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BRASIL

Bonaparte e Bolsonaro: Tragédia e farsa

André Barreto*, de Niterói, RJ

Poderíamos falar em bonapartismo no caso do bolsonarismo? Ora, analisando a obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, de Karl Marx (1), parece possível identificar alguns traços em comum, e a esse respeito trataremos de forma sucinta nesse pequeno material de reflexão.

Começaremos pelo lema de Luís Bonaparte e seus aliados contrários aos proletários insurgentes de sua época, considerados “inimigos da sociedade”. O lema: “Propriedade, família, religião, ordem”. (2) Um lema que poderia certamente ter sido o lema de Bolsonaro em sua campanha eleitoral no Brasil de 2018. Afinal, não foram poucas as vezes que se pode ouvir Bolsonaro ancorar seus princípios na “propriedade, família, religião, ordem”, essencialmente a propriedade privada, a família patriarcal, a religião cristã, e a ordem do capital.

Contudo, Marx nos oferece outra questão muito similar a algo ocorrido sobretudo durante as eleições de 2018, quando fala que simples reivindicações liberais, republicanas e democráticas, eram tratadas como “socialismo” pelos políticos bonapartistas. E embora na conjuntura de Bonaparte de fato existisse um movimento socialista e revolucionário, o tal “perigo vermelho” como se diz, no Brasil atual da conjuntura do bolsonarismo esse perigo vermelho não passa de uma bravata, um recurso que continua sendo um importante elemento de agitação em um roteiro que parece ter virado célebre na boca de agentes da classe dominante querendo se colocar como salvadores na luta contra um inimigo supostamente perigoso para a sociedade. E nesse sentido Marx define: “As fezes da sociedade burguesa formam por fim a sagrada falange da ordem, e o herói Krapülinski faz a sua entrada nas Tulherias como “salvador da sociedade”.” (4) Krapülinski nesse caso é uma referência de Marx a Luís Bonaparte, mas poderíamos facilmente substituir por Jair Messias Bolsonaro, tido por seus eleitores como o “mito”, aquele responsável, nesse caso, por livrar o país da “petezada” ou “marginais vermelhos”.

Outro ponto comum à Bonaparte – Bolsonaro também se configura na relação destes com a educação – mais precisamente com a instrumentalização da educação. O imperador francês “com a lei do ensino tentava assegurar o antigo estado de espírito das massas, que lho fazia suportar.” (5) “Submetera o ensino do povo aos padres; os padres submetem-na ao seu próprio ensino.” (6) Enquanto que Bolsonaro por sua vez, desde sua campanha falava em escolas com ensino militarizado, e por decreto almeja militarizar 216 escolas nos próximos 4 anos (inicialmente).(7) No entanto, o objetivo parece o mesmo, ainda que 216 escolas a nível nacional possam não ser um número que de fato seja suficiente para uma preponderância desse modelo educacional no país, mostra um indicativo das intenções e anseios do atual presidente. Sobretudo por diversas falas nas quais se remete ao compromisso de erradicar uma suposta “doutrinação marxista” nas escolas brasileiras. E assim, denota sua total intenção de interferir ideologicamente no campo da formação de demais alunos Brasil adentro, reforçando ainda mais um elemento já presente na sociedade, que é o conservadorismo militaresco de importante parcela da população.

Todavia, outra similitude importante entre Bonaparte e Bolsonaro é seu desrespeito quanto às instituições democráticas, e a conivência direta ou indireta de instituições burguesas quanto a isso. A isso Marx destaca:

Durante as digressões de Bonaparte, as notabilidades burguesas das cidades departamentais, os magistrados, os juízes comerciais etc., recebiam-no em toda parte, quase sem exceção, do modo mais servil, mesmo quando, como em Dijon, atacava sem reservas a Assembleia Nacional e especialmente o partido da ordem. (8)

Ora, não são poucos os casos em que Bolsonaro desafiou e testou os limites da democracia burguesa no Brasil. Como no caso em que disse em discurso para militares e para quem quisesse ouvir que “democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Forças Armadas assim o quer”. (9) Ou seu filho, Eduardo Bolsonaro, quando disse que “para fechar o órgão máximo da Justiça brasileira bastaria um soldado e um cabo”. (10)

Surpreende, no entanto, que tais falas tenham sido até reprovadas por alguns integrantes do próprio STF à época, com as efetivas notas de repúdio, mas, medidas realmente efetivas mediante a gravidade de tais declarações, não existiram. 

