Em visita ao Brasil como parte de um tour pela América Latina em 2008, Condoleezza Rice teceu ligeiras comparações entre Brasil e Estados Unidos. Países de grandes dimensões territoriais e populacionais, com um passado escravocrata e grande diversidade étnica que os faziam mais parecidos, nas palavras da então Secretária de Estado da administração Bush, “que quaisquer outros dois países”. O que diria Rice sobre os dias atuais, em que os paralelismos entre esses dois países são tão visíveis e tão dramáticos?
Num contexto em que o mundo todo começa a discutir o ressurgimento de movimentos neofascistas, justamente Brasil e Estados Unidos são governados por dois dos presidentes que mais atraem apoios do esgoto da civilização. Em meio à uma crise sanitária global que já contaminou milhões de pessoas e ceifou centenas de milhares, os dois presidentes que pior se conduziram e que são diretamente responsáveis pelo maior número de mortos são também desses dois países. Há mesmo um sentimento dúbio ao lembrar que numa experiência anterior, da Gripe Espanhola, justamente os presidentes dos Estados Unidos (Woodrow Wilson) e do Brasil (Rodrigues Alves) foram contaminados, embora só o brasileiro tenha morrido.
E como se coincidência pouca fosse bobagem, no presente momento, esses dois presidentes estão cada vez mais isolados e desmoralizados, e quanto mais sentem o efeito de suas próprias ações, mais se dizem próximos das forças armadas e mais ameaçam utilizá-las contra os manifestantes e/ou abertamente contra o Estado de Direito e a democracia. E é aqui que as comparações merecem uma reflexão um pouco mais profunda, dado o passado de intervenções militares e ditaduras no Brasil apoiadas pelos Estados Unidos.
Pois justamente no momento em que Donald Trump ameaçou usar as Forças Armadas contra os manifestantes, uma verdadeira enxurrada de militares repudiou a tentativa de intimidação e o uso das forças armadas americanas como guarda pretoriana fascista. A lista de mais 80 oficiais, todos de alta patente, inclui ex-Secretários de Defesa, ex-chefes de chefes do Pentágono, e mesmo os atuais chefe do Estado Maior (primeira autoridade militar naquele país) e Secretário de Defesa. Qual é a influência que tal postura pode exercer sobre militares brasileiros num momento em que também o nosso atual presidente também ameaça usar as Forças Armadas para intervir na política?
Num país de pouca tradição em guerras, as forças armadas brasileiras careciam fortemente de preparo técnico e equipamentos modernos até o começo do século XX. Durante a presidência de Hermes da Fonseca (1910-1914) chegou-se a ensaiar um projeto de modernização a partir da proposta de uma missão militar alemã. Um grupo de 21 oficias chegou a ser enviado para se instruírem no exército deste país, mas a tão desejada missão não foi contratada. Os oficiais que viveram esse aprendizado, todavia, voltaram fortemente marcados pela experiência e se empenharam em transmitir o máximo que puderam do que haviam trazido de seu estágio.
O pequeno grupo passou a ser pejorativamente chamado de “os jovens turcos”. Para além da melhoria no preparo técnico e tecnológico, os “jovens turcos” entendiam que numa jovem república, ainda incipientemente desenvolvida como consideravam o Brasil, a caserna era a única instituição verdadeiramente nacional e embora contrários à intervenção individual e impulsiva de oficiais na política, entendiam que enquanto instituições, as forças armadas deveriam sim moderar o desenvolvimento do Estado Brasileiro.
Nesse ínterim iniciou-se a Primeira Guerra Mundial, e as pressões para o rompimento de relações entre Brasil e Alemanha se tornaram cada vez mais fortes por parte de Estados Unidos e França, até que em 1917, sob a presidência de Venceslau Braz, o Brasil finalmente entrou no conflito declarando guerra justamente à Alemanha, o que frustrou definitivamente o ímpeto dos germanófilos. Em 1919 sob a presidência de Epitácio Pessoa, foi contratada a Missão Francesa para instrução das forças armadas brasileiras.
Alguns dos oficiais que participaram do estágio na Alemanha também fizeram os cursos da Missão Francesa (pragmaticamente), mas a noção das forças armadas como instituições legitimas para conduzirem os projetos civilizacionais do país, permaneceu e frutificou. Goes Monteiro, um dos oficiais influenciados pelos “jovens turcos” veio a ser a patente mais elevada a apoiar o movimento que culminou na Revolução de 30. Promovido rapidamente a general revezou com seu grande aliado e cúmplice general Eurico Gaspar Dutra o posto de Ministro da Guerra, e os dois foram fundamentais para instalação da ditadura do Estado Novo. Dutra chegou a ser presidente do país após a primeira queda de Vargas, em 1945, e em todas as eleições entre 1945 e 1960 pelo menos um dos principais candidatos era militar.
Com a Segunda Guerra Mundial, a disposição de intervir na política e até governar o país foi enriquecida com a experiência de atuação junto ao exército americano. O núcleo da direita militar, que veio a ser conhecido pelo nome de Cruzada Democrática (ou UDN de farda) se formou mesmo a partir dos generais que lutaram na Itália sob o comando de oficiais americanos. Esse grupamento, envolvido em todas as intervenções e quarteladas, tais como a república do Galeão em 1954, a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck em 1955, a tentativa de impedir a posse de João Goulart em 1961 e a sua deposição em 1964 contaram com ativa participação e liderança de oficiais dessa facção. Imbuídos da filosofia intervencionista dos “jovens turcos”, agora queriam também o alinhamento automático aos Estados Unidos: “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil” conforme diria Juracy Magalhães um ex-militar udenista e americanófilo.
