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A MP da grilagem e seus grilos

Agência Brasil

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Pedro Cassiano*, de Niterói, RJ

A grilagem é tão antiga quanto o Brasil. Usado para a legalização de terras públicas invadidas, a grilagem consiste, basicamente, na confecção de um falso título de propriedade. O termo origina-se do processo de envelhecimento de documentos: colocava-se grilos em uma caixa com o falso título de propriedade para que a ação dos insetos conferisse aparência de velho ao documento. Hoje em dia, entretanto, a grilagem se sofisticou, e os “grilos” que são colocados dentro da caixa possuem mandato parlamentar e estão em associações empresariais fortíssimas. O papel chama-se Medida Provisória 910 (MP 910).

O que diz a MP 910

A Medida Provisória 910 altera dispositivos de leis anteriores de regularização fundiária (Lei nº 11.952 de 2009, lei nº 8.666 de 1993 e lei nº 6.015 de 1973), concedendo o título de propriedade de imóveis rurais de até 15 módulos rurais[1] de terras da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que foram invadidas até o ano de 2014. Em outras palavras, se um indivíduo comprovar que ocupa uma terra pública (a dimensão pode chegar a mais de 15 estádios de futebol) ele pode receber o título de propriedade daquela terra pagando um preço muito abaixo do mercado.

O geógrafo e professor da UERJ Paulo Alentejano demonstrou como é possível associar o exponencial aumento do cadastramento de imóveis rurais no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) à MP910, pois o cadastro no sistema baseia-se na autodeclaração do pretenso proprietário ao SNCR e isso já o torna candidato à legalização de terras públicas invadidas caso a medida seja aprovada.

Existem diversos outros mecanismos importantes previstos na MP, mas destacamos dois deles. O primeiro é o art. 15 §7, que diz ser possível dar como garantia a terra em processo de regularização mesmo que não esteja quitado seu pagamento. Ou seja, o requerente da terra poderá contrair crédito em bancos públicos ou privados dando como garantia do empréstimo a propriedade da terra mesmo sem ter quitado seu pagamento e com o título definitivo nas mãos.

O segundo é o art. 33 §1, segundo o qual a função de monitoramento da atividade fundiária federal passará do INCRA para a Secretaria de Assuntos Fundiários vinculada ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA). Historicamente, o INCRA é o principal órgão que gere a política de reforma agrária estabelecida pela Constituição de 1988. Assim, a transferência da atividade fundiária do INCRA para o MAPA comprova o esvaziamento de mecanismos e órgãos de combate à desigualdade fundiária do país.

Os grilos: quem são e o que dizem os defensores da MP 910

Um dos mais barulhentos grilos da MP910 é o ex-dirigente da União Democrática Ruralista (UDR) Luiz Antônio Nabhan Garcia. Atualmente ele comanda a Secretaria de Assuntos Fundiários e foi um dos elaboradores e defensores da MP910. Podemos afirmar que ele não representa o agronegócio como um todo, mas sim os setores mais conservadores e atrasados do ruralismo brasileiro. Nabhan Garcia é um autêntico “bolsonarista raiz” que não se cansa de prestar homenagem e apoio ao presidente em suas redes sociais.

No início de maio, em sua conta no Twitter, ele retuitou a mensagem de apoio do presidente à aprovação da medida acrescentando que “Ao contrário do que a oposição extremista ligada aqueles que apoiam invasões de terras e a indústria de acampados e assentados alega, a MP 910 a ser aprovada no Congresso Nacional, trará mais dignidade e segurança jurídica a todos que vivem, trabalham e produzem no campo”.

A linha argumentativa da proteção legal de pequenos produtores rurais defendida por Nabhan Garcia é o “cricrilejar” dentro da caixa.

Em notícia veiculada em seu site, os grilos da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) afirmam que os principais beneficiários da medida seriam os pequenos produtores (em torno de 900 mil famílias, segundo dados do INCRA) que passariam a ter seus títulos de propriedades. “[…] a Frente Parlamentar da Agropecuária esclarece, em seu pedido, que a Medida Provisória 910/19 nada tem a ver com a ação de grileiros, muito pelo contrário”.

Em nota oficial, o “cri-cri” da CNA é semelhante ao da FPA: a Confederação alega serem os pequenos e médios produtores e suas famílias o público-alvo da medida e acrescenta a importância do direito inalienável da propriedade como princípio básico para o aumento da produtividade.

As consequências da garantia do direito de propriedade, materializada por meio do título, são o aumento da produtividade, maior geração de renda e aumento da segurança jurídica, possibilitando maior injeção de recursos oriundos de operações de crédito.

A aquisição de crédito em bancos está presente na MP, sob o entendimento que o endividamento seria importante para o aumento da produtividade. Dessa forma, a MP empurra os pequenos proprietários ao endividamento. Não precisa ser nenhum gênio para entender o que o banco toma a propriedade se o crédito não for pago, o que realimenta a conexão entre bancos e a propriedade da terra, característica da financeirização.

