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Especiais

Um passo gigantesco em direção ao antropoceno

Alan Thornett
sgerendask

Antropoceno: a marca do homem

Do ponto de vista do impacto de nossa espécie no planeta estamos em uma encruzilhada. As ações dos seres humanos modernos, os “homo sapiens” – ou seja, todos e todas, determinarão, no transcurso do século XXI, se o planeta em que vivemos junto com milhões de outras espécies seguirá sendo habitável ou não.

O aquecimento global, causado principalmente pelas emissões de CO2 geradas pelo uso de combustíveis fosseis, acelera-se. Cada ano sucessivo é agora o mais quente dos que se têm registro. Quinze dos 16 anos mais quentes registrados são deste século. O ano passado foi de longe o mais quente. Houve temperaturas excepcionais na Espanha, Áustria, partes da Ásia, Austrália e a América do Sul. Em maio, uma onda de calor na Índia causou mais de 2 mil mortes e foi a quinta mais letal de que se tem notícia. Uma onda de calor no sul do Paquistão matou mais de 1200 pessoas. O rosário continua, expresso em acontecimentos cada vez mais extremos.

Um estudo recente demonstra que a atividade humana destruiu um décimo da vida selvagem que resta na Terra nos últimos 25 anos e que não restará nada dela dentro de um século se se mantiver esta tendência. Sobre este catastrófico pano de fundo, um organismo pouco conhecido (mas sumamente significativo) acaba de adotar uma decisão científica de importância capital. Trata-se do Anthropocene Working Group (Grupo de Trabalho do Antropoceno, AWG), formado por 38 cientistas de sistemas terrestres e convocado pelo geólogo Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester. Este grupo adotou o “antropoceno” como nova unidade de tempo geológico.

É uma decisão que, em minha opinião, reflete (e é uma resposta) à grande profundidade da crise ecológica e climática a que nos enfrentamos e suas implicações. Os primeiros em avançar a ideia foram, em 2000, o químico atmosférico da Nova Zelândia Paul J. Crutzen – que recebeu o prêmio Nobel em 1995 pela sua investigação pioneira sobre o esgotamento do ozônio estratosférico – e Eugene F. Stoermer, um biólogo da Universidade de Michigan. Seu argumento era (e segue sendo) que o impacto do ser humano no planeta alcançou já um grau ao que a época geológica atual, o holoceno (o período interglacial), que abarca os últimos 11.700 anos, deveria dar-se por concluído e substituído pelo “antropoceno”, a “idade dos humanos”.

A divisão dos 4,5 bilhões de anos de história da Terra (em éons1, eras, períodos e épocas) é determinada pela Tabela Cronoestratigráfica Internacional (escala de tempo geológico), administrada pela Comissão Internacional de Estratigrafia. Atualmente, nos encontramos no eón fanerozoico, a era cenozoica e o período quaternário, que por sua vez se divide em duas épocas: o pleistoceno e o holoceno. O pleistoceno caracterizou-se por flutuações climáticas e idades de gelo periódicas no hemisfério norte, a última das quais se produziu há 11.700 anos e deu lugar à época atual do holoceno, uma época muito mais estável que facilitou o crescimento planetário da espécie humana.

O processo de adoção

Os primeiros passos práticos para a adoção do antropoceno começaram em 2009, quando se solicitou ao AWG (do qual Crutzen é membro) que estudasse a proposta e fizesse uma recomendação. O AWG tomou uma decisão em 2016 – por uma maioria de 35 a 1 – e propõe aprovar a mudança para o antropoceno. Seus membros estão de acordo em que este conceito está justificado científica e “estratigraficamente” e que é procedente acrescentar formalmente o antropoceno à Tabela Cronoestratigráfica Internacional, declarando uma nova época.