Contudo, diante dos últimos desdobramentos políticos do país, que escancararam a disputa existente dentro da própria classe dominante, parece ter feito com que o próprio STF acordasse de sua conveniente leniência golpista de pouco tempo atrás. E finalmente parece estar agindo de forma concreta, como no caso das investigações sobre fake news, que atinge diretamente as bases de apoio do governo Bolsonaro. E que segundo apuração de uma matéria do jornal Folha de S. Paulo, tal investida do STF no inquérito das fake news também se trata de uma “demonstração de força” do judiciário contra o governo e seus aliados. (11)

Não obstante, na seguinte passagem de uma reportagem feita pelo Estado de São Paulo, é possível verificar mais um capítulo dos recentes atritos entre os poderes executivo e judiciário. Assim como suas respectivas preocupações, ambos, de maneira irônica, se sentindo acuados um pelo outro:

Uma das preocupações de ministros do STF é saber até onde o governo vai esticar a corda e desistir dos instrumentos legais para confrontar o Judiciário, o que elevaria a crise a outro patamar. Nesta quinta-feira, Bolsonaro disse que não admitirá “decisões individuais” e “monocráticas”. Bolsonaro fez um alerta velado ao Supremo, dizendo: “Chega”. “Acabou, porra!”, esbravejou o presidente. “Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoais certas ações”, disse. (12)

Porém, essa nova postura do STF frente às atrocidades do governo Bolsonaro só fazem ampliar as contradições da presente conjuntura, e isso significa também uma ampliação das tensões entre as frações da burguesia interessadas em despontar como frações diretoras da dominação burguesa no Brasil. O grande pacto, “Com o Supremo, com tudo” (13) como dito por Romero Jucá lá atrás, ainda durante o processo de golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, parece está se dissolvendo aos poucos. E em meio a todo caos que o país passa, insuflado pela pandemia da COVID-19, com um sujeito que jamais escondeu suas aptidões para o autoritarismo como chefe do poder executivo, fica difícil saber se as tais instituições democráticas ao fim conseguirão frear tamanha escalada autoritária e golpista contra nossa já tão precária democracia e, além disso, se tais instituições terão real interesse em fazê-lo. 

Por fim, outras relações possíveis são visíveis em alguns elementos, como por exemplo, a contradição do apoio de grande parte da classe subalterna (camponeses) quanto a figura de Luís Bonaparte, que obviamente não os representava enquanto classe; ou  a crise de dominação da burguesia à época de Bonaparte, crise que gerou atritos dentro da própria classe dominante, disputas pelo poder e pelo modo de gerir tal poder. (14) Ambos os exemplos se assemelham com o ocorrido no Brasil de hoje, como as disputas dentro das camadas da classe dominante brasileira, de onde Bolsonaro soube se sobressair, aglutinando setores de sustentação nas forças armadas, determinada parcela de empresários abutres dispostos a financiar toda uma escalada de digressões a democracia burguesa, que parece não mais satisfaze-los plenamente. Assim como considerável parcela da própria classe trabalhadora insatisfeita com figuras da chamada “velha política”. Como também seu “lumpemproletariado” (15) disposto a legitimar toda brutalidade de seu governo.

Fato é que embora Bolsonaro não tenha criado uma sociedade “beneficente” com fins de agitação e pressão política como a “sociedade de 10 de dezembro”(16) criada por Bonaparte em seu contexto político. Não significa que determinada parcela de seu eleitorado vulgarmente chamado de “minions” não tenha se organizado para fins semelhantes ao do lumpemproletariado bonapartista. Este grupo de sustentação do bolsonarismo, mesmo após toda uma série de atitudes desumanas e prejudiciais a eles próprios em grande medida, permanece, de forma quase que inabalável e doentia, a apoiar seu líder Messias. 

Mesmo num momento de pandemia, na qual a covid-19 leva à morte milhares de pessoas no mundo inteiro, seus apoiadores se mobilizam para manifestações contrárias a constituição, clamando por intervenção militar, ou até mesmo contrárias a medidas recomendadas pela própria OMS para combate ao vírus e salvar vidas. E esses perigosos “cidadãos de bem” acabam por representar a “força combatente”(17) do bolsonarismo, se reunindo para fazer ameaças, ataques físicos e verbais contra instituições da República, como o próprio STF(18), jornalistas(19), pessoas comuns (20), antigos aliados que por ventura tenham abandonado o barco da missão bolsonarista, como o antigo ministro da justiça, Sérgio Moro. Que num passe de mágica passou de um dos heróis da nação a um “traidor comunista”. E atacam até mesmo enfermeiros (21), responsáveis por salvar vidas em meio à pandemia de coronavírus.

