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OPRESSÕES

Keeanga-Yamahtta Taylor: “O fim da política negra”

Nossos melhores líderes são organizadores e trabalhadores – não políticos eleitos.

Keeanga-Yamahtta Taylor*. Tradução: Carolina Freitas

Jovens negros fizeram explodir a rebelião pelo assassinato grotesco de George Floyd. Agora estamos testemunhando o mais amplo movimento de protesto da história norte-americana. E, no entanto, a resposta das autoridades negras eleitas tem sido cautelosa e sem inspiração.

O Congresso do Black Caucus (1) oferece uma lista conhecida de reformas que falharam por décadas em acabar com a violência policial. Depois que os manifestantes destruíram a sede da CNN e incendiaram um carro da polícia em Atlanta, a prefeita Keisha Bottoms  disse para “irem para casa”, porque se habilitar para votar “é a mudança que precisamos”. O presidente Barack Obama também argumentou em um ensaio que a “mudança real” vem tanto do protesto quanto da votação.

Em vez disso, os organizadores de base forjaram sua liderança. Mulheres como Mary Hooks dos Sulistas em New Ground em Atlanta e Miski Noor e Kandace Montgomery, do Black Vision Collective, em Minneapolis, estiveram no centro da articulação de novas demandas por redistribuição de recursos, distante do policiamento, das prisões e dos bilionários, retomando os programas públicos. Também encontramos essa liderança entre os “trabalhadores essenciais” negros de baixos salários que desafiaram a Amazon e outras grandes empresas desde o início da pandemia. Esses organizadores e trabalhadores estão dirigindo a política negra de confronto, vista em um período anterior.

Por causa deles, estamos no fim de uma era da política negra e no início de uma nova.

A revolta nas cidades americanas, em meio a uma pandemia mortal que está matando desproporcionalmente afro-americanos, sugere que as pessoas sentem que o sistema político não pode resolver seus problemas. Muitos têm olhado para os levantes urbanos da década de 1960 para entender a situação. Esses protestos expuseram um chocante grau de racismo no norte, supostamente liberal. A principal demanda dos manifestantes era um maior controle político negro nas cidades.

A insurgência negra dos anos 1960 e a Lei dos Direitos de Voto lançaram as bases para o que foi o eixo da política eleitoral negra na década de 1970. Havia menos de 1.500 negros eleitos, portanto, entrar em cargos políticos fazia parte da luta política mais ampla para alcançar a igualdade. O jovem John Conyers Jr., que viria a ser um congressista, representando Detroit por cinco décadas, expressou o debate:

nossa própria compreensão sobre o tipo opressor de sociedade que gostaria de nos esquecer, juntamente com outros “erros” históricos, deveria dar às pessoas negras uma força única para efetuar mudanças na América. Uma infusão de negros na arena política pode fornecer a força moral da “alma” que a América perdeu ou nunca teve. …

Alguns vêem a escolha do negro americano entre se distanciar deste governo ‘sem esperança’ ou derrubar todo o sistema. Eu vejo nossas escolhas entre envolvimento político ou apatia política. A América é o campo de batalha do negro. É aqui que será decidido se faremos ou não da América o que ela diz que é.

O Congresso Black Caucus foi formado nessa época. Seus membros se autodenominavam “Consciência do Congresso” e se viam representando os interesses políticos de toda a América negra. Eles não eram “compráveis e vendáveis”, como disse uma fundadora, Shirley Chisholm, de Nova York.

Essa independência levou a confrontos, não apenas com republicanos, mas também dentro do Partido Democrata. No verão de 1972, apenas algumas semanas antes dos democratas nomearem formalmente o Senador George McGovern para presidente, o caucus escreveu a “Declaração Negra da Independência” e a “Declaração Negra de Direitos”. Estas foram inspiradas por um documento mais militante chamado “Uma Agenda Negra Nacional” que surgiu da Convenção Política Nacional Negra de Gary, Indiana, onde milhares de afro-americanos se reuniram no início daquele ano.

O Caucus ligou as lutas dos afro-americanos às dificuldades amplamente vividas pelos americanos pobres de todas as raças. A Declaração Negra de Direitos elaborou dezenas de “demandas inegociáveis”, incluindo “assistência médica gratuita a todos os pobres e quase pobres”, uma renda garantida para os desempregados, a nomeação de juízes negros e o fim imediato da Guerra do Vietnã. A declaração afirmou: “A tocha passou para uma nova geração de negros que não mais se acomodam, mas enfrentam; que não mais pedem, mas exigem; que não mais se submetem, mas lutam”.

