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BRASIL

OPINIÃO: Ir ou não ir? Falsa questão

A esquerda tem se consumido em um debate sobre participar ou não das manifestações marcadas para este domingo. Influenciadores, partidos e lideranças políticas se manifestaram nas redes sociais. Mas, quais argumentos são apresentados e qual a validade deles?

1. Risco de romper o isolamento e aumentar a contaminação
Uma parte dos debates se concentra no fato de que o isolamento social é a única forma de esticar o prazo e número de contaminados e de diminuir a incidência de casos. O Brasil não fez a lição de casa, o isolamento social foi deficiente e medidas de retaguarda, especialmente de renda básica, fizeram com que nunca tenhamos chegado a percentuais confortáveis (70%), mesmo em cidades que decretos ou decisões judiciais impuseram lockdown. Não aconteceu nada parecido com que vimos na Espanha, Itália ou Reino Unido.

Mesmo assim, caso esse esforço descoordenado não tivesse acontecido, ao invés de 35 mil, teríamos muito mais mortos e infectados. E é certo também que, em termos nacionais, os números estejam em ascensão. Isso varia de cidade para cidade.

Uma parte da população, por fazer parte de serviços essenciais (conceito que foi alargado por pressão empresarial) ou por necessidade de sobrevivência, permaneceu nas ruas. São os mais pobres que mais mantiveram forte exposição neste período. Quem, também como regra, conseguiu manter um maior isolamento, foram as classes médias urbanas, especialmente os servidores públicos (10 milhões de brasileiros, descontados desse número os que estão no policiamento e serviços de saúde e assistência).

Fazer manifestações coloca as pessoas em risco? A resposta é afirmativa. Mais trabalhar todos os dias por falta de renda e pegar o transporte coletivo é igualmente perigoso e mais constante. A contaminação é uma roleta russa, uma probabilidade existente. Quanto mais vezes você estiver em situação de risco, mais provável ser contaminado. Ir numa manifestação é arriscado, existe a probabilidade de contaminação, mas não é certeza. Da mesma forma que ir ao mercado ou feira também. Depende do estágio da doença na região e do distanciamento e medidas protetivas tomadas.

Respeito os que decidirem não ir às ruas no meio da pandemia. Ter receio dessa doença é algo aceitável. Eu também tenho medo, por mim e por minha família. Desamparados pelo governo, nós brasileiros corremos risco todos os dias e não temos retaguarda decente no sistema de saúde.

2. Ir para as ruas é fazer o jogo do Bolsonaro
Outra linha de raciocínio, mais política e não necessariamente vinculada a pandemia (seria válida para o pós-pandemia) é de que interessa para Bolsonaro o confronto e que, indo às ruas, estaremos expostos a provocações e confrontos e, por conseguinte, reformaremos o discurso de que somos “baderneiros, terroristas e maconheiros”.

A direita vem ocupando as ruas, na maior parte das vezes com classe média que permanece fiel a Bolsonaro. Mas, cada vez mais, vemos a presença de grupos radicalizados, neonazistas, dispostos a agredir manifestantes da esquerda.

Esses grupos se tornaram mais presentes nesta semana, mandando recados, marcando presença no mesmo local. Vimos notícias de que em SP e DF existem lutadores de academia sendo estimulados a ir para os atos para promover confusão. E temos sempre o risco de infiltração.

Tudo isso é verdade. Mas, se não houvesse pandemia e tivéssemos que ir para as ruas, contra o governo, desistiríamos devido a possibilidade de enfrentamento de milícias embrionárias fascistas? Talvez essa seja a pergunta mais relevante, não para domingo, mas certamente para que tipo de enfrentamento teremos nas ruas mais adiante.

Diferente de Collor e outros governos, com Bolsonaro uma extrema-direita militante foi empoderada e está em formação uma postura mais agressiva (não somente performática, tipo o grupo 300 com tochas). Assim, se quisermos fazer política daqui por diante e se quisermos enfrentar o governo de extrema-direita, é bom saber que o “novo normal” é de que nossa luta terá que mudar de tática, que nossas manifestações não precisarão se preparar somente para confronto com a PM, mas também com bandos fascistas.

Não considero justificativa razoável ficar em casa devido ao segundo argumento, posto que ele vai continuar válido por largo tempo. E, neste caso, como a direita tem ocupado as ruas nesse período, ficar ausente dá tempo para que as milícias se sintam mais fortes. A nossa ausência não tira a presença deles e nem diminui a vontade de lutar desses grupos.

Para os setores de esquerda que jogam todas as suas fichas em ações parlamentares e eleitorais, o caminho de ficar longe das ruas (domingo e nos próximos meses) é coerente. No nosso caso, decidir não ir às ruas domingo (devido a pandemia, por exemplo), no quesito de confronto com bolsonarismo, só representa um adiamento de um quadro de confronto previsto para quando estivermos nas ruas.

3. A influência americana e quem dirige quem.
Nem todos os movimentos sociais, especialmente de juventude, são dirigidos por organizações ou correntes de esquerda, mesmo que sofram influência mútua.

As manifestações que explodiram nos EUA, desafiando a Polícia, toque de recolher, as ameaças de Trump e arriscando facilitar uma nova onda de contágio, o fizeram por que avaliaram ser urgente enfrentar o grito que estava preso na garganta. As mortes de negros não cessaram com isolamento social, o desemprego afetou mais os negros, as mortes pelo vírus também. Certamente, as dúvidas que temos no Brasil sobre o risco de ir às ruas em tempos de pandemia, estiveram presentes na cabeça de centenas de milhares de pessoas nos EUA, na França, em Londres ou Austrália.

As realidades não podem ser igualadas. Aqui, a pandemia não tem o tratamento que teve nesses países, corremos mais riscos sanitários, com certeza.

Aqui, o direito a manifestação é menos enraizado e somos muito mais criminalizados, nossa polícia age de forma muito mais truculenta nas ruas e de forma mais impune.

Aqui, apesar de tantas mortes de negros na periferia, a indignação da população é menor, nossa dor é normalizada todos os dias, faz parte do cotidiano. Temos apenas espasmos de indignação, passageiros.

Mas, não tendo bola de cristal, sofremos influência do que ocorre pelo mundo e pode ser que os acontecimentos nos EUA, aumente a vontade de ocupar as ruas e manifestar que aqui as vidas negras deveriam importar. Não tenho como saber se as manifestações serão grandes, pequenas ou médias. A probabilidade de serem reprimidas, essa sim é certeza. A presença de infiltrados, idem.

As manifestações de domingo irão ocorrer, independente do que lideranças partidárias e alguns influenciadores digitais pensam. Isso é um fato.

Mas, como posso ser contra o direito de pessoas negras soltarem o grito preso na garganta?

Meus avós foram negros. Minha mãe é filha de uma indígena que casou com um negro estivador e viveram na periferia de Belém. Meu pai, filho de um seringueiro negro que casou com uma branca pobre do interior do Ceará. Não sou considerado negro, não sou visto desta forma, mesmo que reivindique meus ancestrais.

Sou do grupo de risco. Tenho asma e já tenho 57 anos. Mas não conseguirei ficar em casa amanhã. Seria abandonar os que estarão nas ruas dizendo que não conseguem respirar.

Aconselho todo mundo a ir? Quem sou eu para fazer isso. Vários influenciadores e partidos resolveram dizer o que as pessoas devem ou não fazer.

Prefiro ser solidário e ouvir o grito delas. Junto delas.

*O texto reflete a opinião do autor e não necessariamente a opinião editorial do Esquerda Online