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Marx inventou o ecossocialismo?

Michel Husson

Existem várias abordagens no trabalho de Marx que podem ser descritas, sob risco de simplificação, como “prometeicas”, “produtivistas” e “metabólicas”.

A primeira abordagem é desenvolvida nos Manuscritos de 18441. Marx insiste na ideia de que o comunismo é “a verdadeira solução para o conflito entre o homem e a natureza”. A sociedade libertada da propriedade privada é então “a conclusão da unidade da essência humana com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da natureza”. Essa simbiose não é, contudo, desprovida de um desejo “prometeico” de afirmar uma forma de controle humano exercido sobre a natureza.

Esse viés potencial se torna ainda mais claro com a versão “produtivista” desenvolvida em vários rascunhos do Capital2, e em particular na Contribuição à crítica da economia política, publicada em 18593. Marx introduziu a famosa oposição entre “forças produtivas” e “relações de produção”. Mas ele não discute a natureza dessas forças produtivas e, nos Grundrisse4, até mostra uma forma de fascínio pela “grande ação civilizadora do capital”, que conseguiu criar “a apropriação universal da natureza”. É somente com ele que “a natureza se torna um objeto puro para o homem, uma pura questão de utilidade; que deixa de ser reconhecida como um poder em si; e mesmo o conhecimento teórico de suas leis autônomas aparece apenas como um ardil destinado a submeter à natureza às necessidades humanas, seja como objeto de consumo ou como meio de produção.”

Finalmente, um terceiro problema surge com o trabalho de Marx (e Engels) sobre a renda fundiária e, mais geralmente, sobre a agricultura. Marx opôs-se à visão de Ricardo de que os rendimentos agrícolas diminuem porque a valorização varia da terra mais fértil a menos fértil. E ele chegou ao ponto de criticar “todos os economistas que escreveram sobre renda diferenciada” por terem ignorado “as reais causas naturais do esgotamento de solo (…) o conhecimento em química agrícola sendo insuficiente em seu tempo.” (Livro III, página 709).

Para superar essa ignorância, Marx se obriga a estudar os desenvolvimentos científicos mais recentes: “Eu tive que estudar em profundidade a nova química agrícola alemã, especialmente Liebig e Schönbein que são mais importantes para esta questão que todos os outros economistas juntos”, ele escreveu em uma carta a Engels de 13 de fevereiro de 1866. Em O Capital, ele se baseou em particular no tratado de Justus Von Liebig5, do qual um dos “méritos imortais” é o de ter desenvolvido “o lado negativo da agricultura moderna” (Livro I, página 566).

Em suas Cartas sobre a agricultura moderna6, Liebig afirma muito claramente o risco de esgotamento do solo: “o poder produtivo de um campo do qual algo é removido permanentemente, não pode aumentar nem mesmo se manter. Qualquer sistema agrícola baseado na espoliação da terra leva à pobreza”. Para ele, “a agricultura racional é baseada no princípio da restituição; ao restituir as condições de sua fertilidade aos campos, o camponês garante a permanência deles” (páginas 143-144).

Além disso, é interessante notar que Marx segue a evolução de Liebig, que passa, entre as sucessivas edições de seu livro, de uma apologia acrítica da química agrícola ao questionamento de seus danos. Em O Capital, Marx cita a 7ª edição publicada em 1862, onde Liebig destaca os danos do que chamaríamos hoje de agricultura intensiva. Então, vemos aparecer um tema completamente diferente, onde o capitalismo “arruína as fontes vivas de toda a riqueza: a terra e o trabalhador”.

O metabolismo (Marx usa o termo várias vezes) entre a espécie humana e a natureza é, portanto, questionado, e é por isso que podemos falar de uma abordagem “metabólica”. A conclusão de Marx é muito clara: “A moral da história que também pode ser extraída de um estudo da agricultura é que o sistema capitalista se opõe à agricultura racional ou que a agricultura racional é incompatível com o sistema capitalista (embora favoreça seu desenvolvimento técnico) e que ela precisa da intervenção do pequeno camponês que trabalha em sua própria terra ou do controle de produtores associados” (Livro III, página 129).

Nesse ponto e em outros, o trabalho de Marx não é, portanto, um bloco compacto, mas um trabalho em constante evolução, inspirado nos trabalhos científicos de sua época e que permite interpretações diferentes. Para alguns, o Marx produtivista teria inspirado uma concepção de socialismo concebido como um desenvolvimento impetuoso das forças produtivas levando a uma sociedade de abundância. Ele poderia, portanto, ser considerado responsável intelectual pelo desastroso balanço ecológico da União Soviética, simbolizado pela secagem do mar de Aral.

