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A crise não vai se resolver nas redes, mas nas ruas

Manifestação contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Nenanyahu, na praça Rabin, em Tel-Aviv

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

“Cada passo de movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas.”
Karl Marx

Parece-me estranha a forma como a discussão sobre a opinião popular tomou conta dos debates dentro da esquerda. É evidente que este é um fator importante a ser considerado em relação ao que devemos fazer, entretanto, não pode ser um critério absoluto.

Vejamos, por exemplo, esse argumento escrito num texto por Ricardo Soares [1]:

“Nos dias 29 e 30/05/2020, realizei uma enquete em 12 grupos que são contra o Bolsonaro no Facebook, além das minhas redes sociais. A pergunta foi se essas pessoas participariam de um protesto de rua contra Bolsonaro, durante a pandemia. 5.392 mil pessoas responderam essa enquete e 68,71% delas marcaram que não participariam, contra 25,78% que eram favoráveis. 5,51% relataram não saber se participariam ou não.”

As enquetes, de fato, mostram que ainda não é popular a ideia de realizar manifestações. Mas disso podemos tirar várias possíveis conclusões. Esta é a conclusão de Soares:

“Para derrotar Bolsonaro não basta irmos dividido, precisamos do máximo de pessoas possíveis e a enquete, mesmo não sendo uma pesquisa oficial, revela que a grande maioria, acha que esse não é o melhor momento de ir para as ruas. Entre os relatos das pessoas que votaram: não, muitos comentaram que seu voto foi motivado por serem ou conviverem com pessoas de risco, outros diziam que protestos agora seria se igualar à irresponsabilidade de Bolsonaro.”

Concordo com as premissas, mas o raciocínio até a conclusão não é lógico – é o que chamamos de non sequitur [2]. A História ensina e devemos aprender com ela. Vamos entrar numa máquina do tempo e voltar três anos atrás, 2016, pouco antes do ‘impeachment’ da Dilma. À época, 69% avaliavam o seu governo como ruim ou péssimo e 68% apoiavam a revogação de seu cargo [3]. Se eu utilizasse o argumento de Soares, diria que, naquele momento, não seria correto ir às ruas contra o ‘impeachment’ e em defesa de uma solução democrática para a crise – ou seja, que fossem realizadas novas eleições. Eu poderia dizer que não bastaria irmos às ruas divididos, afinal, sem amplo apoio popular não impediríamos a derrubada da Dilma pelo Congresso e pela mídia.

Entretanto, pelo contrário, ir às ruas contra o ‘impeachment’ estava absolutamente correto justamente por que era necessário disputar a opinião popular de que essa medida, realizada pelo Congresso, era um ataque à democracia. Não à toa, o atual momento político é fruto justamente desse impeachment.

Devo dizer que, na época, a esquerda também encontrava-se dividida, por opiniões diversas. A opinião dentro da esquerda inclinou-se, cada vez mais, contra o impeachment, mas os movimentos sociais corretamente não esperaram haver ‘consenso’ na esquerda para ir às ruas.

‘Realizar protestos’ é igual à ‘irresponsabilidade de Bolsonaro’?

Evidentemente, estamos em outra situação, o que dá origem ao argumento: “[realizar] protestos agora seria se igualar à irresponsabilidade de Bolsonaro”. Esse raciocínio, porém, é simplista e demonstra falta de criatividade. Basta ver, por exemplo, como estão sendo feitos os protestos em Israel [4] e em Portugal [5] para concluir que não há um sinal de igualdade entre ‘realizar protestos’ e a ‘irresponsabilidade de Bolsonaro’.

Reforçando esse argumento, Soares continua:

“Atos como os protagonizados por torcidas tem sua legitimidade, não podemos condenar eles, a pressão da aproximação de um governo ditatorial causa reações legitimas desse gênero. Infelizmente, percebemos que as recomendações de distanciamento não foram seguidas em partes dos atos, contribuindo para ser uma aglomeração.”

É verdade que as recomendações de distanciamento não foram seguidas pelas equipes de torcidas. Mas isso não diz que, com muito maior razão, devemos defender que sejam realizadas manifestações que sigam as recomendações de distanciamento? Ou devemos, pelo contrário, esperar que as manifestações atinjam um caráter massivo? Ora, se esperarmos esse momento, será praticamente impossível que se mostre, na prática, como realizar manifestações que defendam a política de distanciamento social.

Dizer o contrário do que deve ser feito levará as pessoas a entenderem o que deve ser feito?

Ao analisarmos a argumentação de Ricardo Soares como um todo, percebemos que se parte da premissa de que é necessário enfrentar o fascismo nas ruas para concluir que não devemos, neste momento, dizer tal coisa. Em vez disso, devemos batalhar, “nas redes sociais”, para “convencer mais pessoas”. Até quando? Ele responde:

“Somente um fato muito impactante, movimentaria as pessoas a saírem de casa e enfrentarem o governo na rua, pois os riscos de ficar em casa seriam maiores do que contrair o vírus.”

Em outras palavras, não basta que haja uma parcela da população disposta a ir às ruas para enfrentar o fascismo, é necessário que nós esperemos que tais manifestações atinjam proporções muito maiores. Mas, quando ocorrer esse tal ‘fato muito impactante’, não seria tarde demais para, por exemplo, ensinar na prática a necessidade de que as manifestações sejam realizadas respeitando a política de distanciamento social?

Esse é o problema de uma política que usa como objetivo, como bússola, a opinião popular em vez da necessidade concreta: em vez de protagonista, ela se torna refém das manifestações populares. A opinião popular, ou mesmo a opinião dentro do campo da esquerda, é apenas ponto de partida, e não de chegada, daquilo que devemos fazer. Afinal, tal opinião só é uma demonstração do lugar onde estamos.

No fim das contas, o maior contrassenso é não dizer que se deve enfrentar radicalmente o fascismo até que o próprio povo chegue à conclusão contrária. Ainda que não existisse a disposição de uma parte do povo de ir às ruas, deveríamos estar dizendo que, embora não fosse possível nesse momento, é necessário que haja manifestações para combater o neofascismo e para que Bolsonaro seja derrubado.

Porém, a disposição de ir às ruas já existe e, pior que isso, como o próprio Soares admite, as manifestações estão ocorrendo sem as devidas precauções, sem o cuidado com as necessárias precauções relacionadas à disseminação da pandemia. Em outras palavras, os atos já estão fora de controle. Esperar atos que sejam ainda mais fora de controle, isso sim seria uma irresponsabilidade.

 

Referências

[1] https://tesesemmovimento.wordpress.com/2020/05/31/chegou-a-hora-de-irmos-para-as-ruas-combater-o-fascismo/

[2] Expressão em latim que significa ‘não se segue’, que indica que as conclusões não decorrem das premissas apresentadas.

[3] http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/03/68-apoiam-impeachment-de-dilma-diz-pesquisa-datafolha.html 

[4] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/19/com-distanciamento-manifestantes-protestam-em-israel-contra-benjamin-netanyahu.ghtml

[5]
https://esquerdaonline.com.br/2020/05/28/movimentos-sociais-saem-a-rua-em-portugal/

Marcado como:
antifascista