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BRASIL

Luta antifascista: A negação urgente e a afirmação necessária

Matheus Hein Souza*, de Porto Alegre, RS
Reprodução / CUT RS

Nas últimas semanas, sempre aos domingos, a cidade de Porto Alegre tem se tornado palco de um evento atípico para os tempos de pandemia que estamos vivendo.  Na frente do 3º comando militar do Sul, na Rua das Andradas, um grupo de bolsonaristas se reúne para manifestar aquilo que é o padrão das suas opiniões: o fechamento do congresso, do STF, intervenção militar e poder absoluto para Bolsonaro. Desde o início da crise sanitária e da demanda por isolamento, os bolsonaristas acrescentaram em suas absurdas reivindicações o direito de saírem e contaminarem a si e aos outros. O elemento novo, contudo, é a presença de um contra-ato composto por aqueles que defendem arduamente a necessidade de isolamento para o achatamento da curva de contaminação, mas que, dado os avanços autoritários de Bolsonaro e a manifestação abertamente fascista de grupelhos que começaram a sair dos bueiros, sentiram a obrigação de saírem da segurança das suas casas e retomarem as ruas, tirando dos fascistas o seu monopólio. Esse ato de coragem antifascista tomou conta dos sites de notícia nesse último domingo, quando as manifestações se multiplicaram pelo país e, em todos os lugares, foram muito maiores do que os atos bolsonaristas e obrigaram os fascistas a recuarem e dispersarem os seus atos. De todo modo, na esquerda surge o debate e a polêmica sobre o que seria esse antifascismo e o que significaria denominar-se antifascista. Para além da questão histórica e dos enfrentamentos antifascistas das décadas 1920 e 1930, procuro nesse breve texto contribuir para o debate compreendendo esse momento da luta dentro de dois eixos: uma negação e uma afirmação

A negação urgente

O fascismo não mais se apresenta como uma sombra obscura de um passado tenebroso que surge para nos assombrar. Ele já se demonstra materialmente como movimento real que orgulhosamente brada seu reacionarismo nas ruas. O ovo da serpente do fascismo não apenas já chocou, mas tal serpente estrangula as, por natureza já limitadas, instituições e estruturas da democracia liberal. O fascismo, por sua natureza retrógrada, pode por muitas vezes aparentar ser apenas uma negação: a negação da vida, a negação da diferença, a negação do outro. De todo modo, o fascismo é um projeto e como tal é, essencialmente, uma afirmação. O fascismo afirma o seu sujeito ideal, a sua normatividade, e todo o resto que não se encaixa nesse quadro – isto é, a população não-branca, a população LGBT, as mulheres, os imigrantes, etc. – deve ser eliminado para que a ordem nacional seja restabelecida. Nesse sentido o fascismo é uma ideologia que constantemente busca seus bodes expiatórios que expliquem o total desastre que é a sua política social e econômica. O diferente, o outro, é sempre um perigo, um artifício utilizado pelo inimigo – os comunistas, os bolivarianos, a nova ordem mundial, o que quer que seja o devaneio escolhido da vez – para desestabilizar os governos dos seus Dulces, Reichs ou Capitães.

O fascismo coloca um diabo vermelho a cada esquina para mistificar o projeto genocida das elites que, não mais encontrando as condições necessárias dentro da sua própria democracia – isto é, a liberal -, vê a necessidade de desfazer, ou fragilizar, essas estruturas. Por mais limitada que a democracia liberal seja, ela possibilita – ainda que muitas vezes apenas formalmente e não, de todo modo, substancialmente – impor limites para a sanha predatória do capital. Até mesmo esses limites tímidos precisam ser derrubados. É nesse sentido que o fascismo é um projeto que afirma: afirma a morte, afirma a indiferença, afirma a dominação selvagem de classe que a democracia liberal muitas vezes oculta.  

Por essa razão, as manifestações antifascistas nas ruas e nas redes possuem um caráter profundamente progressivo para a sociedade brasileira. Milhões de vozes se juntam para negar o que o fascismo afirma. Significa defender a vida, defender a dignidade do outro, defender as liberdades democráticas, defender as condições mínimas para a diferença e para a própria existência. Se o fascismo é o símbolo da barbárie, essas vozes em conjunto buscam defender aquilo que se pode denominar “civilização”. Por essa razão, essa unidade de ação antifascista – de fato ampla, diversa e heterogênea – é uma negação que se faz urgente contra o fascismo.