Sem ir tão longe, Marx teria faltado ao encontro com ecologia, recusando as sugestões de Serguei Podolinsky. Esse socialista ucraniano se ofereceu para complementar sua teoria do valor-trabalho com uma medida baseada no gasto de energia. De suas trocas, conhecemos principalmente os comentários de Engels em uma carta a Marx, onde ele escreveu: “O que Podolinsky esqueceu completamente é que o homem, como trabalhador, não apenas gasta o calor solar presente, desperdiça ainda mais o calor solar passado. Conseguimos desperdiçar as reservas de energia, carvão, minerais, florestas, etc., como você sabe melhor do que eu.” 7

Portanto, foi Engels quem estava certo, e sua última frase relativiza as críticas de Daniel Tanuro, para quem Marx e Engels teriam considerado apenas os fluxos de energia e negligenciado o esgotamento dos estoques, especialmente o carvão. 8

Uma das razões da ambivalência, e até contradições, do pensamento de Marx é que ele evoluiu de acordo com os avanços científicos de seu tempo. Marx participou de muitas conferências, por exemplo, as dadas pelo geofísico John Tyndall. Este último estabeleceu pela primeira vez em 1861 um vínculo entre a composição da atmosfera (no vapor d’água, mas também no CO2) e as mudanças climáticas.9 Sem estabelecer um vínculo com a atividade industrial, ele lançou os fundamentos de uma dimensão essencial da ecologia.

Não podemos, portanto, censurar Marx por ter ignorado os avanços científicos de sua época, menos ainda por não ter antecipado desenvolvimentos futuros e, por exemplo, por ter negligenciado o trabalho do IPCC! Tampouco é possível reduzir Marx ao produtivismo, mesmo ao hiperconsumo. Talvez seja suficiente recordar este belo aforismo retirado de um panfleto anônimo de 1821, que Marx cita com elogio no Grundrisse 10: “Uma nação é verdadeiramente rica se, em vez de doze horas, seis são trabalhadas.”11

Os marxistas depois de Marx

É então necessário explicar por que a tradição marxista e a prática soviética não apropriaram totalmente das intuições “pré-ecológicas” de Marx. Encontramos prolongamentos disso, por exemplo, em Kautsky, o teórico da questão agrária12, Bukharin adota a noção de metabolismo para alinhar algumas generalidades: “Seria ingênuo dizer que o homem é o rei da natureza e que tudo na natureza é feita para atender às necessidades humanas. (…) O homem nunca poderá sair da natureza e, mesmo quando a submete, ele apenas explora as leis da natureza para seus próprios fins. Portanto, é compreensível que a natureza exerça uma grande influência sobre todo o desenvolvimento da sociedade humana.” 13

Quanto a Trotsky, o mínimo que se pode dizer é que ele adota uma visão prometeica quando escreve: “a localização atual de montanhas, rios, campos e prados, estepes, florestas e costas não pode ser considerada definitiva. O homem já fez algumas mudanças não insignificantes no mapa da natureza; exercícios simples em comparação com o que virá. A fé só podia prometer mover montanhas, a técnica, que não admite nada “pela fé”, as derrubará e realmente as moverá. Até agora, o fazia apenas para fins comerciais ou industriais (minas e túneis); no futuro, o fará em uma escala incomparavelmente maior, de acordo com planos produtivos e artísticos, ampliados. O homem levantará um novo inventário de montanhas e rios. Alterará seriamente a natureza mais de uma vez. Ele acabará por remodelar a Terra ao seu gosto.”

Ou, ainda mais forte: “o homem socialista dominará toda a natureza, incluindo seus faisões e esturjões, por meio da máquina (…) A máquina não se contraporá à terra. É um instrumento do homem moderno em todas as áreas da vida.” 14

Apesar dessas tomadas de consciência, pelo menos desiguais, deve-se lembrar de que, por alguns anos, a jovem Rússia soviética preocupou-se com a preservação da natureza, sob o ímpeto em particular de Lunatcharsky, o Comissário do Povo para Educação Pública e sob a égide do cientista Vernadsky. Este último também foi um membro fundador do Partido Cadete (constitucionalista-democrático, direita liberal) contra o bolchevismo e foi protegido pelo próprio Lenin contra a Cheka. Vernadsky também é conhecido por ter inventado o conceito de biosfera e, portanto, pode ser considerado um dos fundadores da ecologia. 15