Não por acaso, após a experiência da guerra, a influência estadunidense sobre as forças armadas Brasileiras se tornou cada vez mais intensa. Em 1949, ainda sob o governo Dutra, foi fundada a Escola Superior de Guerra (ESG), inspirada na sua quase homônima Army War College (AWC), dos Estados Unidos. Em 1952, sob a condução do conhecido Góis Monteiro, então chefe do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e em pleno segundo governo Vargas, foi assinado o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos. Tal feito sofreu várias críticas dos setores que outrora lideraram a campanha do “Petróleo e Nosso”, mas foi assinado assim mesmo. Teve como efeito o rompimento dos militares nacionalistas e legalistas com Vargas, a começar por seu Ministro da Guerra, o general Newton Estillac Leal, e deste ponto em diante a base militar do governo só se enfraqueceu.
O acordo teve validade até 1977, quando o então ditador militar Ernesto Geisel o denunciou afinal como nocivo à soberania nacional após a administração do presidente Jimmy Carter questionar sobre o respeito aos direitos humanos no Brasil. Os adidos militares americanos sempre foram influentes sobre a direita militar organizada no Brasil e a conhecida amizade entre o adido Wernon Walters e o então chefe do Estado Maior do Exército (EME) e futuro ditador brasileiro Humberto de Alencar Castelo Branco foi muito importante para o pronto reconhecimento do Golpe de 1964, e mesmo para o envio de um porta aviões com a missão de dar apoio logístico aos golpistas no Brasil, como parte da famigerada operação Brother San. Tudo isso sem falar no intercâmbio entre militares brasileiros e estadunidenses antes e durante a ditadura, em especial na Escola das Américas (School of the Americas, no inglês) onde se aprendiam técnicas de tortura. Por um longo período que abarca o fim da ditadura do Estado Novo ao fim da ditadura militar, os militares americanos tutelaram seus pupilos brasileiros e lhes serviram de guia e referência, embora ao que se saiba, nenhum fardado tupiniquim tenha prestado continência à bandeira americana.
Os tempos de hoje são outros, no entanto. A política internacional é sensivelmente diferente dos tempos da guerra fria, e por mais que a agenda da defesa dos direitos humanos tenha perdido espaço e liderança nas discussões multilaterais, o reconhecimento de uma ditadura militar no Brasil de hoje, não seria tarefa tão simples como o foi em 1964. E pelo menos no que tange à sua política interna, os militares estadunidenses não parecem dispostos a apoiar aventuras por parte de Trump. Como essa atitude pode refletir no comportamento da nossa alta oficialidade quando o pupilo Bolsonaro faz o mesmo tipo de pressão?
Conforme divulgado no site do G1 por Gerson Camarotti[1], oficiais da ativa viram o exemplo dos oficiais estadunidenses como “altamente positivo para nós”, embora a “crise aguda do complexo de vira-latas.” De acordo um general de quatro estrelas ouvido na reportagem, os oficiais brasileiros não chegaram a pedir desculpas, mas “falamos para que nossos interlocutores entendam que isso [golpe] não acontecerá (…) Lamentavelmente, parece ficar mais charmoso festejar o ‘mea culpa’do americano do que comentar o nosso comportamento”. Ainda segundo a reportagem, também observaram o comportamento do comandante do Exército Brasileiro general Edson Leal Pujol, que tem mantido independência face às declarações de Bolsonaro e até divulgado um vídeo defendendo o isolamento e classificando o combate ao Corona Vírus como a “batalha de nossa geração”, uma perspectiva oposta à defendida pelo presidente. Oficiais ouvidos também teriam manifestado um desconforto ante aos possíveis efeitos para a imagem das instituições face à proximidade de alguns oficiais da catastrófica administração Bolsonaro. Será a ponta de um iceberg? Impossível saber, mas não por acaso, há poucos dias da data em que este pequeno artigo é escrito, O tenente-brigadeiro-do-ar Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM) teceu duras críticas às insinuações feitas por Bolsonaro consoantes à sua disposição em intervir na política.
Informações mais precisas dependeriam de acesso aos bastidores da caserna, quase nunca disponíveis aos movimentos sociais e mesmo à pesquisas acadêmicas. Ainda assim fica a questão, quem pode colocar os militares no seu devido lugar? Olhemos então mais uma vez para os Estados Unidos. No momento em que o mundo todo acompanha as magnificas manifestações lá realizadas por conta do assassinato de um homem negro por um policial branco, justamente os presidentes do Brasil e Estados Unidos deram as mais polêmicas declarações classificando os manifestantes antirracismo e antifascismo como terroristas. Isso não é novo na história dos Estados Unidos, durante a vigência do Apartheid na África do Sul, por exemplo, o Congresso Nacional Africano – CNA (Partido de Nelson Mandela) estava na lista das organizações terroristas, enquanto a Ku Klux Klan era internamente tolerada. Essa contradição faz parte do racismo estrutural que existe nos Estados Unidos e que também existe no Brasil. Aqui, assusta a alguns o presidente da Fundação Palmares classificar o Movimento Negro de “escória maldita”, mas o contínuo assassinato de jovens negros pela polícia brasileira não despertou ainda a tempestade merecida, embora os trovões já se possam ouvir…
Fabiano Godinho Faria é Doutor em História Social para UFRJ e professor do IFRJ.
[1] Gerson Camarotti. “Desculpas de general americano deixam militares em alerta sobre risco de politização dos quartéis” disponível in: https://g1.globo.com/politica/blog/gerson-camarotti/post/2020/06/12/pedido-de-desculpas-de-general-americano-deixa-militares-brasileiros-alertas-sobre-risco-de-politizacao-dos-quarteis.ghtml, visto por último em 15/06/2020.
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