Este texto, escrito por iniciativa de docentes da Universidade Federal Fluminense, não se propõe a resolver os complexos problemas envolvidos no debate sobre atividades de ensino, no terrível e excepcional contexto de crise sanitária que atravessamos. Seu objetivo, mais modesto, é apresentar alguns posicionamentos sobre o debate em curso e avançar em propostas concretas que possam auxiliar a reflexão e a mobilização da comunidade universitária para enfrentar tal desafio.
Sabemos que há especificidades da situação de nossa universidade, mas julgamos pertinente divulgar essas reflexões e proposições para um público mais amplo porque entendemos que não somos apenas nós, na UFF, que estamos enfrentando uma dupla ameaça. Por um lado, a pressão imediata pela utilização sem maiores discussões, de tecnologias remotas para atividades de ensino, apresentadas como grandes tábuas de salvação no momento excepcional que atravessamos. Por outro lado, observamos que inexistem, ou resumem-se a “recomendações” de normas de higiene e distanciamento, as discussões sobre as condições estruturais para um retorno minimamente seguro ao ensino presencial, o que só faz aumentar a insegurança em relação ao momento em que esse retorno possa ser exigido.
Antes de mais nada, entendemos que as saídas para tal situação só poderão ser efetivas se envolverem o conjunto da comunidade universitária no debate e essa é a primeira e mais importante exigência que apresentamos à gestão universitária.
Um papel central para a garantia de que esse debate ocorra está sendo desempenhado pelas entidades de representação coletiva, ANDES-SN, SINASEFE e respectivas Seções Sindicais; FASUBRA e os sindicatos de base dos Técnicos Administrativos de Educação Superior; Diretórios de estudantes e UNE, cujo histórico de lutas e conquistas as credencia para o enfrentamento desse novo e gigantesco desafio: defender a gratuidade, qualidade, referência social e autonomia do ensino superior público, ao mesmo tempo em que se defende a vida de seus trabalhadores e trabalhadoras, estudantes e familiares. É como parte desses movimentos que nos manifestamos.
Nossos pontos de partida
Condições infraestruturais e ações essenciais em curso
- Dada a especificidade da atividade de ensino e da estrutura universitária, que concentra dezenas de milhares de pessoas em diversos e diferentes campi universitários, envolve concentração de estudantes e docentes em salas de aulas e laboratórios fechados, as orientações científicas para a contenção da pandemia desautorizam completamente um retorno em horizonte minimamente próximo das atividades de ensino e da maioria das atividades acadêmicas regulares de natureza presencial.
- A infraestrutura da UFF, e da maioria das universidades públicas, com a qual nós infelizmente fomos paulatinamente nos acostumando nos últimos anos, possui sérias deficiências para as atividades regulares que já desenvolvíamos, que agora se tornam obstáculos muito expressivos a qualquer volta às atividades presenciais com garantias de segurança sanitária, quando as medidas de isolamento social puderem ser progressivamente relaxadas. O quadro docente e de técnico-administrativos em educação reduzido e as limitações de instalações se traduzem em muitos cursos de graduação com mais de 60 estudantes em salas de aulas sem ventilação (muitas construídas para funcionar com janelas completamente fechadas para o uso de ar condicionado), em prédios que dependem de elevadores sempre lotados, com banheiros muito avariados, em que sabão e água para lavar as mãos são na maioria das vezes artigos escassos ou totalmente ausentes, para ficarmos apenas no básico.
- Apesar de todas as limitações da situação que atravessamos, as Universidades públicas estão desenvolvendo uma série de atividades essenciais no combate à pandemia e às consequências sanitárias e sociais da crise que estamos atravessando, a começar pelo papel dos hospitais universitários, passando pelas pesquisas sobre tratamentos e vacinas, produção de equipamentos médicos a baixo custo (como ventiladores respiratórios), EPIs e insumos hospitalares, desenvolvimento de programas e aplicativos para enfrentar as novas situações, monitoramento e mapeamento dos atingidos pela pandemia, produção e promoção de atividades de divulgação científica e debates sobre temas centrais da conjuntura, entre muitas outras.