Ou seja, a sociedade de 10 de dezembro de Bolsonaro, mesmo que não oficializada, opera significativa agitação política a seu favor, como também serve de base social para sua paulatina ascensão autoritária. 

Resta saber se as correlações de força em disputa, e até mesmo a disposição de parte da burguesia em apoiar Bolsonaro num projeto autoritário de governo, poderá lhe oferecer condições concretas para que possa fazer como Bonaparte em 1851, e operar um autogolpe, no qual com plenos poderes opere a tragédia de um novo período obscuro do Brasil.

E assim, parece ser suicídio para a classe trabalhadora esperar que antigos aliados do bolsonarismo, responsáveis diretos e indiretos por sua atual colocação, sejam responsáveis por seu impedimento. É preciso mobilizar a opinião pública e trazer o poder popular para essa disputa, tensionando-a ao nosso favor. Caso contrário, estaremos entregues a própria sorte de consequências imprevisíveis e talvez dramáticas de mais uma costura orquestrada pelo alto na história brasileira.

 

* Historiador, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

NOTAS

1 – Optamos por analisar para além do conceito, o processo histórico estudado por Marx que deu base para o entendimento do autogolpe de Bonaparte em 1851.

2 – MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. In: ______. A revolução antes da revolução. Vol. 2. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 220.

3 – Ibid., p. 221.

4 – Ibid. 

5 – Ibid., p. 263.

6 – Ibid., p. 322.

7 – Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-assina-decreto-para-militarizar-216-escolas-em-4-anos/ Acesso em: 15/10/2019.

8 – MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. In: ______. A revolução antes da revolução. Vol. 2. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 307.

9 – Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/07/democracia-e-liberdade-so-existem-se-as-forcas-armadas-quiserem-diz-bolsonaro-a-militares-no-rj.ghtml Acesso em: 15/10/2019.

10 – Disponível em: https://canalrural.uol.com.br/programas/informacao/mercado-e-cia/general-mourao-critica-declaracao-de-eduardo-bolsonaro/ Acesso em: 15/10/2019.

11 – Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/sigilo-de-inquerito-das-fake-news-deixa-pgr-e-advogados-no-escuro.shtml> Acesso em: 31/05/2020.

12 – Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/bastidores-stf-acompanha-com-atencao-se-bolsonaro-vai-cumprir-promessa-de-desobediencia/> Acesso em: 31/05/2020.

13 – Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html> Acesso em: 31/05/2020.

14 – MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. In: ______. A revolução antes da revolução. Vol. 2. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 199- 338.

15 – Resumidamente entendido como setores da própria classe trabalhadora composto por: miseráveis, mercenários, cafetões, bandidos, gente da pior espécie desprovida de consciência política e de sua própria classe que compunham a “sociedade de 10 de dezembro”, criada com intuito de agitação e pressão política a favor de Bonaparte. Marx discorre sobre tal sociedade e conceito de lumpemproletariado mais precisamente exemplificado em: MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. In: ______. A revolução antes da revolução. Vol. 2. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 275-278.

16 – Ibid.

17 – Ibid. p. 277.

18 – Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/policia-volta-a-prender-manifestantes-bolsonaristas-acusados-de-ameacar-ministro-do-stf.shtml> Acesso em: 23/05/2020. Ou o ato mais recente em resposta às operações da PF contra investigados no inquérito sobre fake news. Liderados por uma das investigadas, Sara Winter, os auto-intitulados “os 300”, munidos de tochas e máscaras, marchavam em manifestção ao STF. Didsponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/grupo-pro-bolsonaro-protesta-em-frente-ao-stf-com-tochas-e-mascaras.shtml >. Acesso em: 31/05/2020.

19 – Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/05/03/fas-de-bolsonaro-celebram-dia-da-liberdade-da-imprensa-socando-jornalistas.htm> Acesso em: 23/05/2020.

20 – Disponível em: <https://revistaforum.com.br/brasil/identificado-o-bolsonarista-que-agrediu-uma-mulher-na-manifestacao-de-porto-alegre/> Acesso em: 23/05/2020.

21 – Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaristas-que-agrediram-enfermeiros-em-brasilia-sao-identificados-e-serao-processados,70003290410> Acesso em: 23/05/2020.