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Crítica à ‘estimativa’ da Funcional Health Tech

Travesti Socialista

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Vários órgãos de imprensa divulgaram uma ‘estimativa’ realizada pela Funcional Health Tech que afirma que o pico de infecções ocorrerá em julho, com 1,7 milhões de pessoas infectadas [1]. Algo de errado não está certo: uma pesquisa científica feita pela UFPel [2] e publicada em 25 de maio estimou que entre 1,3% e 1,6% da população (entre 2,7 e 3,4 milhões de pessoas) já havia sido infectada. Verifiquei a fonte e fiquei estupefata com a falta de rigor científico.

Os parâmetros da ‘estimativa’ e a imaginação fértil

Notei que o modelo utilizado, SEIR, é o mesmo que utilizo no meu [3]. Explicando resumidamente, ele divide a população em suscetíveis (que ainda não foram infectadas), expostas (infectadas, porém ainda sem sintomas), infecciosas (com sintomas) e removidas (pessoas que já se recuperaram ou faleceram). O problema são os parâmetros, que estão totalmente fora da realidade.

O conteúdo é podre, mas a embalagem é bonita. A empresa desenvolveu um aplicativo bastante atrativo, onde se permite ao usuário escolher (sim, escolher!) quais parâmetros utilizar na estimativa. Os valores padrão desses parâmetros, que geram a ‘estimativa’ que foi divulgada na imprensa, são absurdos e estão totalmente fora da evolução real da doença.

Por exemplo, o parâmetro gama (taxa I para R) representa a taxa de remoção (recuperação ou morte) de pessoas infectadas e é ajustado para 0,3. Esse parâmetro é o inverso do período de infecciosidade (o tempo desde a aparição do primeiro sintoma até recuperação ou falecimento), que seria, nesse modelo, de 3,3 dias, um tremendo absurdo.

Os resultados dos estudos científicos variam, mas todos eles apontam um período de infecciosidade muito maior. Por exemplo, em um estudo [4], o período de infecciosidade variou de 2 a 20 dias, com média de 9,5 dias. Em outro [5], desde a aparição do primeiro sintoma, na maioria dos pacientes, demorou mais que 10 dias para a resposta dos anticorpos e o vírus ainda era detectado após 20 dias em um terço dos pacientes.

Já o parâmetro alfa (taxa E para I), ajustado para 0,9, é o inverso do período de incubação, ou seja, período desde a infecção até a aparição do primeiro sintoma. Isso significa que se pressupõe um período de incubação de 1,1 dia. Novamente, isso é um absurdo: o período de incubação, de acordo com estudos científicos, varia de 2 a 14 dias e média de 5 dias [6] – em raros casos, pode chegar a três ou quatro semanas.

Resumindo: somando incubação e infecciosidade, uma pessoa infectada leva em torno de 14,5 dias até se recuperar ou falecer, mais de três vezes o período considerado no modelo.

Um olhar mais atento nota que a ‘estimativa’ da Funcional Health Tech nem sequer se pretende científica. Logo ao abrir o repositório do código-fonte [7], lê-se o aviso:

ADVERTÊNCIA: os modelos e números aqui apresentados não são afirmações formais médicas sobre o progresso da doença, mas apenas exercícios que demonstram técnicas de modelagem e cenários hipotéticos de aplicação.

Assim a empresa lava as mãos para os resultados das estimativas e tira os parâmetros da imaginação, ou sabe-se lá de onde!

A subnotificação é ignorada

Outro óbvio problema do modelo é que ele utiliza o número de casos confirmados como se representasse o número total de infectados no país. É por isso que, por exemplo, para a Funcional Health Tech, o número total de infectados será cerca de 1,7 milhões, enquanto, considerando a estimativa da UFPel, esse era o número total de infectados na metade de maio!