- O Ministério da Educação – entregue ao fundamentalismo autocrático e em postura desde o início de 2019 marcada pelo confronto com o caráter público, autônomo e os princípios democráticos de gestão e acesso às Universidade Federais – atua em clara perspectiva de desmonte da capacidade e qualidade de formação acadêmica, produção cultural e de conhecimento científico e tecnológico, difusão de conhecimentos socialmente orientada (ensino, pesquisa e extensão). O MEC se alinha à perspectiva de que a pandemia é uma “janela de oportunidades” para “passar a boiada” do desmonte da rede de ensino federal, em todos os seus níveis e das IFES em particular. Um quadro que se completa com a postura das agências de pesquisa em cortar até o limite as bolsas e auxílios e direcionar o pouco que restar a linhas de financiamento para áreas muito específicas de pesquisa (em geral, mais imediatamente voltadas à valorização do valor), definidas sem qualquer consulta à comunidade acadêmica. Com efeito, em plena pandemia, o governo encaminha a 4ª versão do P.L. Future-se à Câmara dos Deputados.
EaD: redução de custos, controle do grande capital sobre o trabalho e a pesquisa
- No bojo dessa perspectiva das autoridades responsáveis pela Educação e pela C&T no país, introduz-se como solução para um “retorno à normalidade” os pacotes de tecnologia educacional remota, utilizando-se toda uma diversidade de nomenclaturas que visa dissociá-los das experiências de Ensino à Distância (EaD). Esse caminho é adotado, por um lado, como desvio às normas legais estabelecidas. De fato, o EaD – que hoje envolve já cerca de 40% das matrículas do ensino superior no país, dominado pelas grandes corporações privadas que atuam no setor, mas também presente nas instituições públicas (a UFF é a universidade federal com maior número de matriculados em EaD, com 28% de suas vagas oferecidas e 23% dos matriculados em graduação nessa modalidade) – possui regramento legal próprio. A mudança de nomenclatura também se dá porque há justificável rejeição aos limites pedagógicos das experiências de EaD em curso no país, moldadas por princípios empresariais pouco ou nada compatíveis com os parâmetros básicos da qualidade que regem a universidade (como o princípio constitucional da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão).
- Embora as Universidades tenham, ao longo de séculos, desenvolvido e incorporado tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem, sendo a docência universitária, por definição, aberta a todo tipo de ferramenta tecnológica que possa auxiliar suas atividades, o que se discute neste momento é outra coisa. As experiências de EaD segundo a lógica empresarial, que hoje dominam o panorama educacional superior privado (75,4% das matrículas de graduação estão no setor privado e 91,6% das matrículas em cursos EaD também estão nesta rede) e introduzem-se velozmente no público, trazem como elemento indissociável à sua lógica pautada pelos lucros um processo de precarização das relações de trabalho e subordinação da autonomia na produção de conhecimento das(os) docentes. Os programas e pacotes tecnológicos produzidos visando esse imperativo empresarial são, na enorme maioria das vezes, oriundos de uma pequena quantidade de corporações que monopolizam enormes fatias do mercado. Com isso, essas corporações subordinam as instituições a seus objetivos de lucro, dirigem em grande medida os limites e possibilidades das atividades através deles desenvolvidas e controlam dados e produtos que circulam por seus pacotes e programas, através de mecanismos pouco transparentes, que podem gerar formas de manipulação de dados pessoais da comunidade universitária para fins comerciais e/ou políticos, como inúmeros exemplos recentes o demonstram, bem como apropriação privada de saberes, produtos e processos desenvolvidos no âmbito da universidade pública. Além disso, em tempos de crescente ameaça autocrática, as formas de vigilância e censura ideológica, incompatíveis com o princípio da liberdade de cátedra – aspecto essencial ao sentido de Universidade –, podem também ser potencializadas.