Esta importante novidade apresentou-se no 35º plenário do Congresso Geológico Internacional, que se realizou na Cidade do Cabo de 27 de agosto a 3 de setembro [de 2016]. Posteriormente, Chris Rapley, climatologista da Universidade de Londres, destacou a importância da decisão com estas palavras em uma entrevista ao The Guardian: “Já que o planeta é nosso sistema de sustentação – no fundo somos a tripulação de uma nave espacial bem grandinha –, a interferência em seu funcionamento neste nível e a esta escala é altamente significativa. Se você ou eu fôssemos tripulantes de uma nave espacial menor seria impensável interferir nos sistemas que nos fornecem ar, água, alimentos e controle do clima. A mudança em direção ao antropoceno nos diz que estamos brincando com fogo, um comportamento potencialmente insensato que provavelmente lamentemos, a não ser que dominemos a situação.” (The Guardian, 29/08/2016)

O tom empregado é o idôneo. Uma decisão tão transcendental, se finalmente for aceita, suporia que, pela primeira vez, uma época geológica estaria determinada pelo impacto de uma única espécie em vez da composição principal da flora e da fauna do planeta ou de acontecimentos geofísicos. Implicariam (com razão) que a própria humanidade se converteu agora em uma força geofísica equivalente às grandes forças da natureza, como os impactos de meteoritos, as erupções vulcânicas e os movimentos tectônicos que antes tinha provocado tais mudanças.

O passo dado pelo AWG é crucial para todos aqueles que valorizam o meio ambiente e querem defendê-lo. Faz soar o alarme, de uma maneira clara e inevitável, sobre a gravidade e o caráter da crise ecológica e da força motriz antropológica que há atrás dela. É preciso rechaçar firmemente toda atitude que desvirtue o antropoceno como um obscuro debate geológico no seio da comunidade científica. Esta contribuiu, e não pela primeira vez, de modo muito importante à defesa do planeta.

Durante as deliberações do AWG foram publicados uma série de livros que respaldam o enfoque que esteve desenvolvendo. Entre eles cabe citar The Anthropocene: the Human Era and How it Shapes the Planet (O antropoceno: a era humana e como modela o planeta), de Christian Schwägerl (publicado em 2014 por Synergetic Press). O prólogo de Paul Crutzen qualifica o livro de “sistema de navegação para o novo mundo do antropoceno que nos espera”. O AWG publicou o seu próprio livro em 2014: A Stratigraphical Basis for the Anthropocene (Una base estratigráfica para o antropoceno), que expõe a base empírica de seu pensamento. Em 2015, Routledge publicouThe Anthropocene and the Global Environmental Crisis (O antropoceno e a crise ambiental planetária), editado por Clive Hamilton, Cristophe Bonneuil e François Gemenne, que é uma excelente introdução a um tema complexo.

Recomendação

A recomendação do AWG não é o final do processo, evidentemente. No entanto, ainda resta complementar um procedimento rigoroso antes que possa se declarar finalmente uma nova época por parte da comunidade científica. A proposta do AWG constitui agora a base de uma recomendação ao seu órgão matriz, a Subcomissão Estratigrafia Quaternária (SQS). Se esta a apoiar, será remetida ao órgão da SQS, a Comissão Internacional de Estratigrafia. E ainda terá que ser ratificada pelo Comitê Executivo da União Internacional de Ciências Geológicas por uma maioria de 60 %. Se todos esses trâmites forem cumpridos com êxito, o antropoceno será agregado oficialmente à escala de tempo geológico. Apesar da complexidade desse procedimento, é provável que a recomendação do AWG (de acordo com aqueles que estão autorizados para julgá-la) resulte decisiva, de modo que dentro de dois ou três anos poderia se produzir a adoção oficial do antropoceno.2

A data de começo do antropoceno

Talvez a questão mais controvertida que dirimiu o AWG foi a data precisa em que se deve considerar que começou a época do antropoceno. Os membros do grupo consideraram uma série de propostas, desde os tempos em que entraram em cena os humanos modernos, há 160.000 anos, até o começo da agricultura, a arrancada da industrialização, a data da invenção da máquina a vapor ou várias datas de meados do século XX. Por detrás disso, estava a necessidade dos geólogos de identificar, à luz de suas regras e convenções, mudanças no registro fóssil – por exemplo, em sedimentos rochosos ou nas geleiras – que marquem o período em que teve lugar a transição. Alguns membros do AWG defenderam que se utilizassem os sedimentos de plutônio procedentes dos ensaios de bombas nucleares do começo da década de 1950. Havia muitas outras possibilidades: a contaminação por plásticos, a fuligem de centrais elétricas, as partículas de concreto e inclusive os ossos resultantes da proliferação mundial do frango doméstico.

