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Colunas

Antirracismo nas ruas em Porto Alegre: um convite à reflexão

Matheus Gomes

Deputado estadual pelo PSOL no Rio Grande do Sul, Matheus Gomes é historiador, servidor do IBGE e ativista do movimento social há mais de 10 anos. Sua coluna mostra a visão de um jovem negro e marxista sobre temas da política nacional e internacional, especialmente dos povos da diáspora africana.

Convocado com a pauta antirracista, o protesto desse domingo foi o maior das últimas semanas em Porto Alegre. Mas, também foi diferente por que reuniu milhares de jovens negros e de periferia, que se deslocaram até a região central para revidar contra o racismo de alta intensidade vivenciado no extremo sul do Brasil.

Em nossa cidade, o povo preto é minoria – menos de um terço da população – e vive concentrado nas periferias desde que a elite decidiu expulsar paulatinamente as famílias pretas e pobres dos bairros centrais, processo iniciado na década de 1950 com o asqueroso projeto “Remover para Promover”. O último Censo do IBGE nos mostra que 39,2% da população negra vive em apenas seis bairros: Restinga, Sarandi, Rubem Berta, Santa Tereza, Lomba do Pinheiro e Mário Quintana. Esses mesmos territórios concentram quase a metade das residências onde as pessoas ganham até meio salário-mínimo. Outro indicador do IBGE, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, mostra que a capital gaúcha está entre as três metrópoles brasileiras com piores condições de vida pra negras e negros. Situação bem diferente a dos entornos do Parcão, onde menos de 1% da população é negra e a média salarial é de quase 14 salários-mínimos per capita. Talvez isso explique a tolerância com a realização de reuniões cada vez menores de fascistas como a que ocorreu nesse domingo.

Ontem, muitos dos presentes na manifestação vinham desses e outros bairros das periferias das zonas sul, leste e norte. Elas e eles se organizaram através de grupos nas redes sociais, se articularam entre amigos e organizaram suas parcerias, confeccionaram cartazes, faixas, alguns fizeram até camisetas. Muitos foram ao Centro protestar pela primeira vez e prometem retornar em breve. A tentativa de marchar em fileiras, a exemplo das manifestações dos Sem-Terra, foi uma demonstração de preocupação sanitária muito importante. Felizmente, deu tudo certo, o que tende a aproximar mais gente nas próximas ações. A organização do movimento impediu que provocadores e infiltrados desvirtuassem o nosso trajeto, nenhuma cortina de fumaça foi erguida e a pauta continua bastante objetiva: as vidas negras importam, queremos o fim da violência policial racista.

A forma da manifestação foi diferente das tradicionais marchas do movimento negro. Não vieram os pesados carros de som carregados de dezenas de falas, tampouco as disputas fratricidas entre movimentos por um melhor lugar nos cliques da marcha. É óbvio que a juvenilidade e a espontaneidade que vimos ontem deve ser equilibrada com as experiências dos coletivos e organizações negras, pois ninguém precisa assumir a árdua tarefa de reinventar a antiga roda das manifestações de rua. Mas, por outro lado, o movimento também deve se oxigenar com esse espírito.

Até por que, falemos a verdade, o ato também pode ser interpretado como uma expressão da intensa conectividade desses tempos pandêmicos. A vasta cobertura das mídias tradicionais e alternativas e as diárias transmissões ao vivo nas redes sociais aproximam os nossos pretos da luta nos EUA. Lá, inicialmente, a forma das marchas se deu através de colunas pouco coesas, dispersas por diferentes pontos da cidade, o que gerava um efeito parecido com o que víamos nos primeiros momentos de Junho de 2013, quando impôs-se a tática da “revolta popular”. Também vimos marchas silenciosas, outras com distanciamento social, enfim, diferentes formatos, a marca da criatividade que acompanha momentos históricos. Nesse sentido, se aqui temos nossas especificidades e transmutar realidades não serve, ao menos o espírito criativo pode ser absorvido.

Já o conteúdo do protesto precisa ser observado com atenção. Por mais que haja consenso em gritar contra o fascista que desgoverna o país, não há conexão mecânica com a bandeira antifascista. Isso é assim por que existe desconfiança sobre a capacidade da esquerda tradicional – majoritariamente branca – compreender os sentidos do novo momento da luta antirracista pelo mundo. De fato, não há motivos para darmos qualquer cheque em branco. Nesse sentido, outro momento importante do domingo foi o lançamento do manifesto “Com racismo não há democracia”, através da Coalização Negra por Direitos. Mesmo que o Brasil carregue a marca de quase quatro séculos de escravidão, a racialização dos programas e projetos políticos foi apenas um subtema nos diferentes ciclos históricos da esquerda brasileira. Um exemplo é o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, onde garantiu-se direitos universais à moda da democracia racial, presumindo-se que seríamos todos iguais perante a lei. O pior dos resultados desse processo foi a permanência da violenta ação das PM’s e o encarceramento em massa da comunidade negra. Aliás, a inação da esquerda que governou em reformar por completo a estrutura militarizada das polícias custou um preço alto na ascensão fascista.

A verdade é que seguimos “por nossa conta em risco”, como dizia o Movimento Negro Unificado décadas atrás, no entanto, a conjuntura oferece uma janela de oportunidade com o amplo questionamento sobre o lugar dos povos não-negros na luta antirracista. A unidade entre antirracismo e antifascismo seria óbvia se não vivêssemos no país da falsa democracia racial, é correto o movimento negro se mover na dialética permanente entre unidade-enfrentamento. Aos não-negros, indico que conversem sobre o tema entre si, discutam em suas organizações, cheguem a conclusões. Tomem a iniciativa, há vasto material disponível nas redes pra subsidiá-los. Provem-se: o desafio da unidade está nas mãos de vocês! Sinto até que já faço demais ao dar esses conselhos, pois, a verdade é que há muito falamos óbvio: não é a luta antirracista que divide o movimento, ou não vivemos num país de maioria negra? A construção de uma maioria social e de uma ação de massas contundente contra Bolsonaro está umbilicalmente ligada a mobilização negra. Nosso povo parece estar entendendo isso cada vez mais e continuará se movendo nas ruas, nos bairros, nas campanhas de solidariedade e nas inúmeras iniciativas de auto-organização que travamos diariamente em nossa luta por sobrevivência. E o restante? Fica aqui o convite à reflexão!

Publicado originalmente em Sul 21