Condições de trabalho e de formação da comunidade universitária
- As universidades públicas, nas últimas duas décadas, passaram por um processo, ainda limitado, mas muito significativo de democratização do acesso, através de mecanismos de cotas raciais e sociais, que já apresenta repercussões nas diversas áreas de atuação dos profissionais por elas formados, assim como no plano mais geral da democratização das relações políticas e sociais no país. Por isso mesmo, qualquer proposta de retomada de atividades, durante ou no pós-pandemia, precisa partir de garantias de acesso universal do corpo discente. Ainda conhecemos limitadamente, mas podemos estimar, com o que conhecemos da realidade de nossos cursos que uma parcela expressiva de nossas(os) estudantes não apenas tem dificuldade de acesso à internet, mas não possui condições de moradia e vida que garantam a adequada compatibilização das medidas de isolamento social com a concentração exigida pelos estudos universitários. Além disso, as demandas com cuidados de crianças, idosos, doentes, que se exigem de forma particularmente aguda às mulheres (dada a desigual e opressiva divisão sexual do trabalho reprodutivo na sociedade em que vivemos), limitam muito as possibilidades de acompanhamento de atividades de ensino de uma parcela majoritária do corpo discente (cerca de 55% das matrículas de estudantes de graduação nas IFES são de mulheres). Com especificidades, todas essas limitações aplicam-se também, em alguma escala, ao corpo docente e técnico.
Nossas propostas
Tendo em vista essas premissas e o contexto que enfrentamos, propomos alguns caminhos e medidas concretas para, considerando a situação como emergencial, definirmos políticas para regular as atividades que estão acontecendo e as que podem vir a acontecer na UFF:
- Toda e qualquer decisão sobre atividades desenvolvidas por via remota, a ser tomada nos fóruns superiores, deve ser precedida de amplo e democrático debate respaldado em dados, evidências e estudos, pela comunidade universitária.
Todas as atividades que estamos desenvolvendo e/ou viermos a desenvolver durante a pandemia e no período posterior à sua manifestação mais dramática, deve ser acompanhada de um esforço de preparação, por parte da administração da UFF – articulada com a ANDIFES, entidades sindicais e científicas – para um momento em que as atividades presenciais possam ser retomadas com segurança. Isso inclui a edificação de salas de aula e ambientes acadêmicos sanitariamente seguros; reformulação das formas de acesso e utilização das instalações de bibliotecas e laboratórios; reforma e garantia de segurança sanitária das edificações em que trabalhamos e contratação de servidores – docentes e técnicos – para viabilizar o ensino em novos turnos e turmas reduzidas (os protocolos de países que estão numa fase de retomada de atividades no ensino básico – na maior parte do mundo não se cogita a retomada imediata das atividades universitárias presenciais – têm tomado por limite 15 estudantes em cada sala de aula). Isso implica uma ação articulada do conjunto das IFES, com as autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, para garantir verbas extraordinárias, quebrando as barreiras da legislação do teto de gastos e as limitações orçamentárias atuais do MEC e das agências de fomento, tendo em vista o caráter essencial das atividades desenvolvidas pelas universidades e a excepcionalidade do momento vivido (medidas fiscais excepcionais, voltadas para a taxação das grandes fortunas, podem ser tomadas em nome do interesse público, sem maiores consequências para as vidas das poucas pessoas que acumulam quantias inimagináveis de valores, numa sociedade tão desigual quanto a nossa). - Durante o período de excepcionalidade que atravessamos e provavelmente continuaremos enfrentando por bastante tempo, para além das atividades essenciais nas quais a universidade está fortemente engajada, o trabalho remoto que viemos desenvolvendo desde o início do isolamento social e que continuaremos a desenvolver, deve privilegiar as atividades de pesquisa e extensão, além das atividades administrativas. São muitas as atividades de núcleos de pesquisa, grupos de estudo, seminários via web e atividades de extensão que temos desenvolvido, cabendo ampliar sua divulgação e o acesso de interessados, particularmente do corpo discente. No momento não há condições para a retomada imediata de disciplinas regulares de graduação e de pós-graduação por via remota e seu eventual desenvolvimento no futuro demandará uma série de requisitos que hoje não preenchemos.
- Através da ANDIFES e sociedades científicas, a Universidade deve atuar junto às agências de fomento para a extensão do prazo de vigência de bolsas e auxílios, bem como para a suspensão em caráter emergencial dos prazos e requisitos regulares de avaliação dos programas de pós-graduação pela CAPES.
