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BRASIL

Foi bonita a festa, pá

faleceu Fátima Fernandes

Gilberto de Souza, de São Paulo, SP

É tão estranho
Os bons morrem jovens
Assim parece ser
Quando me lembro de você
Que acabou indo embora
Cedo demais

(Renato Russo)

Este é o texto que nenhum de nós quer ou quis escrever, nesta manhã de outono morreu nossa camarada e amiga Fátima de Ribeirão Preto, este é um dos momentos mais tristes de minha vida e este é, certamente, o texto mais doído que escrevo.

Fomos companheiros, camaradas de política durante trinta e cinco anos, entramos para a esquerda organizada simultaneamente, no final de 1983 quando a ditadura militar estava em seus estertores. Em 1985 passamos a atuar no setor de professores estaduais, em 1995 com minha mudança de São Paulo para Ribeirão Preto nos aproximamos mais e nos tornamos amigos. Minha mulher já era amiga dela de longa data, quando vivia na cidade antes de casarmos – pelo fato de andarem sempre juntas e serem muito parecidas fisicamente e pessoalmente, quase sempre eram confundidas como irmãs.

Embora tenhamos entrado para a esquerda juntos, Fátima era uma militante de longa data. Participou e atuou nas primeiras greves da APEOESP – 1978 e 1979 – contra a lei de greve da ditadura que simplesmente proibia greves e sindicatos no serviço público, curiosamente na mesma escola na qual lecionei quando mudei para a cidade.

Era uma pessoa intensa com muita coragem, foi ameaçada de morte quando disputou as eleições para prefeito de sua cidade em 1996 ao desmascarar um dos candidatos da direita local com um termo que, no linguajar de hoje, virou meme na cidade – inverdade. Chegou a enfrentar um processo milionário de um dos poderosos locais – dono de um sistema de ensino – que simplesmente queria uma quantidade de dinheiro equivalente a seu único imóvel como indenização.

Essas e outras ameaças e perseguições não a fizeram recuar um milímetro em sua atuação política, como ela sempre dizia o autoritarismo deve ser enfrentado, não podemos ter medo.

Era dura nas disputas políticas e ideológicas, mas solidária e afetuosa com seus camaradas – muitos dos quais, como eu e minha esposa, amigos também – e quase todos nós fomos ajudados por ela em momentos de dificuldades. Se minha companheira de muitos anos ainda está viva é graças à Fátima Fernandes – sendo eu mesmo socorrido por ela inúmeras vezes.

Muito respeitada e querida por todas as organizações de esquerda da cidade, e mesmo por muitos representantes da direita, por sua honestidade, sinceridade e solidariedade com o outro. Foi uma mãe exemplar e uma pessoa generosa, gostava de celebrar natal e outras datas do calendário com os seus, sempre brindando à vida.

Nos últimos dez anos convivia com uma doença incurável, mesmo assim costumávamos depois de cada susto – e foram muitos – nos encontrar para brindar à vida.

Não poucas vezes ela fazia piadas com a “velha da foice” dizendo, no way, não vai rolar, hoje não.

Infelizmente, neste dia triste, hoje sim – a “velha da foice” venceu.

Mas, tenho certeza, será uma vitória de Pirro – ganhou mas não levará!

Sua alegria, sua disposição e vontade de viver, seu exemplo como uma militante incansável pela justiça social, pela igualdade, liberdade e fraternidade permanecerão dentro de cada um de nós.

Nós todos morremos um pouco hoje, uma parte de nós vai com ela.

Mas também uma grande parte dela fica conosco – a dor nos fará mais fortes e com mais vontade ainda de seguir lutando pelas causas que ela abraçou.

Em uma de nossas conversas após escapar de um choque anafilático – fazendo piada de meu notório medo da morte – ela me disse com a autoridade de quem escapou de um coma que morrer não dói – espero que não tenha doído.

Ela foi cedo demais, os bons sempre vão cedo, pois fez coisas maravilhosas, mas tinha muitas outras coisas a fazer; mesmo assim viveu intensamente cada momento de sua vida e nos contagiou com seu otimismo e vontade de viver e de lutar por um mundo melhor.

Até breve camarada, seguiremos daqui com sua luta e sempre nos lembraremos de você – você sempre viverá dentro de cada um de nós.