Para ser justa, nenhum político eleito é totalmente “não comprável” ou “não vendável”. É da natureza da política negociar e se comprometer. Muitos políticos negros representavam regiões urbanas, e governar ficou mais difícil à medida que os brancos e seus dólares de impostos fugiam para os subúrbios. A década de 1970 também viu o fim do boom econômico do pós-guerra e a aceleração da desindustrialização. A mudança do destino econômico das cidades, que havia sido o motor da economia americana, tornou mais difícil para a classe política negra ascendente realizar reformas.

Cada vez mais, os negros eleitos eram vistos como administradores das crises nas comunidades negras da classe trabalhadora, em vez de liderar esforços para erradicá-las.

Como o movimento negro foi enfraquecido, a nação entrou em recessão, e os legisladores negros tornaram-se mais entrincheirados em suas posições. Com senioridade, repetidos ciclos eleitorais e sem um movimento robusto como referência de responsabilidade e direção, as autoridades negras eleitas começaram a governar como políticos típicos. Permanecer no cargo tornou-se uma prioridade e, como legisladores negros, eles geralmente tinham menos recursos. Isso significou mais arrecadação de fundos de entidades que poderiam estar em desacordo com seus constituintes.

Em 1994, o Caucus Negro do Congresso desempenhou um papel fundamental na aprovação do projeto da Lei de Controle de Crimes Violentos, que é amplamente vista como crucial na virada para o encarceramento em massa. Embora o comitê tenha pressionado por uma disposição que permitiria que os réus no corredor da morte apelassem de suas sentenças citando estatísticas para tentar mostrar que essas sentenças eram racialmente tendenciosas, Bill Clinton eliminou isso da legislação. No entanto, uma grande maioria dos membros do comitê ainda votou no projeto. Ao fazer isso, eles tiveram o apoio de Prefeitos afro-americanos em Denver, Cleveland, Detroit, Atlanta e outras grandes cidades.

Não se tratava apenas de um esgotamento. À medida que mais negros entraram na classe média, as demandas políticas mudavam. As autoridades negras eleitas estavam mais em sintonia com as necessidades de seus círculos eleitorais brancos e negros da classe média, do que com as necessidades da classe trabalhadora negra. E seus eleitores da classe média estavam mais preocupados com um aumento nos impostos sobre a propriedade do que em garantir o acesso a um “Head Start” local. (2)

Talvez a revolta em Baltimore em Abril de 2015 tenha marcado um fim simbólico para esta fase da política negra. Os negros ocupavam muitos dos principais cargos de liderança da cidade, e o primeiro presidente e procurador-geral negro do país ficava a apenas 64 quilômetros de distância. E, no entanto, essa concentração do poder político negro não foi suficiente para impedir a morte de Freddie Gray, que morreu após ser detido pela polícia de Baltimore.

Obviamente, os problemas eram muito mais profundos que a violência policial. Milhares de afro-americanos moravam em bairros onde não havia qualquer investimento. Os políticos negros não impediram o desemprego crônico ou o subfinanciamento das escolas públicas. Em vez disso, muitos deles mergulharam na estratégia de tentar atrair trabalhadores com melhores salários, tornando a pobreza tão desconfortável que os pobres simplesmente sumiram.

Esse estilo de governança pode ser visto nas cidades de todo o país e pode estar motivando a “migração reversa” dos afro-americanos para o sul em busca de melhores moradias e empregos. Milhares de negros estão saindo de Chicago a cada ano, pois a cidade se torna cada vez mais hostil à presença deles. Os maiores gastos com políticas públicas em Chicago são para a polícia, mesmo quando os residentes negros estão desesperados por moradias populares e mais investimentos em escolas públicas. A cidade, que agora é liderada por uma prefeita negra, Lori Lightfoot, ainda prioriza empreendimentos, como o Projeto Lincoln Yards de US$6 bilhões.

O sucesso eleitoral dos negros não se traduz em melhorias qualitativas na vida dos negros. Isso também erode a participação dos negros no processo político. Se o voto simplesmente reproduz variações da mesma condição geral de privação, é menos provável que os negros participem.

Agora, estamos despencando em direção a um conflito geracional e de classe. Já podemos ver as linhas de ruptura se formando. No inverno passado, os líderes afro-americanos se alinharam para endossar Joe Biden e Michael Bloomberg como os indicados democratas à presidência. O apoio a Biden não surpreende, dado seu mandato como vice-presidente de Obama, mas os elogios a Bloomberg têm gosto de oportunismo.

