O artigo que ora apresentamos busca reconstruir com aporte teórico o processo histórico de emergência e consolidação do neoliberalismo, como sistema econômico e político do capitalismo, considerando as diferentes formas hegemônicas em que se apresentou desde a década de 1970.
Muitos autores se debruçaram sobre essa temática e diferentes perspectivas políticas levaram, no calor dos acontecimentos históricos, a propostas explicativas que chegaram a anunciar o pós-neoliberalismo com a emergência de governo oriundos de partidos construídos pela classe trabalhadora em décadas anteriores.
Na nossa hipótese de trabalho o neoliberalismo passou e segue passando por transformações a partir de novos arranjos, da apropriação de pautas progressistas em determinado momento do ciclo histórico, culminando em sua face ultraneoliberal no momento presente, que não rompem nunca, entretanto, com seus principais objetivos e fundamentos.
Apresentaremos esse trabalho no Esquerda Online em três partes. Originalmente compõem uma pesquisa acadêmica que será ainda publicada. Para esse formato, foi reduzido e adaptado na intenção de acelerar sua divulgação, acreditando que possa ajudar as análises políticas de nosso tempo em uma conjuntura tão dramática que demanda respostas urgentes que nunca prescindem da elaboração teórica militante para a construção de saídas de emancipação para os trabalhadores.
Parte I: O primeiro ciclo de hegemonia neoliberal
Após o fim da II Guerra Mundial sob o impacto da destruição de forças produtivas, dos milhões de mortos e da vitória moral da URSS, o capitalismo, sobretudo na Europa – epicentro da guerra, por meio da ação dos Estados, ingressará em um período histórico que se convencionou chamar de “anos de ouro”. A reconstrução dos países destruídos pela guerra e o armamentismo dela decorrente, que se sustentou no período posterior da Guerra Fria, foram determinantes para um novo ciclo de crescimento econômico associado a uma maior regulação e planejamento econômico organizado pelos Estados. Estes passam a ser chamados de Estados de Bem Estar Social (EBES), por garantirem direitos e políticas sociais mais abrangentes e universais.
Tal feito não foi uma benesse da classe dominante. Os EBES foram fruto da organização dos trabalhadores que, em certa medida, abriram mão da revolução contra o capital em troca de maiores salários e direitos sociais, acompanhando os ganhos de produtividade da organização fordista da produção. Mas mesmo entre os trabalhadores a extensão desses avanços não foi homogêneo ou generalizado.
Países dependentes na América Latina passaram, há partir de meados da década de 1960, por governos ditatoriais, que por meio da força, garantiram a exploração necessária para a melhor distribuição da riqueza socialmente produzida no centro. Além disso, mesmo em países centrais mulheres, minorias étnicas, negros e imigrantes não foram chamados para usufruir do suposto bem estar. Os EUA, por exemplo viviam sob um regime de apartheid social da população negra e países como a França e a Inglaterra lutavam para manter suas colônias em torno do mundo. Assim os EBES só existiram no desenvolvimento histórico do capitalismo como exceção em um tempo histórico, espaço geográfico e para um segmento da classe trabalhadora específico. Contraditoriamente, no entanto, criaram uma “demanda de inclusão” (GRAEBER, 2016) que passou a pautar os programas políticos em todo o mundo na busca por um capitalismo social-democrata, com “justiça social”.
Com todas as suas limitações e contradições, esse lapso de civilidade que legitimou os Estados do mundo capitalista no pós guerra começou a se esgotar no fim dos anos 1960. Os limitados direitos sociais, garantidos pela maior distribuição do fundo público à parte da classe trabalhadora, e as pressões salariais geradas pela situação de pleno emprego reduziram os lucros do capital. (1) Este passa a uma onda de estagnação (Mandel, 1982) que tem, no início da década de 1970, a crise do petróleo como momento detonador. Politicamente, os processos de restauração capitalista na Europa Oriental e na URSS, que chegaram a seu ápice com o fim do Muro de Berlim em 1989, deram o suporte ideológico necessário à ofensiva do capital, que propugnava, então, o fim da História com a vitória definitiva do capitalismo como forma de organização social.
Como resposta a crise anunciou-se uma virada, que tinha a retomada das taxas de lucro e do crescimento econômico como objetivo central. Essa virada apoiou-se nos pressupostos de pensadores da Sociedade Mont Pelérin, como Friedman, Mises e Hayek, como base teórica. Seu primeiro laboratório no regime ditatorial chileno já era a demonstração de que a democracia, mesmo formal e liberal, era prescindível e até um obstáculo à implementação dessa nova racionalidade (Dardot e Laval, 2016) que se condicionou chamar de neoliberal.
O termo neoliberal é uma referência ao período liberal do capitalismo, quando os Estados tinham participação restrita na economia que supostamente tendia ao equilíbrio por meio de sua “mão invisível”. O tal neoliberalismo, no entanto, em nada reduziu os Estados, apesar de sua forte retórica antiestatal. Nunes (1989) caracterizou o período com termo mais preciso: uma contrarrevolução monetarista. O que se viu crescentemente foi um novo direcionamento do fundo público (2) que, ao invés de garantir políticas sociais e medidas econômicas anticíclicas, seguindo as orientações keynesianas, passou a remunerar imediatamente o capital, e sobretudo o capital rentista. Isso porque a hegemonia do neoliberalismo como orientação para os Estados é decorrente de uma de suas características essenciais: a retomada da hegemonia do capital financeiro no comando das economias.
A retomada das taxas de lucro, objetivada pelo neoliberalismo em uma economia amplamente financeirizada, necessitou, ainda, de maior exploração dos trabalhadores. Isso porque ainda que o setor financeiro seja hegemônico é apenas na produção que o valor se cria por meio do trabalho. Foi necessário, portanto, na estratégia da classe dominante, reestruturar a produção e combater os mecanismos de solidariedade e organização dos trabalhadores, como os sindicatos.
Emergiu uma nova forma de organização da produção, o modelo toyotista, que trouxe elementos de ruptura e continuidade com o fordismo do período anterior. Esse modelo fundamenta-se num padrão de produção, organização e tecnologia avançados. Introduz novas técnicas de gestão da força de trabalho que exploram não só a capacidade física, mas também a capacidade criativa e de cooperação dos trabalhadores (Antunes, 1999).
Assim como na produção, os Estados nacionais também passaram por contrarreformas que os reorganizaram. Para os ideólogos neoliberais a crise do capital seria uma crise dos Estados, considerados hipertrofiados e perdulários. A sistematização das orientações contrarreformistas baseadas nesse diagnóstico foi elaborada por organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, inicialmente com o nome de Consenso de Washington. Suas medidas passaram então a ser consideradas a única racionalidade possível na garantia da estabilização e do crescimento econômico e compreenderam: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, contrarreformas tributárias regressivas, juros de mercado, abertura comercial, eliminação de restrições ao investimento externo direto, privatização das empresas estatais, desregulamentação da economia e dos direitos dos trabalhadores e defesa do direito de propriedade intelectual por meio de patentes.
As dívidas públicas foram utilizadas para chantagear os Estados a aderirem a essa agenda. O crescimento das dívidas e dos juros pagos em função das mesmas passou a ser o principal mecanismo de transferência de fundo público para as finanças. Os países periféricos foram os principais afetados por esse processo, não necessariamente por serem os maiores portadores de dívidas, mas porque comprometem mais os seus orçamentos com juros e encargos detendo menos soberania sobre as mesmas. Segundo Harvey (2005), a partir de 1980 mais de 50 Planos Marshall foram remetidos pelos povos da periferia aos seus credores no centro.
A ascensão mundial do neoliberalismo coincidiu com o fim da ditadura e com a atrasada tentativa de construção de um EBES no Brasil. A Constituição de 1988, ainda que insuficiente para a reversão das desigualdades históricas e estruturais da sociedade brasileira, avançou na universalização de políticas sociais como a saúde, a educação e a Previdência Social e na institucionalização da Assistência Social, até então restrita a iniciativas clientelistas e pontuais de caridades privadas. Anacrônica, porém, em relação ao momento político mundial, a Constituição começou, imediatamente após sua promulgação, a ser desmontada nos seus aspectos mais progressistas. A vitória de Collor, representante fiel da classe dominante, nas primeiras eleições presidenciais após a ditadura, abriu caminho para a virada neoliberal brasileira, que só se consolidou, no entanto, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso entre 1994 e 2002.
