Protestos populares, confusão jornalística e o corre-corre da razão  

Atilio Bergamini*, de Fortaleza, CE

São dezesseis parágrafos inacreditáveis, não fosse o fato de que nada mais é inacreditável neste pedaço de planeta saqueado e devastado ao qual os mercantilistas chamaram Brasil. Quem os escreveu foi Igor Gielow, jornalista da Folha. Coloco o link nos comentários.

No texto, o que não é mentira é preconceito. O que não é preconceito é estupidez. O que não é mentira, preconceito e estupidez é covardia.

O texto inicia falando de um “conflito” em atos pró-democracia. O conflito é assim descrito:

“Esse é o Brasil de 2020. Grupos radicais especulam golpes a favor de um governante, e torcidas organizadas conhecidas pela violência no trato à diferença se dispõem a ir às ruas para defender algo que chamam de democracia”.

“Torcidas organizadas conhecidas pela violência”? Ele está se referindo às torcidas antifascistas do Corinthians, do São Paulo, do Palmeiras e, como ele diz, “quetais” (não sei se tirando onda dos santistas e pontepretanos)? Mas não são justamente as torcidas antifa que dão a cara a tapa para se contrapôr ao machismo, à homofobia, ao servilismo político e à violência das torcidas nos estádios? Mais adiante, Gielow passa o recibo do seu desconhecimento: “Torcidas organizadas são o bolsonarismo com uma camiseta de time: pregam o ódio ao rival, a desunião e a submissão do adversário”. E assim, o que era um ato pró-democracia se transforma, na mágica pena do jornalismo das falsas comparações, numa “confusão”.

Igor Gielow desconhece a existência e a atuação das torcidas antifascistas e toma as torcidas que habitam os preconceitos de sua mente dual como as torcidas antifascistas reais. Mas não é a primeira confusão de sua “análise”, que, desde o título, é confusa.

E segue-se um dos esportes nacionais com maior torcida no jornalismo: comparações entre elementos incomparáveis. Neste caso, entre as torcidas antifascistas e bolsonaristas fascistas. São iguais, afirma Gielow: ambas as “torcidas” quebram a quarentena. Mas, na verdade, tudo bem pesado e “analisado”, não são iguais: as torcidas antifascistas são ainda piores do que os bolsonaristas fascistas, porque, enquanto aqueles não passam de gritalhões histéricos, as torcidas e seu “atávico desejo pelo confronto” oferecem real perigo. Por sua culpa, os bolsonaristas clamarão pela efetivação do artigo 142. E tem outra: enquanto os fascistas têm inspiração em movimentos norte-americanos, como a Ku Klux Kan, as torcidas (Gielow jamais informa que se tratam de torcidas antifa, para ele são torcidas violentas ou em busca de violência, nada mais) têm inspiração nos protestos “ante o assassinato do negro George Floyd”.

No tom utilizado por Gielow, inspirar-se nos protestos ante a morte de George Floyd parece ser igual ou pior do que imitar a Ku Klux Kan. “A influência americana se viu também na via contrária, com uma tentativa de associar os atos brasileiros com a revolta que se dissemina por cidades dos EUA ante o assassinato do negro George Floyd por um policial branco”.

Os trabalhadores que formam as torcidas antifascistas dos times de São Paulo pegam metrô e ônibus lotados diariamente, mesmo em quarentena, para manter a economia funcionando, mas isso nunca poderia ser imaginado pelas mentiras e preconceitos de Igor Gielow, que só se preocupa com trabalhadores quando estão unidos para protestar. Aí, eles são piores do que o fascismo.

O tom das últimas palavras da frase recém citada é preconceituoso, mesquinho e desumanizador, “o negro George Floyd”. A comparação entre os legítimos protestos dos povos negros contra o genocídio que sofrem e os protestos que imitam a Ku Klux Kan (!!!) é criminosa.

A cobertura da Folha em relação à revolta dos povos negros ao redor do mundo procura responsabilizar esses povos pela “barbárie”, pela “violência”, pelos “confronto”, pela “confusão” que estariam ocorrendo. Igor Gielow, obviamente, se continuar escrevendo assim, logo vai ser promovido.

O penúltimo parágrafo é uma mostra não apenas dos impasses do jornalismo analítico mas também da pressa em fazer profecias a partir de dados ausentes ou pouco analisados. Há uma mania cada vez mais contagiosa de cravar, minutos depois de algum acontecimento, o que, na essência daquele acontecimento, favorece ou desfavorece “esquerda” ou “direita”, Lula ou Bolsonaro, ou, enfim, um dos lados de alguma outra antinomia capenga à mão.

Por exemplo: mal a reunião ministerial de 22 de abril tinha sido divulgada, começaram a circular dezenas de textos dizendo que ela iria fazer isso ou aquilo, ou seja, ela mesma, a reunião, era o sujeito da história. Ela traria, em si mesma, as forças que derrubariam Bolsonaro ou que o sustentariam no poder. Bem adaptado ao espírito do tempo, Igor Gielow se sai com o seguinte parágrafo para os anais dos acontecimentos que trazem em si mesmo as determinações de todo o futuro:

“Na confusão, ganha o presidente cujo mandato está ameaçado por diversas frentes. A mensagem do decano é hiperbólica e será usada contra sua presunção de isenção daqui por diante, não muito diferente do corre-corre de corintianos, palmeirenses, são-paulinos e quetais neste domingo.”

O decano é Celso Mello que, para o gosto de Gielow, exagerou ao comparar o momento atual com o nazismo. Nada de hipérboles, clama Gielow, do alto da expertise comparativa de quem aproxima os movimentos negros com a Ku Klux Kan. Gielow afirma que o mandato do presidente está ameaçado “por diversas frentes”, mas, nessas frentes, obviamente, não cabe o povo que luta e se organiza nas torcidas antifa, pois estes só causam confusão e corre-corre.

Está portanto metafisicamente determinado que quem ganha com o protesto pró-democracia em São Paulo é Bolsonaro. Contudo, talvez haja uma essência que não podemos nos abster de comentar: “na confusão”, deslegitimar qualquer organização popular democrática é necessidade “atávica” dos jornalões. Não surpreende que Gielow seja um dos principais analistas da Folha.

 

*Atilio Bergamini é professor do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC)