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BRASIL

Por que Sergipe deve dizer não ao ensino remoto em plena pandemia?

Sharlene Prata*, de Aracaju, SE.
Divulgação

Nem todas as tentativas orquestradas pelo governo Bolsonaro, com o objetivo de ocultar os dados acerca da realidade atual no Brasil, são capazes de mascarar o fato de que estamos diante de uma das maiores crises sanitária, econômica e social dos últimos tempos. Somos hoje o país que mais mata por covid-19 e ultrapassamos a terrível marca de mais de 44 mil óbitos. Um abalo dessa dimensão terá impacto em diversos setores e já é possível observar suas consequências na educação.

A ausência de medidas por parte do governo federal e a experiência dos outros países no combate à pandemia levaram os governadores dos estados brasileiros a decretarem o fechamento das escolas com o intuito de conter o avanço do novo coronavírus. A adoção dessas ações deveria igualmente levar em consideração que esse seria um momento em que educadores/as deveriam planejar como se daria o retorno seguro às escolas, frente ao grande desafio que é preservar vidas evitando uma nova onda de disseminação do vírus, principalmente no que se refere às escolas públicas brasileiras.  No entanto, mesmo perante a esse cenário caótico, grande parte dos governos tentam passar uma aparência de normalidade, exigindo que os profissionais da educação continuem trabalhando e ignorem o sofrimento e a luta pela sobrevivência das populações mais exploradas e oprimidas. 

Os governos (federal, estadual e municipal) aproveitam-se da conjuntura de pandemia de forma conveniente para o avanço do modelo de educação e de escola referenciado na agenda empresarial, por meio da EAD e das aulas remotas. As grandes corporações de tecnologia estão impulsionando na educação básica a tecnologia da aprendizagem remota, por meio de contratos com vários sistemas de ensino e ampliando seus lucros através da exploração de dados dos seus usuários para poder ofertar produtos e serviços.

Em Sergipe essa ofensiva contra a educação não se revelou diferente. O governo Belivaldo, através da SEDUC (Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura), publicou no dia 27 de maio a portaria 2235/2020 com o intuito de regulamentar a oferta de atividades não presenciais na educação básica da rede estadual, sem que houvesse diálogo com a comunidade escolar.  O decreto define que tais atividades podem ocorrer tanto por meio digital (plataformas, redes sociais, aplicativos e e-mails), quanto por meio físico (livro didático, estudo dirigido, avaliações etc.) e os/as docentes podem fazer uso dessas aulas até 25% da carga horária total.  

Não queremos aqui discutir a importância e as vantagens das tecnologias de informação e comunicação para educação, mas o quanto esse formato em caráter substitutivo e não como ferramenta, deve aprofundar ainda mais a desigualdade social e educacional já existente, negando o acesso gratuito ao ensino à grande parte dos estudantes.

Essa portaria, não demonstra uma preocupação com a educação dos estudantes, ao contrário, ela é excludente e nega a realidade vivida pelos jovens matriculados na rede pública. Há que se considerar o abismo social existente quando o assunto é acesso ao universo digital.  A mais recente pesquisa TIC Domicílios divulgada em maio deste ano deu conta que, um em cada quatro brasileiros não tem nenhum acesso à internet. Esse índice se agrava se tomarmos como parâmetro a zona rural.  Já entre as classes mais pobres apenas 52% navegam na internet, sendo que 85% destes são exclusivamente pelo celular com pacotes de dados reduzidos o que dificultaria o acesso às plataformas. Quando nos referimos especificamente ao Estado de Sergipe, 34,8% dos domicílios não tem acesso à banda larga e esse número deve aumentar se levarmos em consideração o perfil socioeconômico dos/as alunos/as da rede pública.

É importante destacar também que as unidades de ensino não possuem estrutura adequada para essa modalidade, com plataformas seguras. Tão pouco os professores foram preparados para trabalhar com aulas remotas ou EAD. Esse contexto se mostra ainda mais preocupante se pensarmos que o ambiente doméstico não é dos mais favoráveis para a aprendizagem, em especial dos alunos/as de escolas públicas. 