Adequado aos ditames internacionais consolidados pelo Consenso de Washington, o governo Cardoso contrarreformou o Estado brasileiro por meio, principalmente, do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRE) que orientou a privatização de inúmeras empresas estatais e da gestão e prestação de serviços sociais por meio de parcerias com o setor privado.
As características das políticas de Cardoso dão sequência a um processo que Behring (2019) caracteriza como um “ajuste fiscal permanente”, em curso até os dias atuais no Brasil, que se iniciou ainda durante o período ditatorial como resposta a explosão inflacionária e as crises da dívida na América Latina na década de 1980, e que se materializaram, antes do Plano Real de Cardoso, em outros 14 planos econômicos.
Para garantir seu sucesso em tantas medidas impopulares, o governo Cardoso contou com franca adesão da mídia e forte repressão contra sindicatos e movimento sociais. Assim como o esmagamento da greve dos mineiros na Inglaterra e dos controladores de voo nos EUA pelo governos Thatcher e Reagan no final dos anos 1970 foram um marco na nova relação da burguesia com os trabalhadores por meio do Estado, abrindo caminho para a avalanche neoliberal de retirada de direitos, a repressão à greve nacional dos petroleiros em 1995 foi nosso marco no avanço da neoliberalização.
Para as políticas sociais, o ideário neoliberal apresenta o trinômio privatização, focalização e descentralização, abrindo novos espaços de valorização para o capital, transferindo para ele fundo público e reduzindo a política social apenas para trabalhadores dos segmentos mais pauperizados. Avança no Brasil, então, a redução de recursos para o setor público com políticas de favorecimento para planos de saúde e para a educação privada, ressignificação da caridade por meio de programas como o Comunidade Solidária e a primeira rodada do que será a contrarreforma permanente da Previdência Social.
Assim se deu, resumidamente, o primeiro ciclo neoliberal na particularidade brasileira encerrado em 2003 com a chegada dos governos petistas à presidência.
Notas
1 – Segundo Harvey (2005) 1% da população mais rica dos EUA concentrava 16% da renda nacional antes da II Guerra Mundial passando a 8% no pós guerra e sofrendo acentuada queda nos anos 1970. Em 2014, segundo dados do Wid. World os 1% mais ricos dos EUA detém 20,2% da renda nacional. Em: https://wid.world/. Acesso em 13 de fevereiro de 2020.
2 – Entendemos como fundo público o conjunto de impostos, taxas, contribuições e etc que são compulsoriamente apropriados pelo Estado. Esse fundo é composto por trabalho necessário (na forma salário) e pelo trabalho excedente (na forma lucro, juro ou renda da terra) do conjunto da sociedade, tendo um lugar estrutural na sociedade capitalista. Sobretudo em momentos de crise, o fundo público atua como “contratendência à queda das taxas de lucro, atuando permanentemente e visceralmente na reprodução ampliada do capital”(BEHRING, 2010, p.32).
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1999.
BEHRING, Elaine. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003
___. Crise do capital, fundo público e valor. In: BOSCHETTI, Ivanete et al. Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010.
___. Ajuste fiscal permanente e contrarreformas no Brasil da redemocratização. In: CISLAGHI, Juliana Fiuza (org). Ajuste fiscal e Seguridade Social: retrocessos e desafios em tempos de ofensiva conservadora. Anais da IX Jornada Internacional de Políticas Públicas (Mesa coordenada). UFMA, 2019.
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
GOUGH, Ian. Economía politica del Estado de bienestar. Madri: Macmillian press, 1979.
GRAEBER, David. Dívida: os primeiros 5000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
HARVEY, David. O neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2005.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1982.
NUNES, A. J. Avelãs. O Keynesianismo e a contrarrevolução monetarista. Lisboa: Boletim de Ciências Econômicas. Vol. 32, 1989.
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