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Relaxar o isolamento vai sair mais caro do que mantê-lo

Travesti Socialista

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Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

“Vivemos num mundo ameaçado, e nesse mundo o único valor autêntico que nos resta é a vida, nada mais que a vida.”
Adolf Rudnicki, escritor polonês judeu e sobrevivente do Holocausto

Segundo decreto emitido por João Dória, a partir da semana que vem haverá um relaxamento do isolamento social no estado de São Paulo. Tal medida foi assinada por pressão do ‘mercado’, ou melhor, de empresários brasileiros. Se esses empresários tivessem mais que dois neurônios, teriam feito pressão no sentido oposto. Afinal, é verdade que o isolamento social está saindo caro para a economia, mas relaxar essa medida, no fim das contas, vai sair muito mais caro. Dória prometia que iria emitir um decreto de ‘lockdown’, mas, de repente, ele faz o oposto! Onde ele está com a cabeça?

O barato vai sair muito caro

Atualmente, no Brasil, o número de casos ativos está crescendo, em média, 4,5% ao dia. Na prática, isso significa que esse número dobra a cada 15 dias. Segundo pesquisa da UFPel, no estado de São Paulo, há cerca de 760 mil pessoas que já foram infectadas pelo novo coronavírus, enquanto os dados oficiais eram de apenas apenas 104,7 mil casos até a data da pesquisa [1], o que corresponde a cerca de 1,6% da população do estado.

Note que 1,6% da população infectada é uma proporção extremamente baixa para se considerar o ‘isolamento de rebanho’. O número básico de transmissão (R0) no estado é 2,1, ou seja, cada pessoa infectada transmite o vírus, em média, para 2,1 pessoas [2]. Isso significa que é necessário que aproximadamente 52% da população já tenha sido infectada para que o pico seja atingido [3].

Resumindo: o estado está muito longe do pico, o que significa que o número de casos ativos ainda vai continuar crescendo a uma taxa cada vez menor. De acordo com os resultados do modelo que fiz [4], o número de casos ativos deve dobrar em 26 dias e quadriplicar em 51 dias [5].

Ontem, 295 pessoas faleceram e o sistema de saúde estará lotado. Em 51 dias, o sistema de saúde estará em colapso há algumas semanas e portanto o número de mortes diárias será muito maior do que apenas quatro vezes 295 (o que seriam 1.180 mortes). Tomemos, por exemplo, a Itália, onde o sistema de saúde entrou em colapso: no pico, cerca de 45% das pessoas confirmadas com a doença faleceram. Essa é uma letalidade é 6 vezes a letalidade atual no estado de São Paulo nos casos concluídos.

Resumindo, de novo: podemos, talvez, esperar algo próximo de 6 ou 7 mil mortes diárias no estado daqui a 51 dias. E isso se o isolamento social se manter da forma como está! Se houver relaxamento do isolamento, a catástrofe virá mais rápido e será mais intensa. Quantas mortes por dia vai fazer o João Dória cair na real? 10 mil? 20 mil?

Deixo a pergunta para João Dória e para todas as pessoas que ainda estão no mundo da Lua e querem, a qualquer custo, a reabertura da economia. Se a ‘economia’ vale mais do que as vidas humanas (não valem!), qual será o impacto econômico de 10 mil mortes por dia no estado? Será que a abertura, no fim das contas, não sairá muito mais caro do que a encomenda?

A única solução realmente ‘barata’

Se João Dória e os demais governantes do Brasil estão realmente procurando uma solução barata para a crise, devem seguir o exemplo do Vietnã, Islândia, Austrália, China, Japão e inúmeras nações que realmente estão combatendo a pandemia de modo eficaz: testes em massa! Identificação e isolamento de pessoas infectadas. O Brasil precisa realizar milhões de testes por semana!

 

Referências

[1] https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/05/pesquisa-da-ufpel-indica-que-380-mil-tiveram-contato-com-o-virus-em-sp-indice-e-maior-do-que-o-total-de-casos-oficiais-do-pais-ckan3mdu400q7015nqyno3ks7.html

[2] Esse é o número estimado a partir dos dados das duas últimas semanas. O código-fonte utilizado encontra-se no meu GitHub: https://github.com/jessymilare/EndemicModel.jl

[3] Suponha que metade da população já tenha sido infectada no estado de São Paulo e suponhamos, para simplificar o raciocínio, que R0 fosse 2,0. Nesse caso, uma pessoa infectada transmite o vírus, em média, para duas pessoas, mas apenas uma delas ainda não foi infectada. Portanto, nessas condições, uma pessoa infectada transmitirá a doença, em média, para uma pessoa suscetível. Em outras palavras, o número de reprodução (R) será 1,0 e portanto o número de pessoas doentes se mantém mais ou menos o mesmo. Porém, como o número de pessoas que já foram infectadas vai aumentando, isso significa que R vai diminuindo com o tempo, e portanto, a partir desse ponto, o número de pessoas doentes vai diminuindo.

Matematicamente falando, no pico, a fração de pessoas que ainda não foram infectadas é igual ao inverso de R0.

[4] O modelo encontra-se no meu GitHub, ver nota 2.

[5] No texto anterior, afirmei, em relação ao país, que o número de casos dobraria em um mês. É natural que o modelo matemático emita resultados diferentes em cada estado e em cada cidade.

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