- A UFF deve se preocupar, muito, em acompanhar, acolher e manter contato ativo com o corpo discente, o que deve e pode ser potencializado pela via remota, nas condições excepcionais que atravessamos. Para tanto, é essencial que a administração universitária avance na pesquisa sobre as condições de acesso remoto de toda a comunidade, divulgando de forma transparente os dados dessa pesquisa.
- Será fundamental também, ampliar os recursos para assistência estudantil, de forma a garantir a permanência face às condições sociais gravíssimas que o país atravessa (são já cerca de 60 milhões de cidadãs e cidadãos recebendo o auxílio emergencial do governo federal e outro tanto dependente desses recursos e das formas de solidariedade social que se construíram no período recente), com programas de bolsas, alimentação e outras formas de auxílio emergencial.
- Ao mesmo tempo, é possível que a Universidade construa condições de acesso público e gratuito à internet para parcelas do corpo discente com limitações de acesso, através de medidas como:
- Articulação de esforços e recursos da Rede Nacional de Pesquisa (RNP-Rede Rio), prefeituras dos municípios em que nos fazemos presentes e governos estadual e federal para a oferta e ampliação de programas de acesso público à rede, adequados às condições de isolamento e distanciamento social (aos moldes de programas como “Niterói Digital”, mas levando-os a um novo e mais amplo patamar);
- Edificação de ambientes abertos em nossos campi, com condições de uso de redes de internet wifi abertas e uso com distanciamento social sanitariamente seguro;
- Potencialização da UNITV, como canal de interlocução interna da comunidade universitária e como canal de divulgação de nossas atividades para a comunidade externa.
- Desenvolvimento de plataformas e tecnologias próprias para as atividades remotas, conferindo prioridade aos chamados “softwares livres”, buscando garantir autonomia tecnológica, economia de recursos e fugir ao controle monopolístico e às armadilhas da “mineração de dados” dos pacotes das grandes corporações.
- Instituir um amplo processo de discussão na comunidade universitária sobre as metodologias pedagógicas para as atividades de ensino não presenciais ou semipresenciais, de forma a garantir a qualidade de qualquer atividade de ensino que, em caráter excepcional, venha a ser desenvolvida no próximo período em modalidades remotas, pensadas prioritariamente para estudantes em vias de conclusão dos seus cursos, quando isso for viável.
- No momento, as atividades de ensino autorizadas pelo CEPEX – realização de defesas de trabalhos de conclusão de curso; orientação e Atividades Acadêmicas Complementares (AAC) – são as que podemos e devemos realizar por via remota. No caso das AAC, a Universidade pode avançar na regulamentação para o aproveitamento de créditos pela participação em seminários, congressos e cursos de extensão via web, regulamentando inclusive a ampliação, em caráter excepcional, neste período, do número de créditos em AAC que poderão ser aproveitados na integralização curricular dos estudantes de graduação.
- Diante do longo período de suspensão das aulas, devemos, através do Andes-SN, em articulação com outros setores universitários, notadamente a Andifes e as organizações estudantis locais e nacionais, propor o cancelamento do primeiro semestre letivo e o debate acerca das condições de realização do segundo semestre letivo e das atividades de ensino mencionadas no ponto 10, em caráter excepcional;
- Considerando o cancelamento de um ou dois semestres e que o ingresso nas universidades federais se dá mediante o SiSu, via Enem, ora adiado sine die, devemos debater e reorganizar o calendário de novos ingressos (graduação e pós-graduação) nas universidades federais.
- Finalmente, contribuir para a luta pela revogação da Emenda Constitucional 95, de 2016, que impõe teto e redunda na contínua redução dos chamados gastos públicos sociais.
*Gustavo Gomes – Escola de Serviço Social
José Rodrigues – Faculdade de Educação
Kênia Miranda – Faculdade de Educação
Marcelo Badaró Mattos – Instituto de História
Reginaldo Costa – Faculdade de Educação
Regis Argüelles – Faculdade de Educação
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