“A única maneira de encontrar os limites do possível é ir além deles para o impossível”
Arthur C. Clark
Parte I: Nas telas, uma janela para o futuro
Numa dessas noites dominadas pela insônia, revisitei dois clássicos do cinema que há muito não assistia. O primeiro deles, 2001: Uma odisseia no espaço, obra-prima de Stanley Kubrick (O iluminado, Laranja Mecânica) feita em 1968. A Odisseia de 2001 praticamente refundou o sci-fi, estabelecendo um antes e depois entre os filmes desse gênero. O segundo, 2010: O ano que faremos contato, dirigido por Peter Hyams foi lançado em 1984 e, esquecido por muitos, também tem suas qualidades. Assim como seu irmão lançado 16 anos antes, é baseado na série de contos escritos ainda nos anos 40, The Sentinel of Eternity, escrita pelo britânico Arthur C. Clark.
O curioso de rever esses filmes é que ambos, assim como outros que seguiram seu legado nos anos 60 e 70, tinham uma visão otimista sobre o futuro. 2001, 2010, Jornadas nas estrelas, todos representaram o século XXI como uma época de superação dos conflitos e um novo salto da humanidade, embalada por um exponencial desenvolvimento tecnológico. O primeiro contato mudou a História da humanidade na saga de Jornada nas Estrelas. Se você já acompanhou as aventuras de Capitão Kirk, da Tenente Uhura, ou do Almirante Picard, deve ter percebido que naquela Terra já não existiam mais fronteiras nacionais e o capitalismo foi preterido por um novo e superior modo de organização da produção e reprodução social.
Já na saga de Odisseia, em 2010: o ano em que faremos contato, o surgimento do segundo sol, no último ato do filme, foi uma representação simbólica de recomeço, do renascimento da humanidade. Tão metafórico quanto o segundo sol, é o discurso final do Doutor Heywood Floyd, personagem protagonista do filme, que em carta diz as seguintes palavras dirigindo-se ao seu filho: “Seus filhos nascerão num mundo de dois sóis, eles nunca conhecerão o céu sem eles. Pode dizer a eles: Se lembra de quando existia um céu escuro, sem nenhuma estrela brilhante e as pessoas temiam a noite?”
Vale lembrar que esses filmes citados foram produzidos durante a Guerra Fria, em meio à incerteza se o mundo caminharia ou não para uma III guerra mundial de proporções apocalípticas. Acredito que diretores e roteiristas, ao trazerem para as telas do cinema uma mensagem de otimismo, de confiança na capacidade humana de vencer os conflitos, ao mesmo tempo expressaram uma crítica aos problemas do seu tempo e uma aposta esperançosa na marcha da História. Uma ode ao futuro, onde a humanidade não mais destruiria suas próprias forças produtivas, mas, livrando-as de todas as amarras, liberaria uma força colossal de desenvolvimento capaz de “audaciosamente” levá-la onde jamais se imaginou.
Parte II: No livro do século XX, permanecemos atados ao epílogo
Se concordarmos com o célebre historiador Hobsbawm, autor do livro “A era dos extremos: O breve século XX”, o século XX teve seu fim em 1991. O problema é que passados quase 30 anos ainda não conseguimos iniciar o século XXI. Estamos nas páginas de uma espécie de epílogo, presos num “umbral” que nos impede de seguir em frente, e que se chama capitalismo.
Nestes últimos 30 anos o capitalismo nos mergulhou num caos tamanho, que a questão ambiental deixou de ser coisa do futuro distante e se tornou um problema da nossa geração. A ação humana regida pela lógica predatória do capital está provocando um novo e mais radical ciclo de extinção em massa de espécies da História do planeta. Logo, se nada for feito, tigres, leões, elefantes e uma longa lista de aves, peixes e mamíferos só poderão ser conhecidos por meio de museus. Outro efeito colateral, dentre tantos, são os novos vírus capazes de gerar pandemias, como a Covid-19, que tendem a se tornar cada vez mais frequentes justamente pelo desequilíbrio ambiental provocado pela insaciável sede capitalista.