A diferença é que a estimativa realizada pela UFPel é científica. Ela foi feita com mais de 25 mil amostras em 133 municípios do país [2]. Nela, concluiu-se que, para cada caso confirmado, há entre 7 e 9 pessoas infectadas. Considerando esse resultado, no dia 15 de maio, 220.291 pessoas haviam sido confirmadas, portanto o número total de infectados estava entre 1,5 e 2,0 milhões. Dia 1 de junho, o número de confirmados foi de 526.447, portanto o número total de infectados está entre 3,7 e 4,7 milhões de pessoas.

É preciso desmascarar as ‘estimativas’ anticientíficas

É realmente muito difícil fazer um modelo matemático da COVID-19 no Brasil. A política de testagem desse país é um lixo: além da subnotificação enorme, como demonstrado pela pesquisa da UFPel, os dados contém muitas oscilações e inconsistências. Em um dia, por exemplo, pode haver um salto grande na quantidade de recuperados; em outro, um salto no número de mortes.

Segundo o G1 com dados coletados junto às secretarias de saúde dia 2 de junho, cerca de 910 mil testes foram aplicados no Brasil [8]. Isso é, em média, 1,7 teste para cada caso confirmado. Esse número é ridículo, é o menor entre todos os países cujo número de testes são divuldados pelo Our World In Data [9]. Entre estes, os que estão efetivamente controlando a pandemia (com redução do número de casos ativos) aplicam mais de 9 testes para cada caso confirmado.

Por exemplo, é possível estimar os parâmetros do modelo com dados das últimas duas semanas ajustados de acordo com a estimativa da UFPel. Outra forma é utilizar os parâmetros obtidos nesses estudos. Os resultados variam muito, mas todos apontam mais de 160 milhões de pessoas infectadas ao todo até o final da pandemia, com um pico entre agosto e setembro.

Nenhuma estimativa é perfeita, por mais científica que seja. Por isso, as mais sérias sempre divulgam margem de erro e nível de confiança. Entretanto, é um absurdo que a imprensa divulgue uma ‘estimativa’ que não se encaixa nos dados nem nas estimativas, nem nos estudos científicos. É inaceitável que seja divulgada uma ‘estimativa’ com parâmetros imaginários.

 

NOTAS

[1] Encontrei notícias da pesquisa nos seguintes veículos.

Estado de Minas: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/06/01/interna_nacional,1152719/brasil-passara-de-1-7-milhao-de-infectados-em-julho-diz-pesquisa.shtml 

Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/05/pico-da-covid-19-no-brasil-se-dara-em-6-de-julho-diz-estudo.shtml
IstoÉ: https://www.istoedinheiro.com.br/pico-da-covid-19-no-brasil-com-17-milhao-de-contaminados-sera-em-6-de-julho-aponta-pesquisa/
MSN: https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/pico-da-covid-19-no-brasil-com-17-milh%C3%A3o-de-contaminados-ser%C3%A1-em-6-de-julho-aponta-pesquisa/ar-BB14SKR3 

Plataforma Media: https://www.plataformamedia.com/2020/05/pico-da-covid-19-no-brasil-sera-a-6-de-julho/ 

[2] https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/05/25/brasil-tem-sete-vezes-mais-contaminados-por-covid-19-do-que-mostram-as-estatisticas-oficiais-aponta-pesquisa-da-ufpel.ghtml 

[3] O código-fonte do meu modelo encontra-se em https://github.com/jessymilare/EndemicModel.jl 

Note que, neste modelo, os parâmetros recebem nomes distintos do modelo da Funcional Health Tech.

[4] https://journals.lww.com/cmj/Fulltext/2020/05050/Persistence_and_clearance_of_viral_RNA_in_2019.6.aspx 

[5] https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30196-1/fulltext 

[6] https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/M20-0504 

[7] https://github.com/funcional-health-analytics/covid19-analytics 

[8] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/02/casos-de-coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-2-de-junho.ghtml 

[9] https://ourworldindata.org/coronavirus-testing 

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