Foi Lenin quem criou o primeiro parque natural do mundo dedicado exclusivamente ao estudo científico da natureza e quem emitiu decretos para proteger a pesca da exploração predatória. Mas isso, obviamente, não durou muito e o ponto de virada ocorreu em 1928, com a política agrícola de repressão contra os kulaks e depois com a ascensão do lissenkismo. 16  Talvez seja aí que a oportunidade tenha se perdido, o que levou a uma cisão duradoura entre ambientalistas e marxistas produtivistas.

Os erros da economia dominante

O aumento das preocupações ambientais foi acompanhado por um duplo movimento de diferenciação entre ecologia profunda e ecologia social, e de distanciamento dos marxistas da tradição produtivista. Mas o reencontro só será possível se forem deixados de lado os erros teóricos que o impedem.

Sabemos que Malthus era o alvo favorito de Marx, que teria podido, pelo menos nesse ponto, concordar com Proudhon, que teria dito que “há apenas um homem demais na Terra, é o Sr. Malthus”. Marx não se opôs apenas a Malthus na questão da superpopulação, mas também em sua concepção segundo a qual o solo teria uma “qualidade particular“, permitindo “extrair dele mais alimentos necessários para a vida do que é preciso para manter quem trabalha no cultivo da terra”: uma espécie de mais-valia natural! E essa qualidade, esse “dom que a natureza faz ao homem” não tem “nada em comum com o monopólio“. A fertilidade da terra “existe, quer seja preciso ou não; deve, portanto, superar por muitos séculos o poder que temos para esgotá-la inteiramente.» 17

Na mesma linha, Jean-Baptiste Say começa explicando, de maneira bem engraçada, que seria absurdo criar riquezas naturais (supondo que isso seja possível), porque “se o fizéssemos para nosso uso, teríamos que pagar o que a natureza nos oferece de graça.” Após essa observação de senso comum, Say leva o argumento à tona: “as riquezas naturais são inesgotáveis, porque, caso contrário, não as receberíamos de graça. Não podendo ser multiplicadas ou esgotadas, elas não são objeto da economia.” 18

A economia dominante, portanto, vem de longe e levará muito tempo para abandonar essa concepção da terra ser “um dom que a natureza dá ao homem”. A teoria neoclássica apenas recentemente tentou integrar o tema ambiental, adicionando um terceiro “fator de produção”, a energia (ou mais amplamente, os recursos naturais,), ao lado de trabalho e capital para mostrar que bastava aumentar o preço da energia para diminuir sua contribuição para uma determinada produção.

Uma das primeiras contribuições nessa direção é a de Nordhaus e Tobin, que se perguntam em 1972 (o ano da publicação do relatório Meadows sobre os limites do crescimento19) se o crescimento é obsoleto. Suas conclusões são retrospectivamente bastante surpreendentes: “[nossas] simulações (…) implicam que o crescimento será acelerado em vez de abrandar, mesmo que os recursos naturais se tornem mais escassos no futuro. Esses resultados decorrem de “uma alta elasticidade de substituição” ou de “uma mudança tecnológica relativamente eficiente em termos de recursos…” “ou ambos”.20

Uma metodologia semelhante será adotada em particular por Solow21, com o mesmo descuido. Em uma contribuição dedicada ao esgotamento dos recursos, Stiglitz emprega um arsenal matemático para chegar a essa conclusão igualmente tranquilizadora: “não parece haver nenhuma presunção de que uma situação em que haja uma reserva de “trinta anos” de um recurso natural indica consumo excessivo dele.”22

Esse marco teórico neoclássico baseia-se em uma hipótese ad hoc de substituibilidade, assim resumida por esse “teorema” de Solow: “é a essência da produção não poder ocorrer sem o uso de recursos naturais. Mas vou supor que seja sempre possível substituir insumos de recursos não renováveis, por insumos maiores de mão-de-obra, de capital reprodutível (isto é, tecnologia) ou de recursos renováveis.”23

Basta então jogar com o preço relativo dos “fatores” para definir uma política sustentável e aqui está o porquê “a montanha ecológica pariu um rato fiscal”. 24 Essa abordagem claramente não é o método certo para levar em conta as restrições ambientais, mas infelizmente inspirou alguns teóricos da ecologia preocupados em avaliar a contribuição da energia para o crescimento. Essa abordagem foi notavelmente popularizada em um livro de Yves Cochet. 25

Baseia-se em dois estudos obscuros26  que rejeitam a hipótese da substituibilidade e buscam avaliar a contribuição dos vários “fatores” para o crescimento. Isso se expressa nas palavras de Cochet: “os cálculos da produtividade dos fatores na produção industrial dos três países mencionados mostram que, em trinta anos, o poder produtivo da energia é maior que o do capital ou do trabalho e até dez vezes maior que os 5% de seu custo no custo total. Em média, a contribuição produtiva da energia é de cerca de 50%, a do capital, de 35% e a do trabalho, de 15%. “

Este cálculo não faz sentido. É certo que, como mostra o gráfico abaixo, o crescimento global foi acompanhado, especialmente a partir da década de 1950, por um aumento paralelo das emissões de CO2.

 

É igualmente evidente que o crescimento capitalista se beneficiou da energia de baixo custo, e esse fator desempenhou um papel decisivo no estabelecimento de toda uma série de métodos de produção intensiva, que serviram de base para os ganhos de produtividade. Com custos de energia mais altos, esses ganhos de produtividade não teriam necessariamente compensado o aumento de capital, como poderiam ter feito. No caso da França, o gráfico abaixo destaca uma ligação muito estreita entre as flutuações na taxa de lucro e o custo do consumo de energia.

Valor e riqueza: a bússola marxista

Ao mostrar que o capitalismo está interessado apenas em valor de troca, Marx lança as bases para uma crítica à economia política que pode ser facilmente estendida a questões ambientais. Vimos que Marx repetidamente fez essa extensão. Mas, afinal, o importante não é saber o que Marx realmente disse. A questão essencial vai além da marxologia: é desenhar todas as implicações da distinção entre valor (de troca) e riqueza, para esboçar os princípios de outro cálculo econômico.

Podemos nos inspirar no esquema de Engels: “É claro que a sociedade precisará saber, mesmo assim, quanto trabalho é necessário para produzir cada objeto de uso. Terá que elaborar o plano de produção de acordo com os meios de produção, dos quais a força de trabalho é uma parte essencial. Por fim, são os efeitos úteis dos vários objetos de uso, considerados conjuntamente e em relação à quantidade de trabalho necessária para sua produção que determinarão o plano. As pessoas resolverão tudo com muita simplicidade, sem intervenção do famoso “valor”.27 E Engels leva o assunto à tona em uma nota de rodapé: “Essa avaliação do efeito útil e do gasto de trabalho na decisão relativa à produção é tudo o que resta, em uma sociedade comunista, do conceito de valor da economia política.”

Em O Capital, Marx estende esse princípio à relação com a natureza: “os produtores associados regulam racionalmente seu metabolismo com a natureza, colocam-no sob o controle comunitário, em vez de serem dominados por um poder cego (…) realizam-no com o menor gasto de força e nas condições mais dignas e adequadas à natureza humana.” (Livro III, página 742).

Essa é uma boa definição do planejamento ecológico. O objetivo do sistema econômico não deveria mais ser maximizar o lucro como no capitalismo, mas maximizar o bem-estar sob restrições sociais e ambientais. Portanto, as ferramentas da análise marxista podem ser úteis para fundar um ecossocialismo em torno desse princípio: as soluções de mercado (impostos ecológicos ou permissões de emissão) não podem responder totalmente ao desafio climático, que só pode ser enfrentado por um planejamento ecológico.

Finalmente, as análises de Marx são um antídoto perfeito para as teses (neo) malthusianas que infelizmente ressurgiram em um manifesto recente de cientistas que propõem “determinar em longo prazo um tamanho da população humana sustentável e cientificamente defensável (sic) enquanto se garante o apoio dos países e líderes mundiais para alcançar esse objetivo vital”. 28

Limites e fronteiras

Para delimitar melhor a abordagem de Marx, é útil introduzir uma distinção essencial entre limites e fronteiras, como sugere Antonin Pottier.29 Os limites se referem principalmente ao esgotamento de recursos, mas não abrem como tal a possibilidade do desaparecimento da espécie humana. Além disso, eles não implicam de maneira alguma o fim do capitalismo, como Pottier explica: “a aproximação de um limite será indicada por escassez (por exemplo, de materiais), na impossibilidade de novas extrações. No entanto, o capitalismo sabe gerenciar muito bem a escassez, é até um dos motores, pois alimenta as perspectivas de lucro (…) A propriedade privada dos meios de produção e a iniciativa individual dos produtores não são incompatíveis com a existência de limites ecológicos.”

As fronteiras são de natureza diferente: cruzá-las cria a possibilidade de uma catástrofe global. São elas que fundam um verdadeiro “paradigma ecológico” que corresponde “ao cenário em que o uso excessivo e descontrolado de energia leva a efeitos catastróficos para o equilíbrio planetário. Não é mais uma questão de esgotamento de recursos, mas de ruptura do equilíbrio na biosfera.”30  Pottier explica por que o capitalismo não pode levar em consideração as fronteiras: “Precisa-se de um mecanismo social que torne essa fronteira tangível para os capitalistas, modifique sua perspectiva de lucro e mude a dinâmica da acumulação de capital para que funcione dentro das fronteiras ecológicas. Ora, o capitalismo, como sistema que deixa a iniciativa para atores privados individuais, está precisamente desprovido desse mecanismo. Portanto, não pode fazer respeitar as fronteiras ecológicas.”

Essa grelha de leitura nos leva a nos diferenciar de marxistas como Paul Burkett e John Bellamy Foster, que buscam restaurar uma “ecologia de Marx”31, baseado na noção de “ruptura metabólica” entre a natureza e a espécie humana que existe efetivamente em Marx.

Mas, se bem que ele estava ciente dos riscos de esgotamento dos solos e recursos naturais, Marx não estava em condições de levar em conta as fronteiras, definidas não por esgotamento, mas por desastres ecológicos ligados à desregulamentação climática. É certo que esses dois fenômenos se combinam, mas suas forças motrizes devem ser diferenciadas: por exemplo, uma catástrofe climática global pode ocorrer mesmo antes que os recursos de petróleo ou metais raros tenham desaparecido. Por outro lado, seu esgotamento não implica, como tal, o início de um desastre climático.

Ainda assim, a ameaça essencial – que as emissões de gases de efeito estufa provoquem um grande desequilíbrio climático – era desconhecida na época de Marx e, portanto, ausente de seu trabalho. É por isso que o ecossocialismo não se satisfaz em restaurar a ecologia de Marx: deve proceder à sua extensão.

Essa rota que leva de Marx ao projeto ecossocialista sugere um prognóstico bastante otimista em relação à convergência em curso entre ecologia e marxismo. Baseia-se em um distanciamento simétrico: por um lado, com a ecologia “profunda” desconectada da questão social, e por outro, com o produtivismo que há muito permeia o movimento dos trabalhadores. Teóricos como Daniel Tanuro ou Jean-Marie Harribey, a quem essa coluna deve muito, contribuem com energia (!). Se esse projeto será realizado de maneira ampla e rápida, proporcional ao desafio climático, é obviamente outra questão.

 Trechos da obra de Marx e Engels, ambientalistas antes da hora

A arte de saquear o solo.

“E todo progresso na agricultura capitalista não é apenas progresso na arte de saquear o trabalhador, mas também na arte de saquear o solo; qualquer progresso no aumento da fertilidade por um determinado período de tempo é ao mesmo tempo um progresso na ruina das fontes duradouras dessa fertilidade. Quanto mais um país, como os Estados Unidos da América, parte da grande indústria como pano de fundo de seu desenvolvimento, mais rápido é esse processo de destruição. Tanto que a produção capitalista desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social apenas arruinando ao mesmo tempo as fontes vivas de toda a riqueza: a terra e o trabalhador. “ (Karl Marx, O Capital, livro I, pp. 566-567)

Um hiato no equilíbrio do metabolismo social

“A grande propriedade fundiária reduz ao mínimo a população agrícola, até um número que diminui constantemente diante de uma população industrial concentrada nas grandes cidades e que aumenta constantemente; cria assim condições que causam um hiato irremediável no complexo equilíbrio do metabolismo social composto pelas leis naturais da vida; isso resulta em um desperdício das forças do solo, um desperdício que o comércio transfere muito além das fronteiras do país considerado (Liebig).” (Karl Marx, Capital, livro III, p. 735)