E já que o assunto é presente, passado, futuro e desenvolvimento. O que dizer do fato de que para enfrentar a pandemia do coronavírus a humanidade, em pleno 2020, precisou recorrer a prática medieval da quarentena? E o que dizer da principal potência do mundo, os EUA, com seus 113 mil mortos por que tem um sistema de saúde totalmente privatizado incapaz de salvar vidas do seu povo? Impossível também não citar a reafirmação cada vez mais voraz da violência como forma de controle social, através de um genocídio estruturado e levado à cabo pelos Estados contra os negros e o conjunto dos povos considerados não brancos? Inúmeras são as provas que confessam a aguda contradição entre produção social coletiva gerando cada vez mais riqueza, e a apropriação privada dessa riqueza gerando cada vez mais miséria.
Parte III: O crepúsculo distópico do capitalismo
Voltando às telas do cinema, antes mesmo da Covid-19 bater na nossa porta, ao invés de esperança no futuro, os roteiristas e diretores de agora já transmitiam na tela as angústias do nosso tempo. O futuro no cinema se tornou distópico, dominado por regimes totalitários como em Jogos vorazes, ou onde o homem torna-se escravo de suas criações, como em Matrix ou na série Black Mirror. Isso quando não é apocalíptico, como nos filmes de zumbis e invasão alienígena. Não deixa de ser um reflexo no cinema e na assim chamada cultura pop de uma marca desse novo século que insiste em não começar: Despidas da ilusão de que o capitalismo nos levará aos “Elíseos na terra” e a conquista sideral, as pessoas agora, como uma vez disse um amigo, são convencidas a acreditar ser mais fácil o mundo acabar, do que mudarmos de sistema.
Já parou para pensar nisso? É mais ou menos assim: Chuva de meteoros? Ok. Discos voadores destruindo com raios laser grandes cidades em um piscar de olhos? Ok. Vírus Z e apocalipse zumbi? Ok, ok e ok. Mas, e um novo sistema alternativo ao capitalismo? Aí complica. É viagem, anacronismo! Para dizer o mínimo. O problema desse ceticismo é que quando as utopias se vão, o que resta é só um horizonte carregando de cinzas por onde a luz do sol não consegue passar.
Parte IV: O século da Odisseia da sobrevivência
É preciso voltar a ter esperança. A História não acabou, como pregaram com soberba ideólogos do capital como Francis Fukuyama. Enquanto nós estivermos aqui haverá História, e esta é testemunha de que ao longo do tempo, mesmo nos momentos mais difíceis, nós sempre encontramos uma saída. A partir da resistência negra no Brasil, EUA, Cuba, Haiti e dos dois lados do Atlântico, vencemos a escravidão. No século XX vencemos o nazifascismo e Hitler morreu acuado num buraco, enquanto Mussolini terminou dependurado de ponta-cabeça. Nos últimos dias, estátuas de falsos heróis do passado, escravocratas e genocidas, foram lançadas ao rio em cidades na Europa, enquanto um levante negro de centenas de milhares se espalhou no centro do império dos EUA. No Brasil e na África, a despeito dos governos, nosso povo se auto-organiza como pode para sobreviver a pandemia mais cruel da nossa História. São fechos de luz em meio a névoa cinza.
Não há outro jeito, não existe plano B. A Terra é o único lugar, em trilhões de bilhões de quilômetros no Universo, com água em estado líquido, temperatura adequada, oxigênio e atmosfera ideal para formas de vida baseadas em carbono como a nossa. Essa é a nossa casa, ela pertence a nós e não a um punhado de capitalistas que representam menos de 1% dessa imensa e singular potência chamada humanidade.
Só existirá um futuro para ser vivido quando antes, no presente, formos capazes de livrar a nós e ao nosso planeta dessa classe de parasitas e sabotadores das nossas potencialidades. Varrer os escombros desse presente distópico, essa é a verdadeira odisseia que o século XXI nos guarda como tarefa.
“As relações burguesas de produção são a última forma antagônica do processo social de produção. Antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que provém das condições sociais de vida dos indivíduos. As forças produtivas, porém, que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para solução desse antagonismo. Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-história da sociedade humana”
Karl Marx, Contribuição para crítica da economia política
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