Pular para o conteúdo
OPRESSÕES

Antifascismo e antirracismo: duas bandeiras de uma mesma luta

Priscila Costa e Marina Amaral, de Salvador, BA
ilustração via @designativista (instagram)

Inspirada pelos ventos das mobilizações dos EUA, o contexto da necropolítica no Brasil e a necessária reação democrática ao governo Bolsonaro, abriu-se nos últimos dias uma importante movimentação em torno da luta antirracista e antifascista. O movimento gerou debate entre aqueles que ocupam o lugar dos 70% de insatisfeitos com o cenário político. A partir disso, surgiu o seguinte questionamento: há alguma dicotomia entre o antirracismo e o antifascismo?

Bom, em primeiro lugar esse não é um texto de polêmica. É um texto para a gente entender que dá pra discordar do outro sem implodir pontes. Lugar de fala e lugar de escuta. Como toda discussão progressiva deveria ser. Existem várias questões que corroboram com o fato de que é impossível desassociar a pauta antirracista e antifascista. Uma delas diz respeito aos próprios elementos que constituí a construção ideológica do fascismo, que partem da defesa de uma “superioridade de raça”. A ideia de “nação mais forte”, “nacionalidade pura”, está intrinsecamente vinculada com a ideia de raça e, portanto, um projeto político e ideológico daquilo que se chama supremacia branca.

O fascismo e a “supremacia branca”

O nazi-fascismo enquanto um projeto, gira em torno da aniquilação física de seus adversários políticos e das raças que são consideradas inferiores. Ou seja, não se trata apenas de uma “discordância de ideias”. O fascismo não tem dúvidas sobre quem são seus inimigos: todos aqueles e aquelas que estão entre a classe trabalhadora, em especial, negros, comunistas, anarquistas, indígenas, feministas, estudantes, sem-terras, sem-tetos, sindicalistas, professores, artistas, LGBTs etc. Em resumo, todos os segmentos que estão no sentido oposto de sua ideologia de ódio e intolerância.

Nos Estados Unidos, o líder fascista Donald Trump, reage às manifestações democráticas à sua política de ódio, classificando as lutas antifascistas como “organizações terroristas”. Por outro lado, vemos no Brasil as manifestações de Sara Winter e os “300 do Brasil” resgatar símbolos fascistas e racistas, como a referência direta a Ku Klux Klan¹. Bolsonaro, o presidente genocida, participa e organiza essas manifestações enquanto o povo brasileiro enfrenta uma brutal ascensão de mortes por Covid-19.

Segundo uma análise da A Publica[1] com base no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, as mortes e hospitalizações de pretos e pardos no Brasil sobem mais que em relação aos brancos. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo Governo Federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930 casos. Além disso, a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), causada por coronavírus, aumentou para 5,5 vezes.

Aliado a morte momentânea de Covid, vemos o genocídio permanente nas favelas, que se desenha como um verdadeiro projeto de extermínio das vidas negras. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, setenta e cinco a cada 100 pessoas assassinadas no país são negras. A proporção é a mesma entre pessoas mortas por violência e intervenções policiais. Em relação ao encarceramento, os dados disponíveis no Infopen² sobre a cor de pele, raça ou etnia, revelam que 67% dos encarcerados são negros, enquanto os brancos representam apenas 32%. Esses números revelam a herança escravocrata, colonizada e genocida do Brasil.

Nesse sentindo, importa dizer que genocídio não é só sobre morte física. Para Abdias do Nascimento, genocídio é a “recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos”³. Por todos os lados, o projeto de “supremacia branca” do fascismo diz para nós negros e negras que nossas vidas não importam.

A convergência das lutas antifascista e antirracista na história

Quando Mussolini invadiu a Etiópia, como canta o reggueiro baiano Edson Gomes, foi um rolo compressor esmagador. A Etiópia, antiga Abissínia, é um dos países mais antigos do mundo, e diferente da maioria dos países africanos que foram saqueados e colonizados, a Etiópia foi independente praticamente desde a sua formação, exceto por um período de cinco anos de ocupação fascista, de 1936 a 1941, por Bento Mussolini. Os argumentos pra legitimar a ação fascista na invasão do território africano, sempre tiveram inflexões raciais: “rebanho de escravos”, “horda de bárbaros”, que precisavam ser civilizados. Pós dominação do Estado fascista, houve continuidade desse projeto através da proibição da miscigenação, imposição de massacres e políticas segregacionistas para impedir movimentos de resistência.

Após a derrota do exército Etíope, o então imperador Halie Selassie se exilou em Londres, e em 1936, na Liga das Nações, fez um dos primeiros discursos internacionais condenando e denunciando o fascismo italiano, assim como suas práticas de “refinamento tecnológico da barbárie”4 se referindo ao uso de armas químicas. Esse é um potente discurso, que une antifascismo e antirracismo, mas que por culpa do racismo, foi silenciado na história.

