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BRASIL

O Plano São Paulo e a flexibilização da quarentena: a prática pseudocientífica em tempos de pandemia

Após uma falsa e momentânea dicotomia entre Jair Bolsonaro e João Dória a respeito da aplicação da quarentena como combate à pandemia da covid-19, o poder político do capital mostra que para a burguesia e seus representantes o critério científico pouco importa, seja para recomendar a hidroxicloroquina, seja para flexibilizar o isolamento social.

Andrius Dominiquini
Divulgação Governo do Estado de SP / Fotos Públicas

A batalha contra a pandemia da doença covid-19 aparenta estar distante de um final vitorioso para a humanidade. Com quase 6 milhões de casos confirmados pelo mundo e aproximadamente 365 mil mortes, os esforços mundiais para conter a doença enfrentam além da pandemia o criminoso negacionismo científico que certos setores adotam, geralmente vinculados a tendências de extrema-direita. Em algum lugar do espectro entre ações movidas pela investigação científica e o total negacionismo dessa,  estão aqueles que alteram seu posicionamento conforme a força do capital assim o exige. No Brasil, a contaminação pela doença está longe de ser controlada, e ainda assim, o discurso quanto a flexibilização da quarentena vem ganhando força.

A situação é grave, com 614 mil casos confirmados e quase 35 mil mortes, o país enfrenta em diversos municípios o colapso do sistema de saúde. Em São Paulo, estado com maior número de contágio acumulado contando com  aproximadamente 134 mil casos e 8.84 mil mortes, a taxa de ocupação de leitos de UTI é de 75,1% no estado e 83,1% na Grande São Paulo, conforme dados de 06/06 [1]. Tais números têm diminuído nas últimas semanas, devido à entrega de novos leitos hospitalares. No fim de semana do dia 24/05 a taxa de ocupação da Grande São Paulo chegou aos 90%. Segundo dados oficiais [2], o estado de São Paulo , no mês de maio, oscilou sua taxa de isolamento por volta de 50%, com valores menores ao mês de abril. 

Todavia, nos últimos dias, foi anunciado pelo Governo do Estado de São Paulo o programa Plano SP, que ficou conhecido também como “quarentena inteligente”. O programa é um modelo de flexibilização da quarentena, que toma como base o argumento de que no estado de São Paulo a curva de contágio do covid-19 já está sendo achatada. O site do programa reúne em uma apresentação os argumentos para defender tal medida, inclusive  modelo de classificação das regiões do estado em 5 faixas, que variam entre abertura total seguindo protocolos de segurança e quarentena. Os critérios para classificar as regiões se dividem em dois, um sobre a capacidade do sistema de saúde – Taxa de ocupação de leitos UTI e número de leitos de UTI disponíveis para cada 100 mil habitantes- e o outro sobre o cenário da evolução da pandemia – números de casos, internações e óbitos. A ideia é que conforme cada região melhore em  tais índices, menor será o nível de rigor da quarentena que poderá adotar.

Todavia, há alguns pontos que são contraditórios ao suposto embasamento científico que há no programa. Primeiramente, no site do Plano SP, nada se especifica sobre a necessidade de aumentar o número de testes em cada uma dessas regiões. A única menção à testagem é apenas a citação de que 3.3 milhões de testes foram comprados, mas nada se fala sobre como tais testes serão distribuídos e qual o mínimo de testes que uma região deve possuir para poder subir no ranking de flexibilização da quarentena. Ou seja, no programa, a subnotificação não é punida e nem combatida. Considerando que a classificação das regiões se baseia em números que dependem diretamente da quantia de testes realizadas (número de casos, internações, óbitos), há um furo gigantesco no programa. Se uma região não realiza um mínimo aceitável destes, tais dados podem ser facilmente subestimados, como já se sabe que ocorre no Brasil [3]. Para além disso, o site do programa do governo do estado sustenta alguns pontos no maior estilo de meias verdades que se tornam mentiras completas. Entre eles, está o argumento de que São Paulo já realiza o tão comentado achatamento da curva. De fato, a partir do momento que se iniciou a quarentena, a curva vêm sendo achatada continuamente, uma vez que há esforços para reduzir a contaminação pelo Sars-COV-2. Todavia, isso não quer dizer que chegamos a um momento de estabilização do número de contágios,  muito menos de declínio desses. Apenas quer dizer que o cenário seria muito pior caso não tivéssemos adotado nenhuma medida de controle pandêmico. Absolutamente nada impede a inversão dessa tendência caso seja flexibilizada a quarentena. O argumento do programa é que o número  de novos casos confirmados por dia já não cresce tanto como era em meses como março, quando tal número dobrava praticamente a cada 4 dias, fator que é representado pela inclinação da curva de contágio total, o que por si só é verdade. Porém, isso não sustenta a possibilidade de flexibilização, ainda mais se considerarmos a subnotificação de casos, que novamente, é um grande problema para a argumentação do programa. Ainda que fosse verdade que é seguro reduzir os níveis de isolamento com a curva de contágios acumulados ainda em ascensão (o que absolutamente não é), o argumento não seria válido em regiões com subnotificação.

A Organização Mundial da Saúde publicou, no dia 14 de abril, um documento com atualizações nas estratégias do combate à pandemia da covid-19 [4]. Neste, é defendido que o melhor a se fazer enquanto não há uma vacina para a doença é realizar esforços para mover um país da categoria de transmissão local para um estado de transmissão controlada baixa ou nula. E para isso ser realizado, isso é, para se considerar que uma região está em um estado mais seguro no controle da pandemia, são levantados seis pontos que devem ser cumpridos  como meta pelas autoridades locais (nacionais ou subnacionais) para fazer tal consideração. Aqui, traduzimos o trecho que apresenta esses pontos [7] :

1- A transmissão da COVID-19 está contida a um grau de casos agregados e casos esporádicos, todos importados ou provenientes de contatos conhecidos, e a incidência de novos casos deve ser mantida a um nível passível de ser gerenciado pelo sistema de saúde com uma capacidade substancial de assistência clínica de reserva.

2- Sistemas de saúde e instalações de saúde pública suficientes estão em funcionamento a fim de possibilitar a transição fundamental entre detectar e tratar majoritariamente casos graves para detectar e isolar todos os casos, independente do grau de severidade ou origem:

Detecção: casos suspeitos devem ser detectados rapidamente após o surgimento de sintomas, através da procura ativa por casos, apresentação espontânea de pessoas contaminadas às autoridades, triagem de indivíduos em entradas de locais públicos e outras abordagens.
Testagem: todos os casos suspeitos devem obter resultados dentro de 24h após sua identificação e amostragem, e devem haver recursos suficientes para verificar e confirmar o estado livre de vírus de pacientes que se recuperaram.

Isolamento: todos os casos confirmados podem ser efetivamente isolados (em hospitais e/ou acomodações destinadas a casos moderados e leves, ou em casa, providos de assistência suficiente, caso uma acomodação especificada não esteja disponível) imediatamente e até não serem mais potencialmente infecciosos.
Quarentena: todos os contatos próximos devem ser rastreados, colocados em quarentena e monitorados por 14 dias, em acomodações especializadas ou em casa. O monitoramento e assistência podem ser feitos através de uma combinação entre visitação por agentes comunitários voluntários, ligações telefônicas e mensagens de texto.

3-O risco de emergência de surtos em cenários de alta vulnerabilidade são minimizados, o que requer que todos os principais vetores e/ou fatores amplificadores da transmissão  de COVID-19 sejam identificados, e medidas apropriadas sejam adotadas para minimizar o risco de novos surtos e infecções dentro do ambiente hospitalar (por exemplo: prevenção e controle de propagação apropriados, incluindo triagem, e disponibilização de equipamento de proteção individual em estabelecimentos de saúde e instalações de assistência domiciliar).

