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BRASIL

Ensinando através de uma pandemia (com muito pouca ajuda)

Spectre Journal

Da série: Relatos da Linha de Frente (Dispatches from the Frontline of Care) da Revista Spectre

Tradução: Márcio Musse
Revisão técnica: Rhaysa Ruas


Flavia d’Angeli – 06 de maio
Flavia d’Angeli é professora secundarista em Roma, Itália, e organizadora do movimento feminista

Eu sou uma mulher de 46 anos. Também sou militante feminista e anticapitalista de longa data, que agora enfrenta a crise ligada ao COVID-19 na dupla jornada do trabalho produtivo e da vida familiar. Sou professora do ensino médio e mãe de dois filhos adolescentes.

Meu trabalho como professora, que agora é feito on-line, pesou sobre meus ombros mais do que o normal. Como professores, agora passamos a maior parte do dia sem horários ou regras claras, diante do computador, comprometidos em apoiar as crianças para que elas recebam estímulos culturais e apoio psicológico, e sintam que a escola ainda está “aberta” para elas.

Diante do medo, da desorientação, do tédio e até da depressão de nossos alunos, assumimos algumas responsabilidades emocionais muito importantes. O governo, no entanto, usou uma espécie de “chantagem moral” contra nós, sobrecarregando-nos com a tarefa de tranquilizar os jovens e oferecer-lhes estabilidade, sem nos fornecer quaisquer recursos materiais para isso. Escolas e professores estão sendo apresentados como exemplos da capacidade do governo de garantir a “normalidade em tempos excepcionais”, sem reconhecer as dificuldades materiais e emocionais das crianças e dos professores.

Os dez anos de cortes no financiamento para a educação pública, realizados sob a bandeira das políticas neoliberais, tornam as tarefas de ensino à distância ainda mais onerosas para os professores. Durante anos, os professores foram sobrecarregados com um crescente acúmulo de responsabilidades e tarefas. Por exemplo, cortes drásticos no financiamento para atender às necessidades de alunos com deficiência transferiram a responsabilidade por suas necessidades educacionais apenas para professores, que muitas vezes não tem o treinamento especializado adequado para realizar esse trabalho de forma eficiente. Quando essa tarefa é combinada com os desafios do ensino on-line, exige habilidades psicológicas e técnicas que muitos de nós não possuímos ou que temos de adquirir às nossas próprias custas. Dessa forma, o governo transfere os custos da educação especial e da educação on-line para os professores e para os alunos, cujas necessidades geralmente não são atendidas.

“Parece que caímos em uma máquina do tempo dando um salto para o passado, não apenas em relação aos problemas de saúde pública, mas também em termos de dinâmica familiar e emocional.”

O sub-financiamento da educação é uma das razões pelas quais as aberturas nas escolas estão atrasadas. Na Itália, muitos edifícios escolares são antigos, com espaços apertados e salas de aula muito pequenas. Os cortes na contratação de novos professores levam regularmente a turmas acima de trinta alunos. Nos últimos anos, a contratação de novos professores não compensou sequer as aposentadorias, resultando em uma redução no número de aulas oferecidas. Essa situação já era grave antes da pandemia, privando particularmente os alunos mais frágeis e desfavorecidos do apoio adequado de professores sobrecarregados. Torna-se ainda mais dramático se tivermos de reabrir as escolas, mantendo regras de distanciamento social – regras que serão impossíveis de aplicar.

Embora essa seja a realidade sombria de nossos locais de trabalho, em nossas casas, o “lockdown” reforçou ou, em alguns casos, reintroduziu uma divisão “tradicional” do trabalho. Uma grande parte do trabalho de assistência e apoio às crianças recai sobre as mães/professoras que trabalham de casa. Nem todos os setores de produção suspenderam as atividades ou permitiram que seus trabalhadores trabalhassem de casa, enquanto o fechamento das escolas exigia que os pais – principalmente as mães – ficassem em casa para cuidar dos filhos. Torna-se, portanto, “natural”, quase sem perceber, que aqueles que ficam em casa o dia todo, mesmo que tenhamos um trabalho a fazer, se encarregam de limpar, preparar refeições e apoiar as crianças em suas atividades educacionais.

Como mulheres, muitas vezes sentimos um “senso de dever”, tornando-nos responsáveis ​​pelo gerenciamento da vida familiar, enquanto todos ficam confinados em casa. É como se, sem querer, voltássemos a uma condição nunca conhecida diretamente nessas proporções, na qual a mulher/mãe está em casa e o homem/pai sai, enfrentando o perigo de contágio. Tudo isso é realmente frustrante e estressante. É ainda mais estressante para aqueles de nós que, por treinamento e escolha, não estávamos acostumados a uma dinâmica familiar desse tipo. Eu nunca pensei em dividir meu dia entre as aulas, limpar o banheiro e preparar o almoço, esperando ansiosamente a hora de ir ao mercado para finalmente me encontrar ao ar livre e, na longa fila, descansar e pensar sobre meu próprio trabalho.

Parece que caímos em uma máquina do tempo dando um salto para o passado, não apenas em relação aos problemas de saúde pública, mas também em termos de dinâmica familiar e emocional.

O único caminho a seguir é esmagar essa máquina e estabelecer um novo “normal”, onde o trabalho e os frutos do trabalho são igualmente compartilhados entre todos nós, e juntos, fazermos o trabalho coletivo de cuidar do planeta.

Nota dos tradutores: A série Dispatches from the Frontlines of Care recebe relatos de todo o mundo, em língua inglesa. No Brasil, a série Relatos da Linha de Frente, inspirada na iniciativa de Bhattacharya, recebe relatos em português através do e-mail [email protected]