Um modo de produção míope

“Desde que o fabricante ou comerciante, individualmente, venda os bens produzidos ou comprados com um pequeno lucro habitual, ele está satisfeito e não se importa com o que acontece com os bens e com o comprador. O mesmo se aplica aos efeitos naturais dessas ações. Para os agricultores espanhóis em Cuba, que queimaram as florestas nas encostas e encontraram fertilizantes suficientes nas cinzas para uma geração de cafeeiros extremamente produtivos, o que lhes importava que as chuvas tropicais lavassem, mais tarde, a camada superficial do solo, agora desprotegido, deixando apenas pedras nuas para trás? Tanto para a natureza quanto para a sociedade, no modo de produção atual, consideramos apenas o resultado imediato e tangível; e por isso, somos surpreendidos quando as consequências futuras dessas ações são diferentes, geralmente opostas, do esperado.” (Friedrich Engels, O papel do trabalho na transição do macaco para o homem, 1876)

Efeitos imprevisíveis e destrutivos

Não nos lisonjeamos demais com nossas vitórias sobre a natureza. Ela se vinga de cada uma delas. Cada vitória certamente tem, em primeiro lugar, as consequências que esperávamos, mas, no segundo e no terceiro, tem efeitos imprevistos completamente diferentes, que muitas vezes destroem essas primeiras consequências. As pessoas que, na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e em outros lugares, desmataram as florestas para obter terras aráveis, estavam longe de esperar estabelecer ali as bases da atual desolação desses países, destruindo junto com as florestas, os centros de acumulação e conservação de umidade. “ (Friedrich Engels, Dialética da Natureza, 1883)

*Texto disponível em: https://npa2009.org/idees/ecologie/marx-t-il-invente-lecosocialisme#footnoteref31_8u0cbo8

1.Karl Marx, « Manuscrits de 1844 » (http://gesd.free.fr/marx1844.pdf).

2.Karl Marx, « Le Capital », livre I (http://digamo.free.fr/capimarx1.pdf), livre II (http://digamo.free.fr/capimarx2.pdf), livre III (http://digamo.free.fr/capimarx3.pdf).

3.Karl Marx, « Contribution à la critique de l’économie politique », 1859 (http://digamo.free.fr/critieco.pdf).

4.Karl Marx, « Manuscrits de 1857-1858 » dits « Grundrisse », Editions sociales, 2011 ; extrait « Le vol du temps d’autrui, une base misérable » (http://gesd.free.fr/grundx1.pdf).

5.Justus von Liebig, « Die Chemie in ihrer Anwendung aul Agrikultur und Physiologie », 1862 (7e édition, http://pombo.free.fr/liebig1862.pdf). Para constar, Justus von Liebig inventou e depositou em 1847 um processo de extrato de carne em alimentos (extractum carnis Liebig) que está na origem da marca Liebig (cf. http://continentalfoods.fr/heritage/notre-histoire).

6.Justus von Liebig, « Letters on modern agriculture », 1859 (http://pombo.free.fr/liebig1859.pdf).

7.Friedrich Engels, Lettres à Marx des 19 et 22 décembre 1882 ; « Two letters to Marx on Podolinsky » (http://pinguet.free.fr/engels1882.pdf).

8.Daniel Tanuro, « Energie de flux ou énergies de stock ? Un cheval de Troie dans l’écologie de Marx », Europe Solidaire Sans Frontière, 26 novembre 2007 (http://pinguet.free.fr/tanuro1107.pdf). Seu livro, « L’impossible capitalisme vert », é u,q referência indispensavel, como o conjunto de seus trabalhos.

9.John Tyndall, « On the Absorption and Radiation of Heat by Gases and Vapours, and on the Physical Connexion of Radiation, Absorption, and Conduction », The London, Edinburgh, and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science, Series 4, Volume 22, Issue 146, 1861 (http://pombo.free.fr/tyndall1861.pdf).

10.Karl Marx, « Le vol du temps d’autrui, une base misérable », extrait des « Manuscrit de 1857-1858 (Grundrisse) » (http://gesd.free.fr/grundx1.pdf).

11.Charles Wentworth Dilke, « The Source and Remedy of the National Difficulties » (http://pinguet.free.fr/dilke1821.pdf ; l’identité de l’auteur a été révélée par son petit-fils). A fórmula que Marx parafraseia é: “seguiria que os homens trabalhariam apenas seis horas enquanto trabalhavam doze até então, e isso é riqueza nacional, prosperidade nacional”

12.Karl Kautsky, « La question agraire », 1899 (http://pombo.free.fr/kautsky1900.pdf).