4-Medidas preventivas em locais de trabalho são estabelecidas buscando a redução de riscos, incluindo diretrizes e recursos apropriados com o objetivo de promover e possibilitar a implementação medidas de prevenção da COVID-19 que seguem os padrões internacionais, em termos de distanciamento físico, higienização das mãos,  comportamento respiratório adequado e, potencialmente, monitoramento de temperatura.

5-Risco de surgimento de casos importados controlado através da análise de origens prováveis e potenciais rotas de importação, e medidas são implementadas para promover rápida detecção e manejo de casos suspeitos entre viajantes (incluindo meios para colocar indivíduos provindos  de áreas com transmissão comunitária em quarentena).

6-Comunidades estão integralmente engajadas e compreendem que a transição implica em um deslocamento significativo, da detecção e tratamento somente de casos graves para a detecção e isolamento de todos os casos, que medidas comportamentais de prevenção devem ser mantidas, e que todos os indivíduos têm um papel fundamental em possibilitar e, em alguns casos, implementar novas medidas de controle.

É evidente que muitos estados que estão tentando flexibilizar a quarentena nem chega perto de cumprir tais requisitos, principalmente aqueles citados nos pontos número 6 e 1 que diz sobre detectar e tratar a maioria dos casos da doença. Em São paulo, por exemplo, sequer conseguimos apenas detectar a maioria dos casos.

Dentro das ciências, principalmente nas exatas e biológicas, há um velho termo utilizado para denominar práticas que não possuem respaldo científico, porém, distorcem os conceitos deste campo para subsidiar uma narrativa tentando utilizar a autoridade que a ciência possui para endossá-la e facilitar a adesão a um público. O termo utilizado para isso é pseudocientífico, justamente pelo fato de tais práticas usarem o mérito científico para justificar uma ideia que não passou pelo próprio crivo científico. Ou seja, a prática aproveita-se de maneira falsa do discurso científico, sem passar pelos esforços basilares que o constituem. Torna-se então possível, mesmo que de forma intelectualmente desonesta, disputar a consciência pública com ideias que não possuem respaldo científico algum.

Tal prática é utilizada almejando diversos fins, desde ganhos pessoais individuais, como charlatões que tentam impor seu nome com algum falso tratamento milagroso – como alguns anos atrás no Brasil aconteceu com a infame “pílula do câncer” – , como também para a manipulação das massas. Não é difícil encontrar temas, recentes e antigos, que foram apresentados e sustentados perante ao público com bases extremamente pseudocientíficas: Todas as propostas de reforma da previdência das últimas décadas, controle compulsório dos gastos públicos pela PEC 241, extração de nióbio como salvação da economia brasileira, uso de hidroxicloroquina para tratar a covid-19, etc. E agora, adicionamos mais uma a essa lista, a flexibilização da quarentena em pleno crescimento da curva de contágio.

O que é importante ressaltar é que todas essas ideias citadas anteriormente são propostas a fim de defender um certo posicionamento da sociedade frente a alguma questão que exige ação coletiva. Todavia, é explícita a tendência da imposição do capital de sobrepor-se a qualquer outro critério científico, e é essa a questão chave na nova proposta de “quarentena inteligente”. Enquanto toda a comunidade científica internacional defende a manutenção da quarentena até ser possível  um controle  da transmissão da doença, alguns líderes políticos defendem a reabertura de comércios irrelevantes como shopping centers, devido a pressão que os proprietários de grande empresas estão exercendo. A defesa do uso da hidroxicloroquina como remédio mágico também entra nesse quesito. Enquanto Bolsonaro evitava ao máximo a implantação da quarentena a nível nacional, ele se apropriou de algumas evidências iniciais e mínimas da testagem da substância no tratamento da doença para tentar fingir que havia uma solução para o combate à covid-19 que não passasse pela necessária adoção do isolamento social. Dessa forma, ele pode adotar um discurso antiquarentena enquanto oferecia outra “solução”, estratégia que visava adesão a consciência pública ao mesmo tempo que garantia o ciclo do capital, este tão estimado pelos seus principais apoiadores e financiadores. A quarentena inteligente de João Dória não é muito diferente da hidroxicloroquina. Se em um primeiro momento, pareceu para muitos que o governador de São Paulo estava em contraposição ao Bolsonaro na questão da irresponsabilidade frente à pandemia, agora fica claro que o primeiro nunca esteve no oposto ao último: bastou alguns meses para que João Dória deixasse a vontade das elites proprietárias prevalecer sobre o direito à vida da população.

