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BRASIL

Das arquibancadas para as ruas: antifascismo e o papel da esquerda

Caetano Branco e Lucas Fagundes, de Porto Alegre, RS

O Brasil passa por um momento de crise política em meio a maior crise sanitária deste século. A pandemia do COVID-19 já vitimou mais de 28 mil pessoas. Se já não bastasse o perigo que a doença representa biologicamente para nós, o governo Bolsonaro vem realizando um esforço diário para cometer um verdadeiro genocídio. Sem ministro da saúde há mais de duas semanas Bolsonaro deixa explícito a cada dia seu viés negacionista da ciência e da vida.

Em meio a esse caos instaurado pela extrema-direita que está no poder, surgem por todo país formas de resistência. Cerca de quatro semanas atrás surge em Porto Alegre um núcleo antifascista de luta não organizado, mas agrupado em torno de um ideal maior: impedir as manifestações antidemocráticas. Os primeiros atos se configuram de forma não violenta e confrontam as manifestações fascistas que tradicionalmente se concentram em frente aos quartéis do exército no centro da cidade. A primeira manifestação antifascista foi inesperada para aqueles que nos últimos tempos se acostumaram a destilar seu fascismo livremente e ocorreu após um episódio de violência proferida por um indivíduo bolsonarista contra uma mulher que passava pelo local. Desta forma, um final de semana após o outro os atos antifascistas em Porto Alegre crescem e junto ajudaram a espalhar a iniciativa por todo o país.

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Em São Paulo, por exemplo, a torcida Gaviões da Fiel convocou atos antifascistas para a Av. Paulista com intuito de intimidar e impedir os atos fascistas marcados para o mesmo local, assim como organizado anteriormente em Porto Alegre com presença de torcedores antifascistas de Inter e Grêmio.

A partir desta breve contextualização dos antecedentes, achamos importante entender o papel das torcidas e movimentos de arquibancada de modo geral no contexto da luta pela democracia. Tem sido comum no decorrer dos atos antifascistas vídeos e imagens dos grupos e torcedores dos mais diversos clubes circulando pelas redes acompanhado de mensagens daqueles que compartilham trazendo a ideia de “agora ficou sério” ou “quero ver fascista encarar agora”. Sobre esse tipo de abordagem é preciso tomar cuidado, uma vez que movimentos de arquibancada são muito além da ação direta física.

Relacionar a presença dos movimentos de arquibancada com a violência (ainda que legítima) é uma forma complicada de lidar com a situação. As torcidas cumprem um papel de organização política e social tanto quanto uma organização de juventude universitária ou um partido político tradicional, as instâncias mudam mas o papel delas não pode ser esquecido para além do confronto. Insistir neste discurso pode inclusive servir de apoio para a própria criminalização dos movimentos antifascistas que já estão em curso por todo o país, e principalmente a criminalização das torcidas que já é uma realidade latente desde a década de 1990, com o início do processo de elitização dos estádios no Brasil, e agravada pela Copa do Mundo de 2014. Portanto, quando falamos na presença das torcidas/movimentos antifascistas de arquibancada devemos tratá-los como movimentos legítimos de uma realidade própria (dos estádios e bancadas) mas não descolados da realidade social e política da qual nós vivemos, e justamente por isso que estão nesta luta.

Jamais podemos tratar as organizadas como uma espécie de “tropa de choque” antifascista, ainda que devido ao seu contexto de construção lidem com o confronto físico muito mais frequentemente que outros tipos de organizações, uma vez que a repressão policial nos estádios e entornos é gigante e tem como objetivo, em conjunto com a grande mídia, estigmatizar os torcedores como violentos e agressivos. As grandes operações policiais que repreendem os atos da militância durante as agendas de lutas é experimentada todos os domingos por torcedores organizados. Não podemos esquecer que são nas torcidas organizadas e movimentos de arquibancada que concentram-se majoritariamente torcedores negros e periféricos no contexto da elitização dos estádios. As torcidas organizadas representam hoje núcleos fortes de resistência popular dentro do esporte. Elas garantem não só a festa nas arquibancadas como também o direito às classes populares pertencerem ao espetáculo do futebol, uma vez que a elitização vem afastando cada vez mais estes dos estádios. Portanto, o papel político e social das torcidas vem desde muito antes das atuais manifestações antifascistas e não são meramente “porradeiros”, há autodefesa, há ideologia, há responsabilidade social, há consciência de classe.

