidade de isolamento social decorrente da crise sanitária anuncia uma nova agudização da crise mundial do capitalismo, de proporções provavelmente inéditas.

Os governos mundiais alternam-se entre medidas mais protetivas aos trabalhadores, ou nos países comandados por neofascistas, limitadas a políticas necrófilas que tratam as milhares de mortes tão somente como efeitos colaterais que não podem interromper as necessidades sacralizadas do capital dominado pela finança.

As décadas de racionalidade neoliberal têm tamanha força ideológica que qualquer pequena intervenção dos Estados é comemorada como retorno a princípios keynesianos, uma perspectiva praticamente sem conteúdo consistente ou histórico, mas, que se tornou um sinônimo do senso comum para qualquer medida que ajude a sobrevivência dos trabalhadores.

Esse momento, que certamente será um marco histórico, reorganiza as disputas políticas por hegemonia, a luta contra o neofascismo ascendente, mas não parece conseguir reaglutinar com a força necessária o anticapitalismo, ao contrário, recoloca no cenário o recém derrotado neoliberalismo progressista, no máximo com elementos neokeynesianos ou um discurso mais radical que não avança para além da nostalgia pela regulação política estatal e uma crítica moral ao neoliberalismo.

O ultraneoliberalismo neofascista vem, contudo, se constituindo com uma bloco cheio de contradições que leva-nos ao que anuncia Gramsci: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem” (GRAMSCI apud FRASER, 2020; FERNANDES, 2019).

Nesse cenário temos acordo com Fraser (Fraser e Jaeggi, 2020) que não há saída possível sem o questionamento à financeirização, à precarização do trabalho, e a escalada de expropriações que caracterizam o capitalismo neoliberal em todas as suas formas. Para tanto é necessário construir a unidade das políticas emancipatórias de gênero, raça, sexualidade, pró imigrantes e minorias étnicas com uma perspectiva político-econômica de oposição ao capital, e não em aliança com ele. Resgatar o avanço humanitário das bandeiras emancipatórias mas associá-las à derrota da razão neoliberal em torno do mundo: a sobrevivência da humanidade depende disso. 

 

LEIA MAIS

PARTE I – Do neoliberalismo de cooptação ao ultraneoliberalismo: respostas do capital à crise

PARTE II – O neoliberalismo de cooptação como resposta às resistências

NOTAS

1 – Fraser (Fraser e Jaeggi, 2020, p.227) apresenta ainda a hipótese de que os trabalhadores simbólicos e profissionais progressistas que deram base ao neoliberalismo progressista pensavam representar “os bastiões do progresso da humanidade ao cosmopolitismo moral e ao esclarecimento cognitivo” o que “recaiu muito facilmente num apontar de dedos moralizantes e numa condescendência com pessoas de zonas rurais ou de classes trabalhadoras, com a insinuação de que são retrógrados ou estúpidos. Não é difícil compreender porque isso gerou ressentimento”.

2 – Contam, contudo, com apoio da ampla maioria da burguesia nacional, que, mesmo que eventualmente constrangida pelas manifestações mais claramente neofascistas do governo, tem como objetivo central a manutenção e ampliação de seus ganhos  por meio da agenda econômica ultraneoliberal. Para maior aprofundamento da dinâmica interna do bloco de poder ver Sena Jr. (2018).

3 – Até o momento as investigações não chegaram aos mandantes do crime, mas, vários elementos ligam seus prováveis executores à família de Bolsonaro e milicianos com quem eles se relacionam.

 

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Silvio. Racismo e ressentimento dos brancos pobres. Em: https://www.youtube.com/watch?v=FiUwQawuHmM Consulta em 21 de maio de 2020.

BLYTH, Mark. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2007.

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2017.

___. Democracia e bonapartismo no Brasil pós-golpe. In: CISLAGHI, Juliana Fiuza e DEMIER, Felipe. O neofascismo no poder (ano I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.

FERNANDES, Sabrina. Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

___ e JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020.

KEHL, Maria Rita. O ressentimento chegou ao poder? Em: https://www.revistaserrote.com.br/2020/01/o-ressentimento-chegou-ao-poder-por-maria-rita-kehl/. Consulta em 21 de maio de 2020.

MÉSZÀROS, Istvan. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.

SENA Jr., Carlos Zacarias de. O protofascismo bolsonarista e a universidade pública no Brasil. In: CISLAGHI, Juliana Fiuza e DEMIER, Felipe. O neofascismo no poder (ano I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.

STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo 2018.

VAROUFAKIS, Yannis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia. São Paulo: Autonomia Literária, 2016.