O fato é que não há dados para justificar uma reabertura em cidades como a de São Bernardo do Campo (ou outras do estado de São Paulo), onde recentemente o prefeito Orlando Morando, junto com outros prefeitos da região do ABC, entrou em atrito com seu aliado João Dória, numa tentativa de exigir a classificação da cidade no Plano São paulo em uma faixa mais flexível da quarentena, alegando que os números da região são melhores que os da capital. Num cenário com poucos testes, é óbvio que a discussão se deu em termos rasos, e claro, com um viés pseudocientífico, com a tentativa de usar alguns dados seletos e provavelmente enviesados pela baixa testagem como argumento para reabertura do comércio local.

A falência do programa plano SP já está dada. Por exemplo, desde o dia em que o programa foi anunciado (29/05/2020) até hoje (05/06/2020), a variação dos números de contágio a nível federal, estadual e municipal foi a seguinte [5] [6]:

Brasil:

a)Total de casos

29/05/2020: 465.166
06/06/2020: 614.941

b)Óbitos:

29/05/2020: 28.005
06/06/2020: 35.047

 

São Paulo:

a)Total de casos

29/05/2020: 101.556
06/06/2020: 134.565

b)Óbitos:

29/05/2020: 7.275
06/06/2020: 8.842

 

São Bernardo do Campo:

a)Total de casos

29/05/2020: 2.481
06/06/2020: 3.285

b)Óbitos:

29/05/2020: 206
06/06/2020: 232

Em um cenário onde há subnotificação e ainda assim, o número total de contagiados aumenta mais que 30% em uma semana, é criminoso defender qualquer flexibilização da quarentena. Somando a isso o fato de que mesmo durante a quarentena, os índices de isolamento da maioria dos estados não foi suficiente, o cenário se mostra trágico. Há margem para que o abandono da estratégia da quarentena tenha sido motivado por uma desistência de manter os recursos necessários para mantê-la, levando em conta que o isolamento social foi frustrado e não alcançou os índices necessários. Sendo isso ou não, pouco importa: a  vontade dos líderes políticos de defender o direito à vida dos trabalhadores se mostra mais uma vez frouxa e flexível. O país caminha para um paradigma pandêmico onde assume-se os riscos, as mortes, a superlotação do sistema de saúde, em nome da retomada normal das atividades econômicas. Nesse caminho, até mesmo os pilares da Ciência são distorcidos para fazer coro a uma política sem embasamento algum. Para aqueles que tendem a sacralizar o capitalismo como fomentador primeiro do desenvolvimento científico, que sejam responsáveis quando assim proferir e arquem com os monstros que são criados por uma sociedade que valoriza o capital mais do que qualquer princípio ético ou científico.

NOTAS

[1] https://www.seade.gov.br/coronavirus/

[2] https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/isolamento/

[2a] https://www.abcdoabc.com.br/sao-bernardo/noticia/boletim-coronavirus-sao-bernardo-02-06-20-102296

[3] https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/analise-subnotificacao/

[4] https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/covid-strategy-update-14april2020.pdf?sfvrsn=29da3ba0_19

[5] https://www.seade.gov.br/coronavirus/

[6] https://news.google.com/covid19/map?hl=en-US&mid=/m/015fr&gl=US&ceid=US:en

[7] Tradução livre por Larissa Freitas