Ademais, tanto o ensino à distancia, como também as aulas remotas, não são indicados para a educação básica, pois exige um nível de concentração e de disciplina nos estudos que os/as alunos/as ainda não desenvolveram, com o agravante dos/das estudantes com déficit de atenção ou com algum tipo de deficiência. No caso particular das videoaulas gravadas, cabe evidenciar que o processo ensino-aprendizagem não é realizado apenas pelo que é proferido pelo/pela docente. Essa modalidade não só impede que haja debate e troca entre os/as estudantes, mas também que os professores/as possam adequar melhor os conteúdos de acordo com o perfil da sua turma. 

Ainda convém destacar que, se a escola ou o/a professor/a resolve optar pelas atividades físicas estará desconsiderando as pesquisas que apontam a permanência do vírus em diversos materiais. Todo contato social nesse momento oferece risco, ainda que se adotem medidas sanitárias.  Isso tudo sem aludir ao fato de que muitos alunos/as moram distante e dependem de ônibus escolar para chegar até as escolas e esse transporte, por razões óbvias, não está circulando durante a quarentena, o que representaria mais uma forma de exclusão.

Outra dúvida que paira sobre a eficácia da proposta da SEDUC diz respeito à possibilidade real dos estudantes realizarem essas tarefas em meio a toda sorte de privações que se encontram e levando em consideração que, segundo o próprio decreto, são atividades que não implicam em aprovação ou reprovação (o que não poderia ser diferente, do contrário, além de excluir, seria também responsável pelo aumento do fracasso escolar). Talvez por essas e por outras constatações que na própria portaria 2235/2020 se admite em seu artigo 7º inciso 3º que uma parcela dos estudantes não vai participar das atividades não presenciais.

O desprezo de hoje por um ensino de qualidade poderá ter um efeito perverso e em cadeia nos outros anos, resultando no fracasso escolar desses/as alunos/as excluídos/as ou na negação da possibilidade de acesso ao ensino superior.  Sem contar que certamente vamos ter um currículo escolar ainda mais reduzido do que este, que já foi enxuto em razão da BNCC.

Outrossim, não podemos perder de vista que estamos falando de uma categoria eminentemente feminina (80% são mulheres), que se vê acumulando tarefas domésticas em casa e no cuidado com idosos/as e filhos/as, por vezes servindo de tutora das crianças que estão com as aulas presenciais suspensas. 

Também é conveniente advertir sobre as consequências dessas políticas no trabalho docente. Historicamente, em face de uma crise capitalista, a burguesia sempre oferece como saída da mesma, o aprofundamento da precarização das condições trabalho. No que tange aos profissionais da educação, essa situação já estava em franca expansão e deve se aprofundar. Querem transformar o professor em uma espécie de coach ou tutor EAD. O governo Bolsonaro, através do seu ministro da educação Abraham Weintraub, sempre defendeu a ampliação da educação à distância e o ensino domiciliar (home schooling) e provavelmente, só teve seu ímpeto barrado em razão das lutas que tivemos no ano passado em defesa da educação. Desta feita, encontrou a circunstância ideal para enraizar ainda mais o empresariamento do ensino e estabelecer maior controle sobre esses profissionais. 

Nossa tarefa nesse momento é fortalecer a luta pelo acesso universal à educação pública, gratuita e de qualidade. O ensino remoto está na contramão disso, principalmente em tempos de crise social, pois o acesso ficará restrito aos/as poucos/as alunos/as que puderem pagar por pacotes de dados de internet. É necessário que os sindicatos da educação assumam uma posição mais firme em defesa da suspensão do calendário escolar e sua reorganização, quando houver uma retomada segura das aulas presenciais. 

 

*Professora da rede estadual de Sergipe e militante da Resistência/PSOL.