13.Nicolas Boukharine, « La théorie du matérialisme historique », 1921 (http://pombo.free.fr/boukha1921.pdf).

14.Léon Trotsky, « Littérature et Révolution », 1923 (http://pombo.free.fr/trotskylitt.pdf). Voir aussi Daniel Tanuro, « Écologie : le lourd héritage de Léon Trotsky », La Gauche, 23 août 2010 (http://pinguet.free.fr/tanurotrot.pdf).

15.Vladimir Vernadsky, « La biosphère », 1926 (http://pombo.free.fr/vernadsky1926.pdf).

16.Sobre a experiência soviética, ver : Jean Batou, « Révolution russe et écologie (1917-1934) », Vingtième Siècle, n°35, juillet-septembre 1992 (http://pinguet.free.fr/batou1992.pdf) ; Daniel Tanuro, « Les trop brèves convergences de la Révolution russe et de l’écologie scientifique », Contretemps, septembre 2017 ; et le livre de référence de Douglas Weiner, « Models of Nature. Ecology, Conservation and Cultural Revolution in Soviet Russia », 1988 (http://pinguet.free.fr/weiner1988.pdf).

17.Thomas Malthus, « Principes d’économie politique », 1820, pages 125 et 310 (http://ecocritique.free.fr/malthuspf.pdf).

18.Jean-Baptiste Say, « Cours complet d’économie politique pratique », tome I, 1840 (http://pombo.free.fr/jbsay1840.pdf).

19.Donella et Dennis Meadows, « The Limits to Growth », 1972 (http://pinguet.free.fr/meadows72.pdf).

20.William Nordhaus et James Tobin, « Is Growth Obsolete ? », dans NBER, Economic Research : Retrospect and Prospect, Volume 5, 1972 (http://pombo.free.fr/nordhaustobin72.pdf).

21.Robert Solow, « The Economics of Resources or the Resources of Economics », The American Economic Review, Vol. 64, No. 2, 1974 (http://pombo.free.fr/solow1974.pdf).

22.Joseph Stiglitz, « Growth with Exhaustible Natural Resources : Efficient and Optimal Growth Paths », The Review of Economic Studies, Vol. 41, 1974 (http://pombo.free.fr/stiglitz1974.pdf).

23.Robert Solow, « An almost practical step toward sustainability », Resources for the Future, Occasional Paper, 1992 (http://pinguet.free.fr/solow1992.pdf).

24.Michel Husson, « L’introuvable économie écologique » (http://hussonet.free.fr/666166.pdf), Chapitre 6 de « Sommes-nous trop ? », 2000 (http://hussonet.free.fr/66616.pdf).

25.Yves Cochet, « Pétrole apocalypse », 2005 (http://pombo.free.fr/cochet2005.pdf).

26.Reiner Kümmel, Dietmar Lindenberger, Wolfgang Eichhorn, « The productive power of energy and economic evolution », lndian Journal of Applied Economics, vol. 8, septembre 2000 ; Robert U. Ayres, Benjamin Warr, « Accounting for Growth : The Role of Physical Work », INSEAD, 2004 (http://pinguet.free.fr/ayreswarr.pdf).

27.Friedrich Engels, « Anti-Dühring », 1978 (http://gesd.free.fr/antiduhr.pdf).

28.Appel de 15 364 scientifiques, « Il sera bientôt trop tard pour dévier de notre trajectoire vouée à l’échec », A l’Encontre, 13 novembre 2017.

29.Antonin Pottier, « Le capitalisme est-il compatible avec les limites écologiques ? », 2017 (prix Veblen du jeune chercheur ; pinguet.free.fr/pottierveblen.pdf).

30.Michel Husson, « La planète a-t-elle des límites ? », Cap. 3 de : « Sommes-nous trop ? », Textuel, 2000 (http://hussonet.free.fr/666163.pdf).

31.VER entre outros : Paul Burkett, « Marx and Nature : A Red and Green Perspective », 1999 (http://pinguet.free.fr/burkett1999.pdf) ; John Bellamy Foster, « Marx’s Theory of Metabolic Rift : Classical Foundations for Environmental Sociology », American Journal of Sociology, Vol. 105, N° 2, September 1999 (http://pombo.free.fr/foster1999.pdf) ; John Bellamy Foster, « Marx écologiste », Editions Amsterdam, 2011 ; traduction de « Marx’s Ecology », 2000 (http://digamo.free.fr/marxecolo.pdf).