A data que fecharam foi a de meados do século XX (ou seja, ao redor de 1950), o que coincide com o que qualificam de “grande aceleração” do impacto humano no planeta. Ainda que seja necessário fixar uma data concreta para o começo do antropoceno, não se trata de um acontecimento singular, mas de um processo prolongado de deterioração do meio ambiente que se torna cada vez mais irreversível. O comunicado de imprensa publicado pelo AWG, em que anuncia sua conclusão, diz: “As mudanças do sistema terrestre que caracterizam a época potencial do antropoceno incluem uma notável aceleração dos graus de erosão e sedimentação, perturbações químicas em grande escala dos ciclos do carbono, nitrogênio, fósforo e outros elementos, o começo de uma mudança significativa do clima mundial e do nível do mar e mudanças bióticas como os níveis insólitos de invasão de espécies em todo o mundo. Muitas dessas mudanças são geologicamente duradouras, e algumas são efetivamente irreversíveis.”

A esquerda e o antropoceno

Em minha opinião, o conceito do antropoceno não só é geralmente correto, mas entra no cerne do debate sobre a crise ecológica atual e tem implicações no tipo de ecossocialismo que é crucial para o triunfo da luta ecológica no século XXI. Isso não significa, no entanto, que o conceito seja aceito universalmente pelos ecologistas marxistas. De fato, assistimos a um longo e vivo debate, na esquerda, a favor e contra dele. Naomi Klein, por exemplo, opõe-se ao conceito. Isso, em minha opinião, não é somente um erro, mas também carece de lógica, pois contradiz a noção amplamente aceita de que a mudança climática, e a crise ecológica em geral, é um processo antropogênico.

Um dos principais defensores do antropoceno é o ecologista marxista John Bellamy Foster, editor da Monthly Review  e autor do prestigiado livro Marx’s Ecology – materialism and nature (A ecologia de Marx: materialismo e natureza). Falou sobre o tema no encontro Marxismo/2016 do Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores, SWP) em julho. Sua conclusão foi de que a lógica do antropoceno implica que o termo “crise ecológica” já não representa uma descrição adequada da situação atual. O que nos enfrentamos hoje, disse, é um “momento decisivo do sistema terrestre…, uma crise do sistema terrestre em seu conjunto, causada pelo ser humano”. Isso significa que os humanos se converteram em uma força geológica por direito próprio que muda a natureza do próprio planeta e provoca uma “ruptura antropogênica” em sua biosfera.

Umas das razões de seu grande interesse por falar lá, disse, era que queria estimular o conjunto da esquerda para que se tomasse a questão muito mais a sério. No entanto, representantes da direção do SWP, ainda que tenham dito que essa ideia lhes parecia “interessante”, não a aprovaram. Camilla Royal, subeditora de International Socialism, ao escrever sobre o antropoceno, também considera que o “capitaloceno” é uma proposta “útil”, mas tampouco a apoia plenamente. Outro firme defensor da ideia do antropoceno é Ian Angus, o ecologista marxista canadense e editor da página web ecossocialista Climate & Capitalism. Escreveu vários artigos a respeito e um livro intitulado Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and the Crisis of the Earth System (Perante o antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre), que está previsto ser publicado em outubro de 2016, e que ainda não vi.3

O capitaloceno

A crítica mais sólida e coerente (mas totalmente equivocada, em minha opinião) à noção do antropoceno é a formulada pelo ecologista marxista (e companheiro da Quarta Internacional) Andreas Malm, da Universidade de Lund na Suécia. A oposição ao antropoceno, que ele denomina de “mito”, é efetivamente a conclusão a que chega em seu (quanto ao restante, excelente) livro intitulado Fossil Capital – the rise of steam power and the roots of global warming (Capital fóssil: o desenvolvimento da energia do vapor e as raízes do aquecimento global), em que ele o qualifica como de “pensamento de espécie”.