Nesta época no Brasil, as ideias fascistas estavam ganhando mais adeptos. Contrapondo-se a guerra, ao racismo e ao fascismo, as organizações de esquerda promoveram campanhas de denúncia, com palestras, comícios, atos públicos e panfletos, em unidade com outros movimentos. Em São Paulo, o movimento negro se uniu ao movimento de italianos antifascistas para combater o inimigo comum. Documentos, como o jornal A Platea, comprovam a participação ombro a ombro de antifascistas e antirracistas “italianos, negros, brasileiros, homens de toda raça comparecem ao comício”5. O material de panfletagem da Federação dos Negros do Brasil dizia:

“Negros do Brasil! Intelectuais, trabalhadores, jovens e mulheres (…)É chegado o momento em que mais nenhum negro poderá deixar de participar na luta que se esboça em todo mundo para libertação das raças sofredoras e oprimidas (…) Já ninguém ignora os horrores da guerra de extermínio e de saque que Mussolini tenta contra o último império negro no mundo (…) Os negros de São Paulo mostrarão através das palavras, sua repulsa pelo fascismo e pela guerra”6

Esse exemplo mostra que o movimento negro organizado se posicionou firmemente junto ao movimento antifascista, contra a invasão fascista na Etiópia. Ambos entenderam que a guerra na Abissínia não era somente uma questão fascista, nem somente uma questão racial. E se o inimigo é comum, a luta precisa ser coletiva.

O Racismo e o antirracismo no Brasil e nos EUA

Não é automático transplantar a experiência das lutas raciais dos EUA para o Brasil. Embora seja parte de uma mesma questão estrutural, o racismo no Brasil tem características diferentes dos Estados Unidos. O conceito de Florestan Fernandes sobre preconceito reativo7, que basicamente é ter preconceito de ter preconceito, nos ajuda a entender o lugar objetivo e subjetivo da questão racial em nosso país. Um país que se desenvolveu sob o mito de ser um país “alegre”, “miscigenado” e sem conflitos raciais. O que alguns teóricos e parte do movimento chama de mito da democracia racial.

É muito importante entender que a história não existe a partir do momento que se faz parte dela. A história do movimento negro brasileiro não nos autoriza dizer que “fomos passivos” quanto às desigualdades raciais e sociais em nosso país. Houve muitas revoltas e rebeliões sobre a questão racial desde o período escravocrata. Mas é no contexto dos anos 1970, junto com o período de redemocratização, que surge o Movimento Negro Unificado (MNU), após o Brasil ter enfrentado mais de 20 anos de ditadura.

Contudo, o movimento negro brasileiro tem desafios próprios do nosso contexto. Há alguns mitos sobre o racismo no Brasil. Um deles, que pode ter um lugar de maior destaque nessa discussão, é o fato de que aqui não se teve um sistema de “segregação racial”, que isso só ocorreu nos Estados Unidos através de registro em lei. A noção disso deu uma falsa ideia de que no Brasil sempre fomos um pouco “junto e misturado”. Isso coloca no debate sobre racismo brasileiro outras questões como: políticas de embranquecimento, e ideologias, a partir da miscigenação, para dividir os próprios negros, como a noção de pardo. Ou seja, uma ideia de raça com elementos particulares que ainda hoje dificultam a afirmação da identidade racial.

Ter esperança com o ciclo de protestos nos Estados Unidos sobre ao assassinato de Georg Floyd importa muito. Um grito negro nos EUA por justiça pode ecoar por todo o mundo. A experiência estadunidense nos mostra que, quando o potencial da luta antirracista se desenvolve, é possível que a revolta ganhe a proporção que ela precisa ter. Que essa luta, organizando os negros e negras na linha de frente, é capaz de pressionar brancos e setores mais amplos da sociedade a escolherem um lado: o lado antirracista, antifascista e contra a barbárie capitalista.

As saídas possíveis e necessárias

Está colocado um desafio gigante sob a esquerda brasileira. Estamos diante de uma encruzilhada histórica. De muitos “perigos na esquina”. O Brasil, nesse momento, já é o epicentro da pandemia no mundo. Torcidas organizadas realizam corajosos atos antifascistas. Durante esta semana, a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos em Recife, também gerou atos em um movimento importante de #JustiçaPorMiguel.

Não dá para afirmar ainda se a energia represada de indignação será convertida em ação de massas nas ruas brasileiras. O nosso papel é superar a fragmentação dos debates e das lutas. Precisamos urgentemente de uma agenda antirracista permanente e conectada com a luta pela democracia, que transforme a retórica da unidade, em ação coletiva. Olhar pra trás e aprender com as experiências históricas, nos ajuda a olhar melhor pra frente e compreender as tarefas que são necessárias para avançar na luta, que nesse caso, precisa ser necessariamente antifascista e antirracista.

Não queremos morrer sufocados nem pelo Covid nem pela violência policial. O nosso povo negro precisa respirar. Todos precisam respirar um ar com menos ódio, intolerância e desigualdade, sem o “sufoco” do fascismo, do racismo e todas as formas de opressão. Que os ventos desse momento difícil soprem para uma direção que nos faça avançar: à esquerda.

 

*Priscila Costa é jornalista e do Setorial de Mulheres do PSOL da Bahia e Marina Amaral é socióloga em formação e coordenadora do DCE UNEB – ambas militantes do Afronte! e da Resistência-PSOL.

 

Referências

1 Ku Klux Klan ou KKK foi uma organização civil americana, criada no século XIX, que pregava a supremacia racial branca, o racismo e o antissemitismo. No contexto em que foi criada, essa organização perseguia negros libertos e pessoas que apoiavam a concessão de maiores direitos aos negros nos Estados Unidos. Chegou a contar com quatro milhões de membros em meados da década de 1920.

2 Infopen é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro.

3 NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo, Perspectivas, 2016.

4 Safire, William. Lend Me Your Ears: Great Speeches in History. 1997, page 297-8.

5 Vide: A Platea, 22/8/1936

6 Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós abolição (1890 – 1980) / Flávio Gomes, Petrônio Domingues (orgs). – São Paulo: Selo Negro, 2011.

7 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 168-179, dezembro/fevereiro 2005-2006

 

 

 

Marcado como:
Antifascismo / Racismo