Bloomberg é conhecido principalmente por seu apoio total ao “stop-and-frisk” (3), que resultou em milhões de revistas policiais desnecessárias. Enquanto Bloomberg erroneamente comemorava essa tática como a razão por trás da queda do crime em Nova York, outras cidades tentaram replicá-la. É por isso que essa estratégia e o perfil racial em sua essência estavam entre os catalisadores do movimento Black Lives Matter.

Jovens eleitores negros apoiaram Bernie Sanders, mas ele não conseguiu traduzir esse apoio em votos reais. Suas políticas teriam sido mais benéficas para afro-americanos; na verdade, eles estavam mais entusiasmados com a sua proposta, o Medicare for All, do que qualquer outro grupo demográfico. Mas os eleitores negros na Carolina do Sul, após o incentivo do deputado James Clyburn, deram votos cautelosos e previsíveis para Biden e viraram a maré nas primárias.

Embora os eleitores negros mais velhos estejam paralisados ​​pelo pragmatismo porque ameaçados com o potencial segundo mandato de Donald Trump, eles também foram condicionados a aceitar o mínimo do mínimo dos representantes políticos. Ao mesmo tempo, jovens negros estão se rebelando contra o estrangulamento do status quo. Esse contexto inclui uma liderança negra obsoleta que falha regularmente em enfrentar os desafios dessa nova geração, a qual se recusa a aceitar o simbolismo da liderança negra sem suas recompensas prometidas. Políticos eleitos por negros se tornaram hábeis em mobilizar os elementos da identidade negra sem seu conteúdo político. Um caso exemplar: Muriel Bowser, prefeita de Washington, pintando as palavras “Black Lives Matter” em uma rua em direção à Casa Branca. Mas ela também propôs um aumento de US$ 45 milhões no orçamento da polícia local.

Em 2018, três mulheres negras processaram a cidade, alegando que as políticas adotadas por seus administradores serviam para “atrair profissionais mais jovens e mais abastados” e “discriminar afro-americanos pobres e da classe trabalhadora” que viviam na cidade há gerações. Essas manifestantes, como a prefeita, são mulheres negras, mas suas diferentes posições de classe e acesso ao poder impediram fundamentalmente as possibilidades de solidariedade.

O ataque de Trump a Bowser, chamando-a de “incompetente”, colocou os eleitores negros em uma situação difícil. Eles querem defender as autoridades afro-americanas de acusações racistas e sexistas, ao mesmo tempo em que desafiam as políticas dessas autoridades. Para as mulheres negras pobres em Washington, a questão não é incompetência; é a concepção de desenvolvimento de Bowser, que deixou os negros da classe trabalhadora para trás.

Isso não significa que a representação não importa mais. Ela importa. Mas não podemos mais assumir que a identidade compartilhada significa um compromisso compartilhado com as estratégias necessárias para melhorar a vida da grande maioria dos negros. As tensões de classe entre os afro-americanos produziram novos problemas que o romance da solidariedade racial simplesmente não pôde superar.

Hoje, há mais negros eleitos do que nunca, mas isso não tem sido suficiente para conter o coronavírus, que tem devastado as comunidades negras. Isso também não ajudou a diminuir o abuso e a violência da polícia. Para a maioria dos afro-americanos, as coisas mudaram, mas nem perto do suficiente. Enquanto não há dúvida de que o Partido Republicano é uma alternativa muito pior, na discussão tortuosa sobre males maiores ou menores, raramente o debate se volta para como os afro-americanos se libertarão.

A representação nos salões do poder claramente funcionou para alguns, mas devemos falar sobre aqueles para os quais não funcionou. Não vimos, em décadas, protestos com a escala ou o alcance daqueles que foram desencadeados pelo assassinato de George Floyd. Novos, jovens, líderes negros com os do Movimento por Vidas Negras agora estão surgindo, líderes livres de contradições do passado e sustentados por sua ligação com a agitação nas ruas.

* Keeanga-Yamahtta Taylor é pesquisadora, escritora e ativista americana. É professora assistente de estudos afro-americanos na Universidade de Princeton e autora do livro From #BlackLivesMatter to Black Liberation. Originalmente publicado no The New York Times:

NOTAS

1 – Espécie de conselho de representantes parlamentares negros no Congresso Nacional nos Estados Unidos, que reúne democratas e republicanos para o debate sobre políticas para a população negra. 

2 – Head Start é um programa do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos que oferece educação, serviços de saúde e nutrição às crianças de baixa renda e suas famílias.

3 – Estratégia institucional da Polícia de Nova York de revistar suspeitos “aleatórios” em busca de crimes.