A afirmação necessária

A ampla rejeição ao fascismo é, por óbvio, um fator progressivo na nossa conjuntura. Dessa maneira, não parecem razoáveis as posições demasiadamente preciosistas referentes ao tema, como se rejeitar o fascismo fosse opinião de exclusividade socialista/comunista. É correto enfrentar qualquer falsificação histórica que vise desfigurar os embates do passado e as tantas lutas contra o fascismo ao longo das décadas, de todo modo, a princípio, o único pré-requisito para uma pessoa ser antifascista é repudiar o fascismo e desejar que este seja impedido. Isto é, negar o fascismo. Nisso reside o fator positivo de uma maioria ser antifascista, mas também aponta os seus limites. Como mencionado anteriormente, o fascismo é um projeto e, como tal, afirma uma série de políticas, valores e ações. Por essa razão, não é possível derrotá-lo por completo apenas rejeitando suas afirmações e pressupostos. Para derrubar um projeto é preciso enfrentá-lo com outro. Para construir a estratégia capaz de derrotar o fascismo, é preciso compreender o que torna possível sua conformação de dentro da nossa sociedade.  

Estudos no decorrer dos últimos anos demonstram que há uma crescente insatisfação da população com a democracia. É possível apontar que a eleição de figuras como Trump e Bolsonaro são resultado direto dessa insatisfação: “outsiders” ou “rebeldes”, bradam que enfrentam o establishment, a ordem estabelecida, as corruptelas da democracia. Mais do que mera aberração política, o que não deixam de ser, também são a demonstração trágica de um ressentimento profundo com um regime que não está à altura das expectativas que semeou. Como supradito, a democracia liberal é uma forma de democracia restrita, frágil e de curto alcance, mas que promete ser a forma mais bem acabada de representação da vontade de um povo. Contudo, graças a muitos anos de propaganda ideológica e décadas de hegemonia neoliberal, democracia liberal se tornou sinônimo de democracia, não havendo qualquer distinção entre as duas coisas. De tal forma, as limitações liberais se tornaram as limitações da democracia, já que ela passa a ser a representação única do que pode ser a forma democrática.

Sem adentrar profundamente nas questões, o que pode ser feito em outro momento, a democracia liberal tem como fundamental limitação seu caráter alienante. Ao invés de fundamentar um poder do povo (demokratia), a configuração liberal cria uma série de mecanismos para que o povo fique de fato afastado de qualquer dimensão decisória – salvo eleger representantes, esses também afastados e desconexos daqueles que os elegeram. Afastados das esferas de poder (real), o demos da democracia não compreende os complexos caminhos da democracia liberal, apenas entende que esse espaço não é para ele. Pior quando percebe que até mesmo onde parece haver avanços, são na sua maioria avanços formais, na letra. Quanto a avanços substanciais, uma série de entraves surge para impedir. A democracia liberal cria uma separação artificial entre o político e o econômico, facilitando que as elites econômicas ditem os rumos da vida nacional e neutralizem qualquer ação política que possa intervir. No caminho inverso, também, utilizam sua influência para colonizar o espaço político. No fundo, as massas sentem que qualquer controle sobre as suas próprias vidas lhes é arrancado, desfigurado e escondido. É no seio dessa estrutura que formaliza a igualdade e a liberdade, que a desigualdade e a dominação geram o tão justificado ressentimento. Infelizmente, tal insatisfação também pode ser canalizada para projetos abomináveis como fascismo. 

Diagnosticar os limites e falhas da democracia liberal e de que modo o ressentimento gerado por estes dá caldo popular às aspirações do fascismo, não significa ignorar os avanços concretos ocorridos durante a democracia liberal. De todo modo, é apontar precisamente o que a democracia liberal não possui e ativamente age para suprimir: controle social e poder popular. É identificar que é em sociedades na qual o povo é afastado do controle que projetos como o fascismo podem se afirmar. É identificar que o antídoto para projetos autoritários é o exercício do poder e possibilidade de controle por aqueles que de fato constroem, mantêm e sustentam a sociedade. Isto é, criar as instituições e estruturas que possibilitem à classe trabalhadora retomar os rumos da vida coletiva que construímos. Instituições tais que deem à classe o poder de controlar a ação econômica, para que esta seja subjugada aos interesses populares e não o povo aos interesses do mercado. É para que, na compreensão de que não existe esfera que não seja política, possamos construir uma política ativa na qual a construção coletiva de projetos, diretrizes e caminhos seja o cerne. Isto é, reativar o demos da democracia. Em outras palavras, é a afirmação necessária de uma democracia real, substantiva, popular. Uma democracia da classe trabalhadora. É afirmar o projeto socialista. 

 

* Mestrando de Filosofia e militante do Afronte-RS.