A proposta alternativa de Malm ao antropoceno é o “capitaloceno”. Esta designação, assinala, baseia-se na “geologia, não da humanidade, mas da acumulação do capital” (página 391). Diz que as máquinas a vapor “não foram adotadas por alguns representantes naturais da espécie humana. Devido à natureza de ordem social das coisas, somente puderam ser instaladas pelos proprietários dos meios de produção. Há alguma razão para considerá-los representantes mais genuínos ‘da empresa humana’ que os ludistas ou os predicadores da demonologia do vapor?” Não deveríamos “confundir capitalistas com seres humanos”, aconselha (página 267).

Segundo Malm, o antropoceno “poderia ser um conceito e una narrativa úteis para os ursos polares, anfíbios e aves que queiram saber que espécie está causando semelhante deterioração de seus hábitats, mas infelizmente carecem da capacidade de fiscalizar e resistir às ações humanas; entre quem pode fazê-lo – outros seres humanos –, o pensamento de espécie em matéria mudança climática leva à paralisia” (página 272). Camilla Royal diz que a argumentação de Malm a convence, mas já que a palavra “antropoceno” passou a ser de uso comum talvez seja demasiado tarde para se propor termos alternativos; um argumento estranho quando estamos falando da definição de uma época histórica.

Marxismo ou “pensamento de espécie”

Parece que Andreas Malm sugere que o antropoceno ou qualquer noção que suponha avaliar o impacto dos humanos modernos como espécie no planeta está em contradição com a análise de classe (ou marxista) da sociedade. Por quê? O antropoceno não implica que os humanos são todos igualmente responsáveis pelo seu impacto no planeta. Os cientistas que o propõem não pensam assim. Malm parece entender que as pessoas não têm nenhuma responsabilidade sobre nossa própria espécie enquanto exista o capitalismo e só a assumirá quando este tenha desaparecido.

De fato, o conceito do antropoceno é absolutamente coerente com o enfoque do marxismo clássico (Marx, Engels e Morris) sobre o ser humano como parte viva da natureza e não enfrentado a ela. Os marxistas clássicos não duvidaram em falar sobre o impacto dos seres humanos. Em Dialética da Natureza, Engels escreveu o seguinte parágrafo memorável: “A cada passo nos recordam que de forma nenhuma mandamos na natureza como um conquistador sobre um povo forasteiro, como alguém que está fora da natureza, mas que nós, como nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, formamos parte da natureza e existimos em seu seio, e que todo nosso domínio sobre ela consiste no fato que temos a vantagem, frente a todas as demais criaturas, de ser capazes de conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.”

Em outras palavras, o capitalismo também é uma atividade humana, como assinala Jason Moore: “A atividade humana não somente gera mudanças na biosfera, mas que as próprias relações entre os humanos são fruto da natureza.” Por conseguinte, nosso dever é o de abordar o impacto de nossa própria espécie na biosfera do planeta, tendo em conta as profundas divisões de classe que existem e o fato de que os ricos e poderosos, e os interesses empresariais, são a principal força motriz e os principais responsáveis por tudo isso. No entanto, isso não significa que possamos fazer caso omisso do impacto global de nossa espécie na viabilidade do planeta. O faríamos por nossa própria conta e risco. A ideia do capitaloceno, em minha opinião, não somente é um conceito cientificamente equivocado, mas que, além disso, poderia dar lugar à subestimação da profundidade e amplitude da crise ecológica.

A esquerda e o capitaloceno

Malm não é único que, dentro da esquerda, propõe o conceito de capitaloceno. Seus pontos de vista estão muito presentes em dois livros publicados recentemente: Anthropocene or Capitalocene, editado por Jason W. Moore (Kairos, 2016), e The shock of the Anthropocene, de Christophe Bonneuil y Jean-Baptiste Fressoz (Verso, 2016).

