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BRASIL

Valerio Arcary: “Fátima era como as árvores que não se dobram”

Valerio Arcary

A hora mais triste é a hora do adeus. Perdemos Fátima Fernandes, na manhã de hoje, aos 65 anos, vítima de câncer no pulmão, depois de uma longa luta. Escrevo estas linhas pensando em seus camaradas e amigos de Ribeirão Preto e, em especial, em Moara e Yara, suas filhas. Fátima era uma força humana: mulher, mãe, viúva, feminista, sindicalista, socialista, uma militante internacionalista. Perdeu Paulo Henrique, seu companheiro, ainda jovem. No coração de Fátima ardeu, até o último suspiro, uma paixão revolucionária.

Dizemos presente quando lembramos os nossos. Nem a morte nos separa. Nunca serão esquecidos. Caminhamos juntos lado a lado. Ninguém fica para trás. Fátima era rija e resistente como são as árvores que não se dobram diante das ventanias e tempestades. Porque têm raízes inquebrantáveis. Fátima era sólida sem ser rígida, rigorosa sem ser ríspida, firme sem ser abrupta.

Fátima militou trinta e cinco anos com o vigor, a entrega, a disposição dos primeiros dias, porque era incansável. Se engajou na construção da Convergência Socialista e do PT, depois no PSTU e, desde 2016, no #MAIS até às fusões que originaram, em 2018, a Resistência, corrente interna do PSOL. Sua bandeira foi o combate pela reconstrução da Quarta Internacional. Fátima era agregadora e coerente, uma organizadora, uma construtora.

Fátima faz parte da geração de militantes que se uniram à luta socialista nos anos oitenta. Nunca na história da esquerda, como naqueles anos, tantos se engajaram na construção de instrumentos de luta coletivos sob a bandeira da revolução brasileira. O impulso das greves operárias do ABC foi tão poderoso que contagiou petroleiros, bancários, químicos e dezenas de outras categorias. Foi a mais poderosa onda de mobilizações da classe trabalhadora em nosso país. Nenhum país teve tantos grevistas como o Brasil nos anos oitenta. Ficamos na frente até do proletariado sul-africano na luta contra o apartheid. E a luta por direitos potencializou a campanha das Diretas e, na sequência, a construção de uma oposição popular ao governo Sarney que levou Lula ao segundo turno das primeiras eleições diretas para a presidência em 1989.  Fátima foi uma das organizadoras da Apeoesp, o sindicato dos professores do ensino estadual no Estado de São Paulo, em Ribeirão Preto. A Apeoesp foi o principal ponto de apoio para a interiorização da esquerda, ajudando a facilitar a implantação da CUT e do PT. Fátima esteve sempre presente na construção da CUT regional e na defesa das posições da CS no PT em Ribeirão Preto. São as grandes lutas que geram grandes quadros. Fátima era grande.

Conheci Fátima mais de perto no final dos anos oitenta. Durante alguns meses viajava com regularidade quinzenal a Ribeirão Preto aos domingos. Fui professor na rede estadual entre 1983 e 1990. Pegava o ônibus das seis na rodoviária do Tietê, chegava às dez da manhã e voltava no ônibus lá pelas seis da tarde. Reunia com ela e Ary Blinder e mais uns três ou quatro camaradas em um pequeno, porém dinâmico, intenso, enérgico comitê que alimentava umas duas dezenas de ativistas que apoiavam todas as lutas na cidade e região. Eles eram valentes, abnegados, arrojados, audazes. Faziam uma bela equipe. As reuniões eram um ambiente sério e fraternal. Fátima foi e era uma alma altiva e agregadora. A CS tinha uma influência desproporcional no movimento sindical e no PT, desafiadora para Antonio Palocci, que liderava o campo majoritário. Me recordo hoje da alegria de Fátima quando,  em 1990, organizaram, no maior cinema da cidade, daqueles enormes com mais de mil cadeiras, um debate em que eu e Zé Dirceu polemizamos sobre o significado do que estava acontecendo após a queda do Muro de Berlim. Cinema lotado com muita gente sentada no chão. E depois fomos todos tomar um chopp gelado no Pinguin. Escrevo estas linhas, e guardo para mim o sorriso cúmplice dela. Ela sempre me olhou com bondade.

Morreu uma trotskista. Os trotskistas são os militantes da revolução permanente. São os comunistas revolucionários. São os socialistas internacionalistas. Nossa organização ficou menor, mais frágil, e estamos mais sozinhos. Fátima abraçou a causa mais elevada da história: a luta para erradicar a exploração humana. Uma aposta na esperança que permanece suspensa no tempo. Será lembrada com afeto.