O futebol é parte de nossa sociedade e tem poderoso papel de transformação nela, as massas acompanham o esporte para além do que ocorre no campo, o futebol é fator de união também fora dele. As amizades e as formas de se organizar em torno dele geram uma poderosa identidade e é através dela que a união cresce em prol de uma ideologia. Assim como qualquer outra instância da sociedade, é um espaço de disputa. Há uma forte cultura machista, racista e homofóbica que permeia as arquibancadas no Brasil, uma reprodução daquilo que ocorre na sociedade em geral, é nesse contexto que os movimentos antifascistas se colocam centralmente, seja com inserção direta nos núcleos das torcidas tradicionais, seja com a criação de movimentos periféricos à ela e que possam realizar este combate e disputa ideológica.

Neste contexto da luta, como esquecer de exemplos históricos como a Democracia Corinthiana que tinha como slogan “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia” e que revolucionou o futebol no anos 1980 com os jogadores realizando autogestão do time, uma iniciativa combativa em consonância com a realidade política do país que vivia em meio a ditadura militar que silenciava qualquer forma de manifestação democrática. Além da Democracia, podemos lembrar da Coligay, primeira torcida LGBT do país, nascida em 1977 e que tinha integrantes desde lá lutando contra a homofobia nos estádios e no país.

Se pensarmos em exemplos mais recentes de resistências através do futebol, vamos lembrar a presença massiva e unificada das Barras Bravas chilenas nos protestos contra o neoliberalismo e a figura de Pinera no país. No Brasil já existe uma organização que busca unificar todos os movimentos antifascistas de arquibancada, a Torcidas Antifas Unidas – Brasil (TAU-Brasil), que cumpre papel de união e diálogo entre movimentos e torcidas de todo o país, uma vez que as batalhas não se fazem isoladas. Assim como no Chile, o slogan desta unidade tem sido: Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classe.

É dever dos partidos progressistas, das organizações do movimento social e estudantil entender que as torcidas antifas nas ruas hoje, criam uma nova condição de análise e nos exigem maior responsabilidade. Qual a centralidade do debate colocado nas ruas hoje? Temos de um lado fascistas à solta, bradando pelo fechamento do STF, do Congresso e por  Intervenção militar. Do outro, antifascistas organizados em defesa da Democracia, isolando a ínfima minoria que pede a volta dos militares ao poder. Não é difícil escolher.

Mas ao mesmo tempo não há espaço para discursos pragmáticos de caracterização da direção dos movimentos e debates acalorados sobre os rumos das ações nas ruas. Não podemos esperar que as torcidas e movimentos antifas sigam nosso roteiro político de ação.

Hoje há um consenso no país que é a presença de um fascista convicto na cadeira presidencial e todos os setores dispostos a se arriscarem em defesa da democracia têm de sair às ruas.

Nem sempre há definições dentro da nossa cartilha militante, e isso é bom. Muito. As insurreições populares contra Bolsonaro têm de serem novidade no país, algo totalmente inesperado para que a maré vire. Para atuar sobre isso, é preciso, em primeiro lugar estarmos nas ruas. Com segurança, aqueles que puderem se somar e não tiverem contato com grupos de risco, a hora é agora.

Vivemos dias decisivos como temos dito frequentemente nas análises conjunturais e como vemos na prática. A luta de classes se acirrou com a chegada da pandemia e hoje existe uma disputa pra ver o que é pior ao Brasil: o fascismo evidente do Presidente ou a pandemia que já infectou mais de meio milhão de pessoas e já nos levou 30 mil vidas.

Nossa tarefa urgente é colocar os fascistas, que são minoria na base de apoio ao presidente, de volta em casa. Se eles não podem ser presos, e ainda são protegidos pela Polícia Militar, além de incentivados pelo presidente, devem ficarem trancados em casa. Escondidos no seu  cercadinho. E essa reação só pode vir da esquerda. Seja ela partidária, sindical, ou  independente. A Frente Única Antifascista não é uma mágica, têm que ser construída em  diversas esferas e em níveis diferentes de ação!

Nenhuma liberdade aos inimigos da liberdade!

 

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