No entanto, nenhum desses livros, a meu juízo, agregam novos aspectos substanciais à posição expressada originalmente por Malm, ou seja, que o responsável do que ocorre ao planeta é o sistema capitalista, e não o ser humano moderno como espécie. Ambos expõem corretamente sobre a natureza ecologicamente destrutiva do capitalismo. O capitalismo é, com efeito, o sistema social mais destrutivo para o meio ambiente que geraram os seres humanos modernos, com a possível exceção do stalinismo. Isso está fora de discussão.

Mas não é esse o problema. A questão não é se o capitalismo é ecologicamente destrutivo, mas se a crise ecológica pode ser reduzida ao capitalismo. Em minha opinião, fazer essa redução é uma perspectiva demasiado estreita a partir da qual avaliar tanto o caráter da época como o impacto do ser humano moderno no planeta. Ao final das contas, o capitalismo é uma atividade humana. Enquanto a destruição ecológica aumentou fortemente com a revolução industrial, o impacto destrutivo dos humanos modernos no planeta precedeu de longe à chegada tanto da industrialização como do capitalismo.

Nisso coincido com Camilla Royal quando diz “parece prematuro associar o antropoceno tão estreitamente com a revolução industrial”. Ela aponta que Crutzen e Stoermer deixaram claro que sua proposta de data de arrancada da revolução industrial não era mais do que uma sugestão e que esperavam que houvesse mais debate sobre a questão. E continua dizendo que de algum modo está justificado datar o começo do antropoceno na época “em que os humanos causaram a extinção de muitos mamíferos grandes ou inclusive na primeira prova que se conserva de qualquer atividade humana” [sublinhado no original]. Também coincido com isso.

Impacto desproporcionado

Há tempos digo que os seres humanos tiveram um impacto desproporcionado no planeta ao longo de toda sua história de 160.000 anos. Quando emigraram (emigramos) da África, acabaram com a maior parte da megafauna, dos grandes animais terrestres e aves não voadoras com que se encontraram, que não podiam se defender contra seus enormes cérebros, sua notável habilidade para a caça e sua organização, indo amiúde muito mais além de suas necessidades imediatas. Dessa maneira, eliminaram uma quinta parte de todas as espécies. Assim ocorreu na Austrália, Nova Zelândia, Madagáscar, Indonésia, nas Américas e na Europa. Na Europa, a poda dos bosques e a aplicação de métodos agrícolas transformaram a paisagem medieval até deixá-la irreconhecível.

Ainda que essa destruição não colocasse em questão a época, (ou seja, o holoceno) como tal, naquele momento já estava claro que o ser humano moderno tinha uma enorme capacidade como agente de mudança. Éramos um caso especial desde o ponto de vista de nossa habilidade, não somente para mudar o entorno natural, mas para destruí-lo. Mantínhamos, além disso, uma relação destrutiva única com outras espécies, na medida em que todas elas eram vulneráveis a nossas atividades. Hoje em dia, afrontamos a maior extinção de espécies – a “sexta extinção”– desde a desaparição dos dinossauros há 65 milhões de anos. Atualmente, 40% de todas as espécies mamíferas se enfrentam à ameaça de extinção em curto e médio prazo, quando a taxa de extinção histórica é de uma a cada 700 anos. Os anfíbios estão desaparecendo a um ritmo 45.000 vezes mais rápido que a extinção histórica. É um ritmo de extinção que em última instância coloca em risco todas as espécies do planeta, incluída, ao final de contas, a nossa. A extinção de espécies a esta escala não somente é hoje um elemento chave da crise ecológica, mas é o fator singular mais convincente a favor do antropoceno.

Industrialização

O principal erro que cometem os defensores do capitaloceno é o de equiparar a industrialização à ascensão do capitalismo. O desafio ecológico representado pela própria industrialização – ou seja, a invenção da máquina a vapor e do motor a combustão interna e a expansão massiva da produção e da população tornadas possíveis – foi gigantesco independentemente do modo de produção que assumiu o controle. Ainda que uma sociedade socialista (ou mais exatamente uma sociedade ecossocialista) criaria condições muito melhores para defender o planeta, a ausência do capitalismo não basta. Durante a maior parte do século XX, o capitalismo deixou de existir em um terço do planeta, na União Soviética, Europa Oriental e China, mas destruição do meio ambiente foi pelo menos tão daninha quanto a que havia sido sob o capitalismo.