Em nota, diversas entidades dos movimentos sociais do campo já haviam denunciado a inconstitucionalidade da medida. Os grileiros – prepostos, em grande medida, de outros proprietários de escalas variadas – avançam sobre os territórios de conservação e executam queimadas de floresta o que se configura como crime ambiental. O Ministério Público Federal (MPF) divulgou recentemente um vídeo que expõe críticas à medida e cobram a sua não aprovação pelo Congresso. Nas palavras da Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, essa medida regulariza o crime de invasão de terras por grileiros, inclusive em áreas ocupadas em terras indígenas e quilombolas:

A medida provisória 910 tem muitas perversidades. A primeira delas é que ela regulariza o crime, o crime de invasão de terras públicas. Mas ela também é incoerente em época de covid, porque quando se precisa tanto de dinheiro público, ela dispõe de maneira generosa de um estoque de terras de mais de 70 milhões de hectares, com um impacto enorme no desmatamento, também da ordem de milhões de hectares. E o que é pior, ela é feita sem maiores controles, o que pode indicar regularização dentro de áreas indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais, trazendo mais desassossego para essa gente que sofre tanto na atualidade.

Além de tudo isso, a medida não fornece nenhum tipo de mecanismo para a averiguação e controle das propriedades.

O site De olho nos ruralistas mostra ainda que políticos têm interesses pessoais envolvidos com a aprovação da lei, como o grilo-senador Irajá Abreu (PSD-GO), filho da senadora Kátia Abreu, que propôs algumas alterações na MP. Ele possui negócios no setor de imóveis rurais no seu estado. Seu padrasto, Moisés Pinto Gomes, também poderá ser diretamente beneficiado com a aprovação da lei, pois administra o Fundo Matopiba, criado para aquisições de terras produtivas na região, que fica na divisa entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é foco de intensos conflitos entre grileiros, indígenas e quilombolas.

Grilos fora da caixa? O posicionamento da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG)

À primeira vista, o comportamento da ABAG parece dissonante em relação às demais entidades da classe dominante rural sobre o tema. A associação retuitou o jornal Valor Econômico, que apresentava os principais problemas com a aprovação da MP da grilagem. Em entrevista ao Globo Rural, o presidente da ABAG, Marcello Brito, disse que o “ótimo é inimigo do bom”, afirmando que a MP 910 não é perfeita, mas os marcos da regularização fundiária precisam ser revistos. Até o presente momento, a associação não publicou nota oficial de apoio em seu site, tampouco em suas redes sociais.

É possível entender essa postura timidamente crítica à MP como um sinal de outros interesses maiores do agronegócio, principalmente ligados à internacionalização de terras brasileiras. Três associações de comércio das terras figuram entre as sócias da ABAG. Não é do interesse do agronegócio que essas terras caiam nas mãos de grileiros tradicionais, mas sim nas mãos do capital internacional. Seu horizonte parece estar mesmo direcionado ao mercado especulativo de terras, que é altamente lucrativo e promissor. Assim, alguns grilos do agro parecem saltar para fora da caixa em nome da preservação da especulação e do promissor estoque de terras públicas.

Associado ao posicionamento discreto nesse debate, evidencia-se certo desconforto da ABAG em continuar ao lado do governo Bolsonaro. Em artigo recente, intitulado “A importância das grandes e pequenas questões”, as críticas da ABAG ao governo subiram de tom. O artigo menciona abertamente a “negação e descrédito a ciência”, a troca do ministro da saúde no meio da pandemia, e enfatiza fortemente os “ataques irresponsáveis” contra a China, vistos como pontos negativos das ações políticas do governo que dificultam a condução da recente crise no Brasil. O texto termina afirmando que:

Países não fecham, mas vão à ruína. Precisamos de lideranças que pensem no País, na população mais vulnerável e nos empregos e no mais importante, que a vida do seu povo. Não é momento para vinganças políticas, rompimentos, nem para oportunistas de plantão visando cargos e benefícios pessoais. O momento é união e reconexão.

Isso significa uma ruptura com o governo Bolsonaro? Não é possível saber ainda. O que se pode afirmar é que o desconforto foi publicamente divulgado e podemos estar diante de alguns grilos gritando e pulando para fora da caixa.

Atualização

A MP 910 caducou por não ter sido votada em 120 dias e será substituída pelo Projeto de Lei 2633/2020 de autoria do deputado Zé Silva (SD-MG). O projeto contém modificações em relação à medida, como a diminuição de 15 para 6 módulos rurais para conceder o título de propriedade somente com a autodeclaração e o marco temporal a concessão foi alterado para 2008, conforme prevê o Código Florestal. Isso não pode ser considerado uma vitória sobre a legalização da grilagem, mas, talvez, um rearranjo momentâneo da correlação de forças do agronegócio e suas frações que não estão em total alinhamento, além da resistência dos movimentos sociais frente à medida. Seja como for, a estratégia é clara conforme revelou o Ministro do Meio Ambiente em reunião ministerial de 22 de abril divulgada recentemente: enquanto o coronavírus toma as páginas dos jornais a desregulamentação deve ocorrer de “baciada” sem passar pelo Congresso Nacional.

 

Notas

[1] Módulo Rural é uma unidade de medida para identificar um tamanho de uma propriedade no Brasil que leva em consideração em hectares e a região onde se encontra. Assim, um módulo rural no Norte do país possui medidas diferentes de um módulo rural no Sudeste.