Milhares foram às ruas no domingo (7) em dez estados e no Distrito Federal. Apesar dos limites impostos pela pandemia, ficou demonstrado que as ruas não são monopólio dos bolsonaristas. Os atos que ocorreram em dezenas de cidades, organizados por torcidas, movimentos sociais e de luta contra as opressões, e que contaram com o apoio de partidos de esquerda (PSOL, PT, PSTU, PCB e UP), levantaram as bandeiras do Fora Bolsonaro, do antirracismo e do antifascismo. Importa sublinhar que os atos bolsonaristas foram muito menores do que os da esquerda, reunindo poucas centenas de pessoas.
LEA EN ESPAÑOL La lucha vuelve a las calles: derrocar a Bolsonaro
As manifestações contra Bolsonaro tiveram significativa presença de negros, de jovens periféricos, mulheres e trabalhadores em geral. Os manifestantes usaram máscaras, houve preocupação em manter o distanciamento entre os presentes e evitou-se a ação de infiltrados e provocadores.
Certamente, se não fossem as restrições exigidas pela pandemia — por exemplo, os que são ou moram com pessoas do grupo de risco foram orientados a não saírem de casa —, os atos seriam muito maiores. De todo modo, os milhares que puderam ir, corajosamente, representaram a opinião de dezenas de milhões de brasileiros. Vale destacar que as manifestações desse domingo conectaram o Brasil à uma grande onda de lutas contra o racismo que se espalha pelo mundo, impulsionada pelo histórico levante antirracista nos Estados Unidos.
Dito isso, consideramos que os atos foram uma inequívoca vitória nas ruas, pois fortalecem a luta contra Bolsonaro e seu projeto fascista e racista. Estavam certos os que, como Guilherme Boulos e o MTST, mantiveram o chamado à organização das manifestações. Os atos confirmaram que uma nova geração jovem queria e iria sair às ruas, com a esquerda organizada ou sem ela. Importa registar também que, em algumas capitais e cidades, como Belém, Fortaleza e São Carlos, a repressão impediu a realização das manifestações, sinalizando até que ponto as liberdades democráticas já estão comprometidas.
Mantendo e reforçando os cuidados sanitários, consideramos que é preciso dar continuidade e ampliar os atos. Nesse momento, a luta nas ruas para derrubar um governo genocida é também um trabalho essencial. Afinal, para salvar vidas e as garantias democráticas, a condição primeira é remover o fascista do poder.
Ato em Belo Horizonte (MG). Foto Pablo Henrique
A necessidade da unidade democrática e a armadilha da frente ampla com a direita
O governo Bolsonaro representa a mais grave ameaça ao regime liberal-democrático brasileiro, desde a sua instalação ao final da ditadura empresarial-militar. Herdeiro das tradições mais macabras daquela ditadura, Bolsonaro jamais fingiu se ater ao figurino democrático. Desde seus mandatos como parlamentar, sua carreira política sempre se sustentou na apologia da tortura, na defesa de golpes reacionários, no ódio à esquerda e aos setores mais oprimidos da sociedade, e, em síntese, na propaganda de ideais neofascistas.
Ao longo da campanha eleitoral de 2018 e do primeiro ano de seu mandato presidencial, entretanto, parte significativa da população brasileira tendeu a minimizar os perigos inerentes a tais posições. Tal quadro experimentou uma rápida reversão a partir do momento em que a pandemia de Covid-19 se instalou no país. Adotando uma postura negacionista e genocida em relação à doença, Bolsonaro se opôs às medidas de isolamento social, o que levou ao aumento considerável da rejeição popular ao seu governo.
Como as pesquisas de opinião revelam, existe uma maioria social contrária à permanência de Bolsonaro na presidência, por entender que a sua política significa a defesa do lucro do empresariado em detrimento das vidas da classe trabalhadora. O problema central da conjuntura reside, portanto, em descobrir a maneira mais eficaz de transformar essa oposição difusa em um movimento capaz de derrotar Bolsonaro e encerrar o seu mandato.
Para derrotar o projeto neofascista, é muito importante a conformação da mais ampla unidade democrática — como todos setores sociais e políticos dispostos à ação unificada — em torno de pontos concretos para por fim ao governo de Jair Bolsonaro. O denominador comum para a construção dessa unidade democrática ampla deve ser, nada mais nada menos, que a defesa da remoção da ameaça ditatorial, ou seja, a derrubada do governo.
Porém, a iniciativa de maior repercussão até agora, o Manifesto “Estamos Juntos”, não se coloca pelo fim do governo Bolsonaro, mesmo com todos crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente e as crescentes e explícitas ameaças golpistas vindas do Palácio do Planalto. O Estamos Juntos se limita à uma defesa genérica da democracia e da lei.
Há vários perigos para a esquerda nessa iniciativa. O primeiro deles é a ausência de clareza quanto às tarefas objetivas de curto prazo. Partindo de uma condenação abstrata do radicalismo, o texto não nomeia os agentes políticos efetivamente responsáveis pelas ameaças postas à democracia brasileira.
O resultado concreto dessa avaliação espectral da conjuntura é a ausência de propostas de atuação: não há, sequer, uma defesa da necessidade do impeachment de Bolsonaro, que sequer é mencionado no texto. Tal comedimento resulta dos temores de setores empresariais em se engajarem em uma disputa mais dura, cuja dinâmica poderia escapar de seu controle. A aposta reside, portanto, nos apelos à moderação e na submissão ao calendário eleitoral, aguardando o pleito de 2022.
O segundo diz respeito à diluição do programa dos trabalhadores em meio a um arco tão amplo de alianças. Considerando que o empresariado e os que vivem do seu próprio trabalho constituem classes com interesses antagônicos, nenhuma aliança duradoura entre ambas é viável sem que uma delas abra mão dos elementos mais fundamentais de seu programa. Uma vez que parte significativa dos interesses empresariais já vem sendo atendida pelo governo Bolsonaro e seu programa de contrarreformas neoliberais, a atração maciça de setores da burguesia a uma aliança interclassista só se tornaria possível se fosse garantida a preservação de tais interesses, o que de resto significaria para as forças da classe trabalhadora capitular a um programa que ataca seus direitos e condições mais básicas de vida.
Dessa maneira, a política da Frente Ampla, que é justificada pela necessidade de ampliar o número de agentes políticos engajados em prol de determinados objetivos para facilitar a sua concretização, termina por se mostrar ineficaz para atingir os objetivos da classe trabalhadora tanto de curto, quanto de longo prazo. Por um lado, não age decididamente para derrubar o governo neofascista de plantão. Por outro lado, não ataca as raízes do fenômeno bolsonarista, preservando os alicerces da sociedade capitalista em crise. No afã de produzir uma unidade entre classes, termina por colocar os trabalhadores em uma posição de mero vagão a seguir o ritmo ditado pela locomotiva burguesa.
Devemos lutar, sim, pela construção da mais ampla unidade democrática, incluindo todos setores burgueses e da direita. Porém, essa unidade ampla, por um lado, deve ser dar em torno de posições concretas — a defesa da derrubada do governo Bolsonaro e/ou contra medidas autoritárias do mesmo —, por outro, não pode se confundir com uma aliança estável com setores empresariais e da direita, sob pena da esquerda sucumbir à direção e ao programa da oposição burguesa.
Trabalhadores e oprimidos em Frente Única devem liderar a luta contra Bolsonaro
Diante desse cenário, a alternativa estratégica na luta contra Bolsonaro e o neofascismo passa pela construção de uma Frente Única dos partidos (PSOL, PCB, PT, PCdoB, PSTU, PCO, UP), sindicatos, associações de moradores, coletivos culturais, feministas, LGTB’s e de negras/os e demais entidades e movimentos dos trabalhadores e oprimidos (como MST, MTST, UNE etc.). Afinal, os principais atingidos pelas ações do governo Bolsonaro (retirada de direitos, repressão política, exposição à Covid-19, entre outras) são os únicos que possuem condições de enfrentar de maneira inteiramente consequente o neofascismo.
Com a independência política e organizativa que a Frente Única garante a tais setores, é possível dar dois passos fundamentais e complementares. De um lado, deslocar o centro da luta política e social do palco institucional, onde STF, Congresso, Procuradoria da República e outras instituições já se mostraram excessivamente tolerantes, quando não abertamente cúmplices, com os movimentos de Bolsonaro. Em seu lugar, assumem o protagonismo atos de rua, greves e demais formas de ação direta autônoma dos trabalhadores e oprimidos, as quais devem ser cuidadosamente planejadas, especialmente em meio à pandemia.
De outro lado, a independência política se expressa, também, no âmbito programático. Sem a pressão exercida por alianças estáveis com a burguesia, é possível para a Frente Única questionar elementos do capitalismo brasileiro, cuja defesa pelo governo Bolsonaro explica em grande parte a sua resiliência. Muito além de uma abstração, esse ponto adquire grande importância diante da seguinte questão: como obter o apoio ativo da maioria da população trabalhadora e oprimida, que é essencial para uma vitória política sobre Bolsonaro? Ao conjugar a luta contra o governo à defesa das condições de vida e trabalho e ao definitivo rechaço às formas de opressão que compõem estruturalmente a exploração e a dominação de classes, a política da Frente Única aponta para a resolução dos problemas que afetam o cotidiano dessa maioria, tornando mais palpável a importância do combate a Bolsonaro.
Evidentemente, no interior da Frente Única não haverá total acordo entre todas as forças e organizações aglutinadas. Entretanto, viabilizando a atuação comum em torno do patamar mínimo consensual, não apenas haverá melhores condições para lutar pela efetivação desse patamar, como, também, estará colocada a possibilidade de uma discussão programática mais profunda, possibilitando a ampliação da audiência das ideias socialistas.
Nitidez estratégica e unidade possível
O debate entre Frente Ampla com a direita e Frente Única dos trabalhadores e oprimidos sintetiza duas estratégias distintas para enfrentar o governo Bolsonaro e o neofascismo no Brasil. São duas lógicas de ação política que sustentam distintos arcos de alianças e posições programáticas. Entretanto, na realidade das lutas políticas, essas duas estratégias podem se materializar com diferentes nomes. Mais importante do que alimentar disputas em torno de nomenclaturas, é capturar o sentido político de cada iniciativa concreta.
Tendo clareza de tais distinções, é possível, inclusive, recolocar a questão das alianças com setores da burguesia em outro registro. Sempre que houver a possibilidade de acordos pontuais, com escopo claramente delimitado, para isolar e enfraquecer Bolsonaro e o neofascismo, os trabalhadores e oprimidos podem atuar em conjunto com a oposição burguesa. Essa atuação conjunta, por sua vez, deve ser inseparável da defesa dos interesses dos trabalhadores e burgueses frente a totalidade da burguesia e da preparação das condições de luta futuras. Assim, se a Frente Ampla significa, na prática, a subordinação dos trabalhadores e oprimidos à burguesia, a Frente Única possibilita a construção de ações unitárias sem recuo programático ou abandono dos nossos métodos de luta.
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