A destruição do meio ambiente não somente começou muito tempo antes que o capitalismo, mas continuará durante muito tempo depois, a menos que se defenda e construa conscientemente uma alternativa sustentável viável. É disso que trata o ecossocialismo. Não somente da luta por uma sociedade socialista, mas por uma sociedade socialista ecologicamente sustentável. Uma sociedade que coloque um ponto final e reverta o afã de crescimento e que viva em harmonia com a natureza e não à custa dela; uma mudança fundamental de nossa relação, como seres humanos, com o planeta que habitamos.

Um grande passo adiante

A decisão do AWG de recomendar o antropoceno foi um êxito notável de Crutzen e Stoermer, que batalharam durante muito tempo a favor da mesma, tendo que superar muitas frustrações no caminho. Em 2011, por exemplo, Crutzen expressou, junto com o jornalista ecologista alemão Christian Schwägerl, sua decepção pela lentidão do processo: “É uma lástima que oficialmente ainda estejamos vivendo em uma idade chamada holoceno. O antropoceno – o domínio humano dos processos biológicos, químicos e geológicos na Terra – já é uma realidade inegável…

Durante milênios, os humanos se comportaram frente a uma superpotência que chamamos de ‘natureza’. Pois bem, no século XX, as novas tecnologias, os combustíveis fósseis e uma população em rápido crescimento ocasionaram uma ‘grande aceleração de nossos próprios poderes. Ainda que de forma torpe, estamos tomando o controle sobre o reino da natureza, desde o clima até o DNA. Os humanos passaram a ser a força dominante da mudança na Terra. Uma ideia religiosa e filosófica inveterada – os humanos como donos do planeta Terra – converteu-se em crua realidade. O que fazemos agora já afeta o planeta do ano 3.000 ou mesmo 50.000.” (Climate Energy Policy and Politics Pollution and Health Science and Technology Asia, janeiro de 2011)

Ao final, a persistência de Crutzen e Stoermer deu frutos. E o resultado, se a recomendação do AWG for aprovada efetivamente, comportará um aumento crucial das armas para aqueles que lutam por salvar o planeta de sua destruição ecológica. Será um sinal de advertência àqueles que colocam em dúvida a profundidade e amplitude da crise ecológica e quão perto estamos do ponto de não retorno. Camilla Royal cita Ian Angus com um parágrafo com o qual estou plenamente de acordo: “Os ecossocialistas necessitam abordar o projeto do antropoceno como uma oportunidade para unificar uma análise ecológica marxista aos achados mais recentes da investigação científica em uma nova síntese: uma descrição sócio-ecológica das origens, da natureza e do rumo da crise atual do sistema Terra”. Agregaria isto: como base para o que fazemos a respeito.

*Artigo publicado originalmente em: http://socialistresistance.org/a-major-step-towards-the-anthropocene/9049

Notas:

1/https://www.theguardian.com/world/2015/may/29/no-relief-from-india-heatwave-as-death-toll-reaches-20-year-high

2/https://www.theguardian.com/environment/2016/sep/08/humans-have-destroyed-a-tenth-of-earths-wilderness-in-25-years-study

3/ O título completo é Grupo de Trabalho do Antropoceno da Subcomissão de Estratigrafia Quaternária.

4/Minha resenha está publicada em ESSF (article 37004), Review for ecosocialists: The Age of Anthropocene?

5/Minha resenha de Capital Fóssil está publicada em ESSF (article 39187), Geology & Marxism: The Anthropocene debate and Andreas Malm’s “Fossil Capital” – a review.

1 NT: A palavra éon significa um intervalo de tempo muito grande, indeterminado. A história da terra está dividida em quatro éons: Hadeano, Arqueano, Proterozoico e Fanerozoico.

2 Até a data da publicação deste artigo em português, tal decisão ainda não tinha sido definida.

3 O livro foi publicado pela Monthly Review em 2016.