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BRASIL

Não é acidente, é racismo! – Vidas negras importam

Por Malu Nogueira, de São Paulo

Se tem uma coisa que não podemos fazer é deixar que seja tratada como mera casualidade o que aconteceu com a vida do menino Miguel, de 5 anos. É racismo. E é na conta dele que deve ser jogada mais essa vida ceifada!

Mirtes Renata Santana de Souza é empregada doméstica. E é negra, assim como 68,5% das mulheres nesses postos de trabalho, de acordo com o Ipea.
Além de mãe do Miguel, é dela o trabalho de lavar, passar, arrumar, cuidar do filho da patroa, levar cachorro para passear… Ou seja, o de fazer o trabalho de cuidado para a casa da “primeira dama” da cidade de Tamandaré, sabe-se lá em quais condições, mesmo no contexto de pandemia e mesmo tendo de levar o filho.

A vida de Miguel não se foi por acidente. Se foi pelo desprezo que só a elite escravocrata pode dar à vida uma criança negra.

“Ela não teve paciência com o meu filho, e eu sempre tive paciência com os filhos dela”, afirmou Mirtes em entrevista à TV Globo.

 

Enquanto a mãe cuidava e passeava com o cachorro da família, a madame Sarí Gaspar Côrte Real fazia as unhas – serviço essencial, de acordo com governo federal. E certamente não podia perder seu precioso tempo olhando o menino. Então colocou Miguel, uma criança de 5 anos que chorava querendo a mãe, sozinho em um elevador. Mas não em qualquer elevador, porque é importante repetir, estamos falando de uma elite escravocrata. Colocou naquele que consideram o seu lugar: o elevador de serviço! O que transporta trabalhadores – negros como ele -, mercadorias ou coisas.

E aí aconteceu o que aconteceu. Mais uma mãe sem seu menino. Cabô. Cadê menino?

Não foi acidente, foi a relação entre raça e classe

 

É cada dia mais evidente. Fica impossível separar a discussão sobre racismo do debate econômico. Se raça informa classe, como conceitua Angela Davis, a verdade é que a crise só escancara essa relação histórica e estrutural.

Além da falida guerra às drogas e da crescente militarização da vida que aqui nos tira jovens como João Pedro e João Vitor e nos Estados Unidos vidas como George Floyd, a falta ar para negros e negras acontece também entre as milhares de vítimas da COVID-19. Nos EUA apesar de menos de 20% da população do país ser negra, 58% das mortes por Covid-19 são de pacientes negros, de acordo com relatório da amfAR publicado em maio. E no Brasil, depois da luta articulada pela Coalizão Negra por Direitos pelo acesso aos dados com recorte racial, sabemos que há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados por Covid-19, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações – de acordo com análise da Agência Pública.

Não se trata, portanto, de puro simbolismo que a COVID-19 seja mais letal entre a população negra no Brasil. Não por predisposição genética, não há sequer evidências científicas sobre essa hipótese. Mas sim, pelo profundo abismo socioeconômico que faz com que a população negra seja 75% dos mais pobres do Brasil de acordo com o IBGE.

A ofensiva é brutal. São furtadas as condições necessárias para que essas vidas sejam resguardadas e que, quando resguardadas, sejam vividas. O racismo, que sustenta o genocídio de vidas negras por tantas vias, não está apartado da lógica de opressão e exploração do próprio capitalismo.

Vidas negras importam: a urgência das bandeiras do antirracismo, do antifascismo e do anticapitalismo tremularem unidas

 

Fazer com que vidas negras importem é uma tarefa que passa, necessariamente, por derrotar o fascismo representado por Jair Bolsonaro e seus fiéis apoiadores. No “DNA” dessa ideologia e de sua prática política estão contidas ameaças diretas às condições de vida da população negra – que, sim, podem ficar ainda piores.

A face do autoritarismo, que pauta o fechamento do STF e do Congresso, combinada ao plano miliciano de armar a sociedade civil para o combate a prefeitos, governadores (e quiçá da oposição) revela que o recrudescimento da violência de Estado é um pilar – o que legitima ações truculentas na esfera da segurança pública e que recai, mais uma vez, sobre os ombros das favelas e periferias de maioria negra. Como foi o caso de João Pedro Matos, de 14 anos, morto dentro de casa depois de mais de 70 disparos da PM do Rio.

Mas além desta face, outras duas devem servir alerta sobre as condições de vida de negros e negras no atual cenário. A primeira é que o fascismo de Bolsonaro é ultra neoliberal. Portanto, destrói direitos trabalhistas e atinge em cheio a vida dos trabalhadores mais precarizados, como é o caso das domésticas. E a segunda, que articula as anteriores mas vai adiante, é que é abertamente racista. O que significa que junto com essa verdadeira política de morte, aplica uma ofensiva ideológica que busca evocar o mito da democracia racial e negar a existência do racismo. O objetivo é fazer com que nenhuma das mazelas sejam identificadas pela população como aquilo que de fato são: uma articulação da opressão de raça e classe.

Assim, para resguardar da dor mães como Mirtes e poupar a vida de crianças e jovens negros é preciso erguermos as nossas bandeiras para a luta.

Em uma sociedade onde o racismo é estrutural, a bandeira antirracista é mais que fundamental. É a luta pela vida de uma parcela significativa de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros em questão. É preciso dizer que elas importam!

Mas, romper com esse cenário de barbárie passa ainda pela tarefa urgente de transformar a organização da sociedade. Ao invés do lucro, é preciso colocar como centro a vida dos trabalhadores. Esses últimos, que ao contrário do que ainda se imagina, não são nuvens amorfas de pessoas. E sim profundamente atravessados por aspectos produzidos e reproduzidos pelo próprio capitalismo como raça, gênero e sexualidade.

Para que a vida venha antes do lucro é preciso que tremulem juntas nossas bandeiras antirracistas, antifascistas e anticapitalistas!

Vida acima do lucro!

#VidasNegrasImportam #BlackLivesMatter

 

*Malu Nogueira é estudante de Relações Públicas na USP, militante do Afronte, da Resistência Feminista e do movimento negro.